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P ÓS F UNDACIONALISMO : A R ELAÇÃO A RENDT H EIDEGGER COMO D ISPOSITIVO I NTERPRETATIVO

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2.4 4 º M OVIMENTO – E XPROPRIAÇÃO /A CUMULAÇÃO DE R IQUEZA E A LIENAÇÃO DO M UNDO

2.1. P ÓS F UNDACIONALISMO : A R ELAÇÃO A RENDT H EIDEGGER COMO D ISPOSITIVO I NTERPRETATIVO

O facto de termos feito assentar boa parte da nossa exposição dos limites da fenomenologia husserliana nas bem-conhecidas críticas que Heidegger lhe dirige não significa que Arendt esteja de acordo com a posição heideggeriana. Aliás, embora a posição heideggeriana seja muito distinta da posição de Husserl, Heidegger não escapa à acusação de solipsismo por parte de Arendt. A alteração subtil no pensar da existência indicada pela substituição, por parte de Arendt, do ser-no-mundo heideggeriano pelo ser-do-mundo da sua própria lavra é plena de significado, expressando não só a sua crítica ao solipsismo heideggeriano, mas também a dissidência do seu próprio pensamento relativamente às análises heideggerianas da existência.

Não é novidade que as filosofias da existência, em geral, e o pensamento ontológico-existencial de Heidegger, em particular, exerceram uma influência

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determinante nas reflexões de Arendt. As divergências surgem quando se trata de determinar o grau e relevância dessa influência, momento em que as diferentes posições se dividem entre aqueles que procuram mostrar a estreita dependência das teses arendtianas com respeito ao pensamento heideggeriano297, e aqueloutros que descobrem na obra de Arendt traços da sua formação heideggeriana apenas para sublinhar a sua insignificância quando comparados com a presença de Aristóteles, Kant e Jaspers no seu pensamento298

Esta «geopolítica cultural» .

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Um dos exemplos mais bem-sucedidos, porque menos radical nas suas posições, de um dos lados dessa geopolítica cultural é o de Jacques Taminiaux. Na sua obra de interpretação da relação filosófica entre Arendt e Heidegger

parece ter criado à sua volta uma atmosfera impeditiva de um contributo mais pleno para a clarificação da obra de Arendt.

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A pertinência e eficácia explicativa da abordagem metodológica de Taminiaux parecem indiscutíveis, desde que não nos fixemos na divergência, transformando aquilo a que poderíamos chamar de “dispositivo de abertura de horizonte de questionamento” na substância da interpretação propriamente dita. Simona Forti chama a atenção para o facto de Taminiaux, ao insistir na contraposição de quase todas as propostas arendtianas , Taminiaux assume a controvérsia e o contraste entre as teses de ambos os pensadores como posição metodológica primordial. Este filósofo crê que, desta forma, os pressupostos filosóficos das teses de Arendt se tornarão mais claros, nomeadamente no que toca ao seu distanciamento com respeito à apropriação solipsista e especulativa da Ética a

Nicómaco por parte do filósofo de Heidelberg, apropriação que considera ser – e, a

nosso ver, bem – o ponto de partida da reflexão de Arendt, a qual procederá à sua reformulação de um ponto de vista práxico.

297

Ver Forti, Simona, Vida del espíritu y tiempo de la polis – Hannah Arendt entre filosofia y política, p. 53.

298

Ver Forti, Simona, Vida del espíritu y tiempo de la polis – Hannah Arendt entre filosofia y política, pp. 53-54.

299

Ver Forti, Simona, Vida del espíritu y tiempo de la polis – Hannah Arendt entre filosofia y política, p. 53.

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Ver Taminiaux, Jacques, La fille de Thrace et le penseur professionnel – Arendt et Heidegger. Nesta obra, Taminiaux argumenta que a reflexão arendtiana retoma a apropriação heideggeriana da Ética a

Nicómaco, embora empreenda um caminho distinto daquele proposto por Heidegger. O núcleo da leitura

de Taminiaux reside no facto de Heidegger se apropriar “especulativamente” das teses aristotélicas numa ontologia fundamental em que prima uma suspensão dos caracteres que Aristóteles considera serem próprios da acção política, como a publicidade, a multiplicidade e a comunicabilidade, em nome de uma apresentação da sophia como praxis, hipotecando assim a dimensão própria da política em nome da

theoria, submetendo a primeira aos critérios da segunda. Arendt, por seu lado, leva a cabo uma

apropriação “praxeológica” de Aristóteles, enfatizando a natalidade, a discursividade da acção, o senso comum e a pluralidade da dimensão propriamente política da praxis aristotélica e da bios politikos contra a primazia teorética e solipsista da bios theoretikos que rege a posição heideggeriana.

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às posições heideggerianas – quase como respostas polémicas -, acabar por se aproximar de um resultado longe daquele a que se tinha proposta, uma vez que a sua tábua de divergências apaga a especificidade de cada um dos pensadores. Forti partilha, no entanto, a convicção de Taminiaux de acordo com a qual Arendt se clarifica e determina os pressupostos filosóficos do seu pensamento nos pontos de controvérsia com Heidegger, uma posição que também defendemos e a que este capítulo procura dar corpo301

Nesta secção faremos uso da controvérsia intelectual entre Arendt e Heidegger não tanto como chave interpretativa, mas antes como dispositivo de acesso às questões que constituíram o horizonte filosófico apropriado por Arendt no seu pensamento. Trata-se, portanto, de procurar tornar mais claras as questões que se ergueram como desafios ao pensamento arendtiano – algumas das quais referimos já na secção anterior -, inscrevendo-as num horizonte problemático que marca e estrutura toda a sua produção político-filosófica.

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Há pelo menos um aspecto no qual Arendt e Heidegger concordam, a saber, no pós- fundacionalismo característico das perspectivas de ambos.

À imagem da analítica existencial heideggeriana, Arendt leva a cabo uma análise da

vita activa – nomeadamente em THC – traçando-lhe uma genealogia e identificando-lhe

uma diferenciação interna em labor, trabalho e acção. Ao fazer incidir a sua reflexão sobre a vita activa, Arendt não só recusa a predominância tradicional da contemplação sobre a acção, mas procura também retomar o sentido aristotélico de bios politikos tal como este vai sendo determinado nos escritos ético-políticos do Estagirita – nos quais se incluem também a Retórica e a Poética –, reconfigurando-a e apropriando-se desse mesmo sentido como horizonte da sua própria reflexão. Tal como no caso de Aristóteles, também para Arendt se trata de concretizar uma semântica das actividades humanas partindo da doxa, isto é, daquilo que é dito acerca delas e que, desse modo, permite o aparecimento do que nelas se mostra, a saber, o ser do humano numa pluralidade de modos de aparecer.

Em boa parte devido à predominância da progressiva transformação do trabalho em labor que teve lugar na Modernidade, com uma vitória final deste último, o humano parece ter perdido um lugar próprio no mundo, desembocando numa crise da sua relação com a sua origem, com o seu passado e, com ela, numa crise da sua dignidade

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Veja-se Forti, Simona, Vida del espíritu y tiempo de la polis – Hannah Arendt entre filosofia y

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ou ser próprio. Devido à sua concepção de relação com a origem e com o passado, pode dizer-se que Arendt se insere no chamado pós-fundacionalismo, algo manifesto na sua tentativa de dignificar a prática, pondo-a não acima da teoria, mas à sua altura.

Nos seus traços mais gerais, o fundacionalismo identifica-se com a metafísica clássica, referindo-se à doutrina epistemológica que defende a existência ou a possibilidade de existência de fundações seguras para o conhecimento, funcionando ora como base para uma fundamentação epistemológica de determinado sistema filosófico, ora como condição de possibilidade da própria filosofia. Por seu lado, o anti- fundacionalismo corresponde à negação de quaisquer fundações seguras para o conhecimento, colocando em questão a própria possibilidade da filosofia, se esta depender de um fundamento epistemológico302

Segundo Tom Rockmore, uma e outra doutrinas não são autonomamente significativas, descobrindo o seu propósito e significado enquanto estratégias metodológicas que visam o conhecimento, a validação do discurso filosófico e a justificação das suas reivindicações de verdade

.

303

Oliver Marchart, na sua obra Post-Foundational Political Thought, traduz esta matriz epistemológica para um contexto sociopolítico, compreendendo como fundacionalistas «aquelas teorias que assumem que a sociedade e/ou a política estão “fundadas em princípios que são 1) inegáveis e imunes a revisão e 2) estão localizados fora da sociedade e da política”»

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304

Para superar esse dualismo no debate em torno da questão do fundamento, Marchart sugere uma via que persiga não a negação do fundacionalismo, mas a sua subversão por intermédio da interrogação em torno das condições de possibilidade dos . Para Marchart, o fundacionalismo político e social busca um fundamento transcendente para a política, com base no qual se afirma o carácter derivado do funcionamento desta última. Na perspectiva de Marchant, o anti- fundacionalismo opera de forma especular com respeito ao fundacionalismo, invertendo a posição fundacionalista. Consequentemente, opera no interior do mesmo horizonte e afirma uma espécie de antifundação como fundação última da política. Em suma, o anti- fundacionalismo afirma aquilo que pretende negar, enredando-se também ele nas malhas do fundacionalismo.

302

Veja-se Rockmore, Tom & Singer, Beth J. (Eds.), Antifoundationalism: Old and New, p. 5.

303

Veja-se Rockmore, Tom & Singer, Beth J. (Eds.), Antifoundationalism: Old and New, p. 5.

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« […] those theories which assume that society and/or politics are “grounded on principles that are (1) undeniable and immune to revision and (2) located outside society and politics” […].», Marchart, Oliver,

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fundamentos, enfraquecendo o estatuto ontológico dos fundamentos sem negar a sua existência, fazendo eco da posição de Judith Butler, para a qual

a questão não é acabar com as fundações, ou mesmo defender uma posição sob o nome de anti-fundacionalismo: ambas as posições pertencem em conjunto como versões diferentes de fundacionalismo e o problema céptico que este engendra. Ao invés, a tarefa é interrogar aquilo que autoriza a jogada teórica que estabelece fundações, e aquilo que precisamente ela exclui e impede.305

O horizonte do debate é assim deslocado para lá da dualidade fundacional/anti- fundacional, sendo-lhe atribuído por essa razão o nome de pós-fundacionalismo, compreendido não como a afirmação da ausência de qualquer fundamento, mas como a afirmação da ausência de um fundamento derradeiro, a qual possibilita a existência de uma pluralidade de fundamentos.

Judith Butler chama a estes fundamentos «fundações contingentes»306

Para Butler, as fundações são funções de determinação do inquestionado e do inquestionável no interior de qualquer teoria que, reivindicando a sua universalidade como medidas de exclusão e de inclusão, cobrem o carácter contingente da premissa fundacional, isto é, da sua própria autoridade e legitimidade.

, fundações com estatuto ontológico enfraquecido que têm como condição de possibilidade a ausência de fundamento.

Nesse sentido, Butler propõe que essa universalidade seja deixada permanentemente em aberto, de forma a ser permanentemente contestada e questionada. Isto significa que a universalidade da fundação é preservada, mas a necessidade que acompanha o núcleo de inquestionabilidade da posição fundacionalista é abandonada em favor da contingência, abrindo portas a reivindicações de universalidade que não possam ser antecipadas por um dado tempo ou posição histórica.

Partindo dessa pluralidade de fundações contingentes, o núcleo problemático deixa de residir na existência de fundações – as quais são aceites como um facto na sua

305

«And the point is not to do away with foundations, or even to champion a position that goes under the name of antifoundationalism. Both of those positions belong together as different versions of foundationa!ism and the skeptica! problematic it engenders. Rather, the task is to interrogate what the theoretical move that establishes foundations authorizes, and what precisely it exc1udes or forec1oses.», Butler, Judith, «Contingent Foundations: Feminism and the Question of ‘Postmodernism’», Feminists

Theorize the Political, p. 7.

306

Veja-se Butler, Judith, «Contingent Foundations: Feminism and the Question of ‘Postmodernism’»,

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pluralidade –, mas o estatuto ontológico de que gozam – isto é, a sua contingência, numa manobra a que Marchart chama de «quasi-transcendental»307

A dívida desta noção de um fundamento ausente tornado condição de possibilidade de fundamentos plurais com respeito ao pensamento heideggeriano implica que Heidegger deva ser considerado como um dos pensadores inaugurais do pós- fundacionalismo.

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Efectivamente, em Vom Wesen des Grundes, Heidegger apresenta uma noção de fundamento que tem a natureza de um abismo – jogando com as palavras Grund e

Abgrund, fundamento e abismo –, o abismo da liberdade que corresponde a um

desfundar característico do ser do humano que serve de base a todo o acto fundador:

A liberdade é a origem do princípio de razão. A liberdade é o fundamento do fundamento, mas não no sentido de uma iteração. O ser-fundamento da liberdade não possui o carácter de um dos modos do fundar, mas determina-se como unidade fundante da dispersão transcendental do fundar. Enquanto tal fundamento, a liberdade é o “abismo” (Ab-grund) do Dasein. A liberdade, na sua essência como transcendência, põe o Dasein, como poder- ser, perante possibilidades que se abrem diante da sua eleição finita, isto é, no seu destino. […] A abissalidade do Dasein, na ultrapassagem do ente ao projectar o seu mundo e ao ultrapassar-se a si mesmo, é o movimento primordial que a liberdade connosco mesmo realiza e assim “dá a compreender”, ante-dá como conteúdo do mundo original, o qual quanto mais originalmente é fundado, tanto mais facilmente ele encontra o coração do

Dasein, a sua ipseidade no agir. A inessência do fundamento só é excedida no existir

fáctico, mas nunca erradicada (abolida).308

307

Quasi-transcendental refere-se, para Marchart, a teorias que, expostas à denúncia de incompletude ôntica feita pela questão da diferença ontológica, são forçadas a abandonar a sua cristalização em “ismos” que tudo explicam e expor-se ao abismo insuperável que se abre entre a posição teórica e os acontecimentos e que constitui a condição de possibilidade de qualquer perspectiva sobre as coisas. Veja- se Marchart, Olivier, Post-Foundational Political Thought: Political Difference in Nancy, Lefort, Badiou

and Laclau, p. 6 e seguintes.

308

„Die Freiheit ist der Grund des Grundes. Das freilich nicht im Sinne einer formalen, endlosen »Iteration«. Das Grund-sein der Freiheit hat nicht – was zu meinen sich aber immer nahelegt – den Charakter einer der Weisen des Gründens, sondern bestimmt ,im als die gründende Einheit der transzendentalen Streuung des Gründens. Als dieser Grund aber ist die Freiheit der Ab-grund des Daseins. Nimt als sei die einzelne freie Verhaltung grundlos. sondern die Freiheit stellt in ihrem Wesen als Transzendenz das Dasein als Seinkönnen in Möglichkeiten, die vor seiner endlichen Wahl, d. h. in seinem Schicksal aufklaffen. [...] Das Aufbrechen des Abgrundes in der gründenden Transzendenz ist vielmehr die Urbewegung, die die Freiheit mit uns selbst vollzieht und uns damit »zu verstehen gibt«, d. h. ah ursprünglichen Weltgehalt vorgibt, daß dieser, je ursprünglicher er gegründet wird, um so einfacher das Herz des Daseins, seine Selbstheit im Handeln trifft. Das Unwesen des Grundes wird sonach nur im faktischen Existieren »überwunden«, aber nie beseitigt.“, Heidegger, Martin, Vom Wesen des Grundes, p. 53.

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Quer o jogo de palavras, quer o processo que por ele é indicado estão longe de ser novidade absoluta, já que o mesmo motivo está já presente em Kant, quando este afirma, a respeito da razão humana e do seu carácter finito, que esta, e citamos,

[…] parte […] da experiência comum e põe assim por fundamento algo de existente. Mas este terreno abate, quando não assenta no rochedo inabalável do absolutamente necessário. Este último, por sua vez, está suspenso sem apoio se, fora dele e debaixo dele, houver um espaço vazio que ele próprio não preencha totalmente, de modo a não deixar lugar para o

porquê, isto é, se não for infinito quanto à realidade.309

Considerando a influência de Heidegger – e de Kant – no pensamento de Arendt, particularmente no que respeita à abordagem de inspiração fenomenológica que esta adoptou para o acesso e tratamento dos problemas, não surpreende que, no caso de Arendt, o pós-fundacionalismo que atravessa as suas teses se revele no horizonte de um questionamento fenomenologicamente orientado do sentido da existência ou do ser do humano, isto é, da contingência e da liberdade vividas na primeira pessoa, embora com implicações distintas da formulação heideggeriana.

De facto, já na sua tese de doutoramento Arendt assinala o carácter meramente processual e negativo das descrições fenomenológicas heideggerianas, ao dizer, relativamente à sua interpretação do conceito de mundo em Agostinho, o seguinte:

Heidegger distingue dois significados de mundo em Agostinho: mundo é, por um lado, ens

creatum (que co-incide, no seu contexto, com a fabrica Dei, coelum et terra); e, por outro

lado, o mundo compreendido enquanto dilectores mundi. Heidegger interpreta apenas este último: “mundo significa o ente na totalidade e, com efeito, enquanto o Como (Wie) decisivo, de acordo com o qual o Dasein humano se sustém e conserva perante os entes”. Enquanto a sua interpretação se apoia apenas na iluminação do mundo como habitare corde

in mundo, e o outro conceito de mundo é mencionado, mas permanece por interpretar, a

nossa interpretação tenta tornar compreensível expressamente esta dualidade.310

309

„Sie fängt […] von der gemeinen Erfahrung und legt also etwas Existierendes zum Grunde. Dieser Boden aber sinkt, wenn er nicht auf dem unbeweglichen Felsen des Absolutnotwendigen ruht. Dieser selber aber schwebt ohne Stütze, wenn noch außer und unter ihm leerer Raum ist, und er nicht selbst alles erfüllt und dadurch keinen Platz zum Warum mehr übrig läßt, d. i. der Realität nach unendlich ist.“, Kant, Immanuel, KrV, AA III, B612.

310

„Heidegger unterscheidet ebenfalls zwei Bedeutungen von mundus bei Augustin: mundus ist einmal

ens creatum (was sich in unserem Zusammenhang mit der fabrica Dei, coelum et terra, deckt) und

andererseits die Welt, verstanden als dilectores mundi. Heidegger interpretiert nur lie letztere: »Welt bedeutet demnach: das Seiende im Ganzen, und zwar als das entscheidende Wie, gemaß dem sich menschliches Dasein zum Seienden stellt und hält«. Während also seine Interpretation sich allein auf die Erhellung des mundus als habitare corde in mundo bezieht, und der andere Weltbegriff zwar genannt

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Ou seja, Arendt chama a atenção para o facto de, muito embora Heidegger relacione o mundo ou a transcendência com o ser do humano, o qual descobre o seu fundamento último na liberdade compreendida como ausência de fundamento, ele não apresenta uma versão da existência e, por extensão, da liberdade que transcenda o nada em direcção a uma positividade de ser, isto é, à constituição de um ente concreto cuja permanência e o carácter distintivo tenha como critério não apenas o estar-livre-de – uma vez que o modo do Dasein se sustentar e conservar ante os entes, afirmando a diferença que o distingue deles, é negar a sua coincidência com a realidade que os caracteriza, isto é, a sua materialidade311

O carácter real não tem o carácter de uma coisa, digamos assim, semelhante às coisas com que lidamos quotidianamente. Este carácter real refere-se ao critério de uma essencialidade própria da política e do sujeito político, sendo que essencialidade deve ser aqui lida não como brotando de uma imutabilidade essencial sempre já dada, mas como um movimento de essenciação ou de constituição da essência que garanta a permanência do político.

–, mas o ser-livre-para, constituindo-se livremente como uma entidade mundana possuidora não de uma subsistência assente na negatividade, mas de um carácter mundano real. Em suma, uma entidade que não seja apenas no mundo – alienada dele e ainda assim dele dependente -, mas que seja do mundo.

Uma tal leitura é tornada possível pela própria autora quando afirma:

Esta liberdade de movimento […] – quer como liberdade de partir e começar algo de novo e inaudito, quer como liberdade de interagir no discurso com muitos outros e experienciar a diversidade que o mundo sempre é na sua totalidade – foi e é certamente não a meta da política, isto é, algo que pode ser alcançado por meios políticos [, mas] antes o conteúdo próprio [der eigentliche Inhalt] e o sentido [der Sinn] do político. Neste sentido, política e liberdade são idênticas, e onde quer que esta espécie de liberdade não exista, não há espaço político em sentido próprio.312

wird, aber ungedeutet bleibt, zielt unsere Interpretation gerade ausdrücklich darauf ab, diese Doppeltheit verständlich zu machen.“, Arendt, Hannah, Liebesbegriff, p. 42.

311

Compreendida não num sentido fisicalista ou substancialista, mas no sentido fenomenológico de conteúdo (Inhalt) e significado de todos os actos.

312

„Diese Bewegungsfreiheit nun, sei es die Freiheit fortzugehen und etwas Neues und Unerhörtes zu beginnen, oder sei es die Freiheit, mit den Vielen redend zu verkehren und das Viele zu erfahren, das in seiner Totalität jeweils die Welt ist, war und its keineswegs der Zweck der Politik – dasjenige, was mit politischen Mitteln erreichbar wäre; es ist vielmehr der eigentliche Inhalt und der Sinn des Politischen selbst. In diesem Sinne sind Politik und Freiheit identisch, und wo immer es diese Art von Freiheit nicht