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U MA A NATOMIA DA C RISE DA

1.6. U MA H ISTÓRIA DE C OMEÇOS

O caminho da saída desta situação crítica só é possível, para Arendt, através de uma inquirição acerca das origens. “Origem” não significa, em Arendt, que os fenómenos sob análise são passíveis de dedução a partir de um qualquer princípio situado numa região ontologicamente proeminente que funciona como sua causa. Não há aqui qualquer tentativa de naturalização da realidade humana. Falar de origens não é fazer um levantamento de causas históricas e, a partir de um processo de dedução, tornar patente uma qualquer necessidade lógica e inabalável que rege os acontecimentos e os põe em marcha.

Falar de “origem” é, em Arendt, proceder a uma analítica que ilumina os elementos constitutivos de um acontecimento, de um fenómeno, os elementos que concorreram para a sua vinda à existência e que constituem a sua estrutura interna, os quais não teriam sido dados a conhecer sem a sua cristalização num acontecimento que os ilumina. Tais elementos não possuem, assim, propriedades causais.

Um acontecimento – ou uma explosão – marca um fim, na medida em que elementos com a sua origem no passado são reunidos pela cristalização que nele ocorre. No entanto, esta cristalização nunca pode ser deduzida dos elementos eles mesmos, sendo originada por algum factor cuja morada é a liberdade humana, a capacidade de ser condição de si mesmo.

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«Before totalitarian politics consciously attacked and partially destroyed the very structure of European civilization, the explosion of 1914 and its severe consequences of instability had sufficiently shattered the façade of Europe's political system to lay bare its hidden frame. Such visible exposures were the sufferings of more and more groups of people to whom suddenly the rules of the world around them had ceased to apply.» («Antes de a política totalitária ter conscientemente atacado e parcialmente destruído a estrutura da civilização europeia, a explosão de 1914 e as suas severas consequências de instabilidade haviam estilhaçado suficientemente a fachada do sistema política da Europa de modo a pôr a nu a sua estrutura escondida. Tais exposições visíveis eram os sofrimentos de mais e mais grupos de pessoas às quais as regras do mundo em seu redor haviam cessado de se aplicar.»), Arendt, Hannah, OT, p. 267.

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A capacidade reveladora do acontecimento ilumina o passado e faz uma estória vir ao ser, permitindo distinguir os seus elementos concretos do número infinito de potencialidades abstractas e constituir uma ordem narrativa a partir do labirinto de ocorrências cujo encadeamento meramente cronológico conducente a uma qualquer destinação inevitável seria sem sentido.

Posto de outro modo, a capacidade iluminadora de um acontecimento descobre um começo no passado, o qual aparece a um olhar retrospectivo como o culminar de todas as ocorrências anteriores, como um fim. Consequentemente, um acontecimento marca um fim, mas assinala também a possibilidade de um novo começo, de um momento de mudança cujas possibilidades transcendem a significância das suas origens. Abre-se assim espaço para a novidade e, com ela, para a presença renovada do humano no mundo.

A História é uma narrativa composta por estórias, por narrativas do começo ou da origem, sendo constituída por muitos começos, mas ela mesma sem fim, uma vez que cada suposto fim anuncia a possibilidade da novidade, a qual rompe com aquilo que, de outro modo, não seria mais do que a «monotonia morta da mesmidade, desdobrada no tempo»89

Segundo Arendt:

. É apenas neste sentido que é legítimo falar de origens, enquanto princípio, começo, fundamento que reúne e separa, isto é, distingue, as estórias na História.

Cientificamente, a era moderna que começou no séc. XVII, chegou a um fim no começo do séc. XX; politicamente, o mundo moderno, no qual vivemos hoje, nasceu com as primeiras explosões atómicas.90

Assim, «a era moderna não é o mesmo que o mundo moderno»91

Se queremos compreender o desabrigo e o desenraizamento característicos do mundo moderno, bem como a alienação que os acompanha e que se manifesta numa crise do ser do humano, temos então de lhe traçar a origem e o fim, «em ordem a chegar a uma compreensão da natureza da sociedade tal como se desenvolveu e apresentou a si

.

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«[…] the dead monotony of sameness, unfolded in time […].», Arendt, Hannah, «Understanding and Politics (The Difficulties of Understanding)»,, em EU, p. 320.

90

«Scientifically, the modern age which began in the seventeenth century came to an end at the beginning of the twentieth century; politically, the modern world, in which we live today, was born with the first atomic explosions.», Arendt, Hannah, THC, p. 6.

91

«[…] the modern age is not the same as the modern world.», Arendt, Hannah, THC, p. 6. Uma discussão interessante e bem informada a respeito desta distinção, apontando-lhe os traços essenciais, tem lugar em M. Weyembergh, «L’âge moderne et le monde modern», em Roviello, Anne-Marie et Weyembergh, Maurice, Hannah Arendt et la modernité, pp. 157-173.

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mesma no momento mesmo em que foi suplantada pelo advento de uma era nova e ainda desconhecida»92

Temos, portanto, de colocar sob análise os elementos ou estruturas constitutivas da Modernidade para, como Arendt, «fazer remontar às suas origens a alienação do mundo moderno, o seu voo dual da terra para o universo e do mundo para o Si-mesmo»

.

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, em ordem a melhor ter presente o significado da guerra civil existencial em que nos encontramos. Esta crise verdadeiramente ôntico-ontológica antecipou as explosões atómicas e tornou-se para nós, existentes de um mundo moderno submetido a uma subjectivação radical, não uma possibilidade, mas um facto com o qual temos ainda e sempre de aprender a lidar.

92

«[…] in order to arrive at an understanding of the nature of society as it had developed and presented itself at the very moment when it was overcome by the advent of a new and yet unknown age.», Arendt, Hannah, THC, p. 6.

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«[…] to trace back modern world alienation, its twofold flight from the earth into the universe and from the world into the self […]», Arendt, Hannah, THC, p. 6.

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ARENDT E A MODERNIDADE

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«"Don’t ever be a Rocket Man." I stopped. "I mean it," he said. "Because when you’re out there you want to be here, and when you’re here you want to be out there. Don’t start that. Don’t let it get hold of you." "But-" "You don’t know what it is. Every time I’m out there I think, If I ever get back to Earth I’ll stay there; I’ll never go out again. But I go out, and I guess I’ll always go out."»95

Ray Bradbury