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À sombra das moças em flor: no caminho de Proust

4 A MNEMÔNICA INTERTEXTUAL

4.3 À sombra das moças em flor: no caminho de Proust

Proust é outro autor francês bastante retomado no romance. Não apenas pelo aspecto formal, – como indicamos no capítulo precedente, acerca das reflexões do narrador- personagem sobre o passado e a memória – mas, também pelo aspecto temático. Neste segundo aspecto, o tema das “moças em flor” – decisivamente proustiano – aparece como um dos grandes norteadores da narrativa, sobretudo quando trata da vida amorosa do narrador e dos outros personagens. Para Málaque (2008), esse motivo possui tamanha força para o romance que ocasiona os seguintes desdobramentos de ideias e personagens:

[...] a mítica (donzela Arabela), a carnal e desprotegida (Jandira), a protegida e inatingível por razões de diferença social (Carmélia), e a do passado (Camila), ilustrando bem uma técnica comum a esse romance, o desdobramento de motivos. Essa estratégia econômica de variação em torno do mesmo tema verifica-se no que se refere ao homem maduro enamorado pela moça em flor, uma vez que, além de Belmiro, pertencem à mesma classe Silviano e a grande maioria dos pretendentes de Jandira – em boa parte homens casados (pereirinha, etc.). (MÁLAQUE, 2008, p. 68, grifos da autora).

A primeira explanação sobre o tema acontece no capítulo 18, quando Belmiro é levado por Glicério para um jogo de pôquer na casa do senador Furquim. Contudo, ao chegar, Belmiro se vê diante de um baile onde havia jovens rapazes e moças em flor, na tenra idade. O narrador-personagem não se sente confortável com a situação e permanece a um canto da sala a observar o baile e a rememorar os bailes que presenciara em Vila Caraíbas. Este encontro com os jovens, notadamente, com as moças em flor, traz a Belmiro severas conclusões: a impossibilidade de inserção nesse mundo – do qual as moças em flor fazem

parte e a impossibilidade de travar qualquer relação mais estreita com alguma delas. Esta impossibilidade é o que leva Jandira a uma caracterização prudente do tema. Para ela, as moças em flor são assim consideradas por seu grau de inatingibilidade. São moças protegidas por algo que as torne impossíveis – seja pela ordem familiar, ou pela ordem social. A impossibilidade desencadeia uma série de lendas que fomentam ainda mais o desejo de atingi- las.

Continuando, Belmiro sente que o melhor é fugir das moças em flor, sobretudo de Carmélia: pois esse contato deixa ainda mais evidente a passagem do tempo. Sendo assim, nesta primeira explanação, tomando Carmélia como uma moça em flor, esse tema traz para Belmiro a terrível noção da brevidade da vida. As moças em flor são o símbolo real de que o tempo passa devastadoramente, modificando tudo ao seu redor e deixando a certeza de que não há estabilidade no presente – portanto, não há identificação possível. O tempo de Belmiro é o do passado, que estará sempre imóvel. Outra significação assumida pelo tema das moças em flor é a de símbolo fáustico, como esclarecemos anteriormente. As moças em flor representam a aspiração do abstrato e do eterno feminino de se materializar no tempo, tornando-se palpável. Nesse momento, as moças em flor correspondem a duas figuras, ao mito infantil Donzela Arabela – arranjo criado pelo espírito difluente – e às lembranças de Camila. Ambas são figuras de sua imaginação, tendo em vista que as lembranças de Camila se apresentam de maneira mítica, para anular a força desagregadora do tempo. Voltando suas atenções e seu desejo para Arabela ou Camila, figuras imóveis e imutáveis, em detrimento da figura real de Carmélia, Belmiro poderá continuar preso em sua imobilidade – uma vez que estas criações do espírito serão sempre suas, sem que necessite lutar por elas.

Esta imobilidade de Belmiro no plano temporal – que se reflete no plano da escrita e que já fora bastante detalhada nos capítulos precedentes – nos leva a outra constante referência a Proust e também a Bergson, que se alia à perspectiva formal da narrativa. Estamos nos referindo aos conceitos de memória voluntária e involuntária. Como dito, a inércia de Belmiro é consequência de suas constantes oscilações nos domínios do tempo. Se o presente traz consigo a marca da dissolução, o interesse do personagem se volta para o passado. Movido por esta obsessão pelo passado, Belmiro realiza um constante esforço de recordação, na tentativa de recompor esse universo que lhe apraz, todavia, se dá conta de que qualquer quadro que possa vir a recompor, já não será a imagem verdadeira de seu passado.

O passado já se perdeu e só podemos encontra-lo em nós mesmos – configurando a alusão ao conceito de inscrição e de duração de Bergson, da lembrança que se inscreve em nós deixando a sua marca afetiva. O passado, representado através das imagens que compõem

essas lembranças, contém partes das referências das situações do mesmo e a memória é, nesse caso, a absorção dessas partes. Nesse sentido, as lembranças permanecem vivas pela duração. Já Proust via no retorno da experiência em forma de lembrança, algo inerente à extensão temporal inconsciente. Assim, chegamos a mais uma referência a Proust, no que diz respeito ao conceito de memória. Esta memória que Belmiro se esforça para reviver ilustra a memória voluntária, definida por Proust. Já as lembranças que vêm a Belmiro de maneira espontânea poderiam ser vistas como parte da memória involuntária. Cabe introduzir aqui uma diferença: é que Belmiro possui um culto da memória de seu passado e está constantemente sendo assaltado por estas lembranças. Nesse sentido, Belmiro não precisa fazer um esforço de memória. De acordo com Proust, a memória voluntária não pode ser considerada fiel ao passado, uma vez que o esforço dirigido em favor da rememoração deturpa todo o conjunto de lembranças que compõe seus quadros.

Segundo Antônio Candido, “Se fosse possível viver integralmente no mundo recriado pela memória, haveria a possibilidade de um modus vivendi, quase normal, a seu jeito, como o do narrador do Temps perdu.” (CANDIDO, 2001, p. 14). No entanto, ao longo da narrativa, Belmiro vê que é impossível manter-se incubado num tempo que já não existe, pois a realidade se impõe, impreterivelmente. De um lado, a sua sensibilidade que o conduz ao passado; de outro, a vida real que o impele para o presente, formando estas constantes oscilações, desordenando o presente com as figuras míticas caraibanas, ao mesmo tempo em que o presente desmistifica o passado. Imerso “nos domínios proustianos” da rememoração, o raciocínio é difuso e a consciência se mistura. A partir disso, o amanuense se vê impossibilitado de ter “uma existência atual”, nas palavras de Candido. Belmiro é o narrador vacilante, que não compreende a relação entre seu mundo interior e o mundo exterior e o intercruzamento entre passado e presente é o reflexo disto.

Na contramão das aproximações entre Cyro e Proust, Marques não compreende esta relação, que fora apontada desde o início pela crítica, pois, segundo ele, “Não há sequer o desejo de buscar o tempo perdido. O narrador declara-se, de saída, incapaz de ressuscitá-lo à maneira proustiana [...]” (MARQUES, 2011, p. 215). É verídico que, Belmiro se embrenha pelo mundo difuso de sue passado, tentando inutilmente recolher fragmentos que o ajudem a recompor o passado caraibano. A este respeito, podemos formular uma distinção: Belmiro vê- se, em boa parte da narrativa, envolvido pelo mundo difuso de seu passado. No entanto, seu drama não é o de reviver o passado na memória, mas de que esta memória mostre que este passado foi definitivamente perdido como forma de vida, o que o levaria a ter que defrontar- se, como já dissemos várias vezes, com um presente que o desestabiliza. Prevalece a sensação

de perda, com a constatação de que não há retorno à vida do passado, pois, o que fora este universo caraibano já não existe em virtude da ação aniquiladora do tempo – e este aspecto é o que afastaria a memória de Belmiro da memória de Proust. A constatação da perda configura uma atmosfera de idílio e nostalgia em relação aos eventos do mundo caraibano que são os fantasmas de sua lembrança. Para Belmiro, do passado conserva-se apenas os valores e a sua estrutura.