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As considerações de Belmiro acerca do passado e da memória

3 FICÇÃO, AUTOBIOGRAFIA, DIÁRIO E REPRESENTAÇÃO DA

3.1 A representação da memória em O amanuense Belmiro

3.1.2 As considerações de Belmiro acerca do passado e da memória

Belmiro é um ser que não se sente à vontade na dimensão temporal em que está submetido, o tempo presente. Está sempre oscilando entre a narrativa de sua realidade cruel e seu passado – sempre melhor que o presente, posto que busque no mesmo seus pontos de apoio e apaziguamento. Não por acaso, não há um só capítulo do romance em que o narrador- personagem não se embrenhe na dimensão temporal do passado. Tais rememorações configuram sua tentativa de escrever suas memórias, sendo esse o terceiro projeto que empreende, pois fracassara nos dois anteriores. Seu interesse pela rememoração do passado representa, em verdade, uma tentativa de reviver os tempos idos, porquanto é no passado que encontraria a si mesmo e se sentiria completo. O presente não o interessa, uma vez que é o responsável por seu desconforto em relação ao mundo.

Ao mesmo tempo em que realiza um esforço constante de relembrar o passado, Belmiro questiona o porquê de buscar esses resquícios da vida para reintegrá-los à alma, se estes já não estão lá. Todo esse empenho revela-se, para o personagem, uma “vã tentativa de reintegração de porções que se desprenderam da alma nesse trajeto imenso. Em cada ramo do caminho ficou um pouco de nossas vestes e é inútil voltar, porque os bichos comeram os trapos que o vento não levou” (ANJOS, 2001, p. 60). Desse modo, o amanuense parece nos dizer que mergulhar em si mesmo para buscar suas lembranças, na tentativa de recompor os quadros do passado com a intenção de revivê-los, é inútil. Sob sua perspectiva, é impossível retratar com exatidão um tempo que já se foi, pois muito do que constitui o passado, já se

perdeu. O desejo de memórias do narrador-personagem parece revelar-se, desde o início, fadado ao fracasso.

Em sua constante necessidade de refúgio no passado, Belmiro deixa claro a importância que as paisagens assumem nesse processo, visto que está sempre procurando aquelas que mais lhe aprazem. Entretanto, conclui que as paisagens do mundo caraibano não se acham no espaço, mas no tempo. Por conseguinte, o panorama do seu tempo é o passado – é lá que estão os cenários que lhe dão abrigo. Em seguida, o amanuense ratifica seu pensamento, ao relatar a última ida a Vila Caraíbas, em 1926, na ânsia de rever as velhas paisagens. Nesse relato, descreve as transformações físicas sofridas pela cidade ao longo dos anos e percebe que:

As coisas não estão no espaço, leitor; as coisas estão é no tempo. Há nelas ilusória permanência de forma, que esconde uma desagregação constante, ainda que infinitesimal. Mas não me refiro à perda da matéria, no domínio físico, e quero apenas dizer-lhe que, assim como a matéria se esvai, algo se desprende da coisa, a cada instante: é o espírito cotidiano, que lhe configura a imagem no tempo, pois lhe foge, cada dia, para dar lugar a um novo espírito que dela emerge. Esse espírito sutil representa a coisa, no momento preciso em que com ela nos comunicamos. Em vão o procuramos depois: só veremos outro, que nos é estranho.

Na verdade as coisas estão é no tempo, e o tempo está é dentro de nós. A essência das coisas, em certa manhã de abril, no ano de 1910, fugiu nas asas do tempo e só devemos buscá-la na duração do nosso espírito. (ANJOS, 2001, p. 97-8).

Assim sendo, procurar as lembranças dessa cidade é buscar uma espécie de morte, pois o passado é aquilo que deixou de existir como presente e se arremessou para trás. Enfim, representa um mundo que já morreu. Por mais que arrisquemo-nos a ir à busca de um panorama do passado, só o encontraremos em nós mesmos. Nessa ratificação de Belmiro, podemos compreender uma das alusões a Henri Bergson, explicitadas por Ricoeur. Para esse autor, quando um determinado evento nos marca afetivamente, esse permanece em nosso espírito, inscrevendo-se em nós. A inscrição seria a permanência dessas impressões e a duração dessas inscrições-afecções – que conservam o segredo dos vestígios mnemônicos, sendo esse um pressuposto fundamental apontado por Ricoeur. Devido à duração das inscrições-afecções é que se torna possível o reconhecimento, pois este é a prova incontestável de que as impressões sobreviveram. O reconhecimento, como resultado de uma memória bem sucedida, “consiste na exata superposição da imagem presente à mente do rastro psíquico, também chamado de imagem, deixado pela impressão primeira” (RICOEUR, 2007, p. 438). Dessa forma, o reconhecimento é a evidência da representação presente de uma

coisa ausente e passada, ou ainda, consiste na percepção de uma coisa que esteve presente, ausentou-se e tornou a voltar à memória.

Bergson identifica duas formas de memória que consistem em “duas modalidades de reconhecimento, a primeira se fazendo pela a ação, a segunda por um trabalho do espírito ‘que iria buscar no passado as representações mais capazes de se inscreverem na situação atual, para dirigi-las rumo ao presente’” (RICOEUR, 2007, p. 440). O viés da psicologia também vai ao encontro dessa distinção de Bergson, ao notar que o passado se conserva através de duas formas, por um lado, o movimento físico e por outro, as imagens-lembranças; uma diz respeito à memória que revê e, a outra, à memória que repete. Portanto, o fenômeno de reconhecimento está associado à sobrevivência das imagens-lembranças em estado latente. Em decorrência desse fato, Bergson infere que o passado só pode ser entendido como tal por sua existência junto ao presente que ele já o fora algum dia. A distinção entre presente e passado é ainda complementada por Ricoeur da seguinte forma:

[...] a ideia de latência invoca a de inconsciente, se chamarmos de consciência a disposição para agir, a atenção á vida, pela qual se exprime a relação do corpo com a ação. Insistamos com Bergson: ‘Nosso presente é a própria materialidade de nossa existência, isto é, um conjunto de sensações e de movimentos, nada mais’. Disso resulta que, por contraste, por ‘hipótese’ o passado é ‘o que não age mais’. (RICOEUR, 2007, p. 442).

Resta a crença, que nos é dada através do reconhecimento, de que nossas lembranças não estão perdidas. Pelo contrário, elas podem sobreviver e voltar à memória. Outra alusão presente no romance, refere-se às afirmações de Marcel Proust a respeito da memória. Na verdade, a memória e seu conjunto de lembranças que Belmiro teima em trazer à tona, através de um esforço de recordação, ilustram a forma de uma memória voluntária. Entretanto, as lembranças que vem espontaneamente a Belmiro são parte de uma memória involuntária. Para Proust, a memória voluntária corresponde a uma memória da inteligência, consequência de um esforço dirigido para a rememoração que, do seu ponto de vista, não é capaz de oferecer um panorama verdadeiro do tempo passado. Essa memória é trazida à tona para a execução de objetivos ordinários e logo depois retorna para um esquecimento, igualmente ordinário. Não há poeticidade nesse tipo de memória, tornando-a desimportante para a literatura, sob a ótica de Proust.

Em oposição, a memória involuntária acena com extremo júbilo para a criação literária. Essa memória não sucumbe à razão e nem ao desejo de rememoração, ela se dá de

maneira espontânea, sem que se esteja à sua espera. Um exemplo dessa memória, encontramos no capítulo 19 da segunda parte das memórias. Nele, o narrador discorre a respeito de uma experiência de memória involuntária em que, quarenta anos depois, uma música ouvida no presente o faz lembrar uma apresentação que acontecera no Municipal de Belo Horizonte. O memorialista estabelece uma relação com a obra de Proust, À la recherche du temps perdu e tece o seguinte comentário:

Se uma coisa bela nunca se esgota e nos pode propiciar infinito gozo, não será porque traga alegria ou tristeza, mas talvez porque, transcendendo o alegre e o triste, nos mergulhe no cosmo da Recherche, quando a coincidência de sensações do passado e o presente, fundindo-se por obra da memória involuntária, acordam em nós, pela duração de um relâmpago, um ser extratemporal, que se nutre da essência das coisas e somente nesta encontrará as suas delícias [...]. (ANJOS, 1979, p. 292)3.

Por essa razão é que Proust a vê como mais fidedigna ao passado, pois a memória involuntária espera para que as lembranças retornem de forma espontânea, sem que um esforço, no sentido de trazê-las à tona ou de lutar contra o esquecimento, estrague a própria lembrança:

[...] é uma memória a longo prazo, que abrange o tempo de vida da pessoa. Anos e décadas podem estar entre a percepção sensorial inicial e a vivência lembrada efetuada. Frequentemente trata-se do retorno a uma lembrança da infância (mas não da mais remota!) que dessa maneira avança num grande salto temporal para o mundo de um adulto que recorda. (WEINRICH, 2001, p. 211).

De acordo com Belmiro, essas lembranças estão no tempo e suas essências permanecem dentro de nós através do processo de duração, que encontra sua justificação em Bergson. Para esse autor, o passado, representado através das imagens que compõem essas lembranças, contém partes das referências das situações do mesmo e a memória é, nesse caso, a absorção dessas partes. No entanto, Proust não encara do mesmo modo. Para ele, o longo intervalo entre a experiência vivenciada e seu retorno em forma de lembrança “não é sentido como duração mas permanece inconsciente em sua extensão temporal” (WEINRICH, 2001, p. 211). Em outro momento da narrativa, Belmiro está a passar pelo Carlos Prates quando se depara com uma roda de música, composta por várias mulheres dançando. Essa imagem é suficiente para incitá-lo a ver na roda de Belo Horizonte, as rodas que eram frequentes em _____________

3 Podemos perceber que a relação, já esmiuçada no capítulo precedente, entre O amanuense Belmiro e A menina

Vila Caraíbas. Depois de descrever as cenas de sua infância e mocidade, o amanuense reflete sobre o processo de rememoração. Segundo o narrador-personagem, a poeticidade dos acontecimentos só é percebida através do fenômeno da rememoração:

No momento preciso em que certos quadros se desdobram aos nossos olhos, quase sempre não lhes percebemos a intensidade lírica, nem lhes apreendemos a substância rica de poesia. Nosso olhar circula vago e às vezes quase indiferente. Mais tarde é que, através da memória, vamos com os olhos da alma penetrar no âmago daquelas paisagens extraordinárias. Quanto o inconsciente é fino, sutil, receptivo, nos seus trabalhos subterrâneos! Só hoje, depois de uma ascensão lenta, as camadas profundas me trazem o panorama, a cor, a luz, o tom e a música de longínquos dias, que pareciam perdidos. (ANJOS, 2001, p. 164-5).

No momento em que os eventos acontecem, é impossível que captemos sua vivacidade. Portanto, de acordo com a perspectiva do narrador, o presente só ganha substrato lírico quando se transforma em passado, através da rememoração. Pela ação da memória involuntária, o inconsciente trabalha acrescentando às lembranças as emoções que eram desconhecidas. De acordo com Weinrich, existem alguns instrumentos que são capazes de sugerir à rememoração, no caso de Belmiro, o mais comum é a audição – haja vista a relevância da música como fator desencadeante de vários processos de rememoração na obra. A música traz à tona o mundo de doces melodias, dos vultos femininos e de lirismo, que sempre fizeram parte de sua essência. Dessa forma, a audição é o instrumento que transporta o amanuense para as lembranças do passado, sendo o portador da memória poética, que desencadeia a segurança para o personagem de que ele esteja diante da felicidade de uma memória verídica. Nesse sentido, vemos que uma recordação verídica dá ao personagem a felicidade e a sensação de vencer a morte, de vencer o tempo. A felicidade, talvez, resida no fato de que, conseguindo trazer à tona uma imagem verídica do passado, o tempo não tenha agido com sua força desagregadora sobre tudo, portanto, aquilo que se queria lembrar ainda não se dissolveu.

Para Weinrich, Proust via nos cinco sentidos uma importância relevante para o tipo de memória “que quer lembrar durante um tempo mais longo” (WEINRICH, 2001, p. 209), pois eles conferem maior durabilidade às suas próprias impressões. A ênfase na durabilidade das impressões, proporcionada por esses sentidos, talvez explique a importância e a presença constante da audição nos processos de rememoração empreendidos por Belmiro, pois, como vimos, em sua maioria dão-se através da percepção musical. Disso resulta a intensidade poética das rememorações de Belmiro, uma vez que elas são sugeridas por esses

sentidos “‘mais profundamente’ instalados são por isso também os sentidos mais poéticos” (WEINRICH, 2001, p. 210). Outro fator que corrobora a concepção de Belmiro sobre a poeticidade presente nas lembranças que são rememoradas, deve-se a uma porção precisa de memória e de esquecimento, assim como nas rememorações descritas por Proust. De acordo com Weinrich:

Obviamente está exatamente no esquecimento prolongado, em cujo regaço uma experiência real pode amadurecer em sua essência poética, a fonte daquela mais- valia poética que distingue um pedaço de vida quando atravessou o esquecimento e dele ressurge renovada e transformada. (WEINRICH, 2001, p. 211).

Assim sendo, a poeticidade das lembranças está diretamente relacionada à atuação da memória involuntária, uma vez que ela que retira as lembranças do fundo do esquecimento, sem a interferência da razão e do desejo de lembrar. Essas lembranças trazidas à tona, por serem “purificadas de toda a contingência pela longa duração do esquecimento, são essencialmente humanas e fundamentalmente poéticas” (WEINRICH, 2001, p. 212). Posto isso, torna-se válida a percepção de Belmiro de que as situações tornar-se-iam mais poéticas quando transformadas em passado, retornadas ao presente através da rememoração. Propositadamente, encontramos em A menina do sobrado a mesma sorte e profundidade de reflexões acerca do passado e da memória. A certa altura do capítulo 3, da primeira parte da obra, o memorialista faz a seguinte afirmação sobre o funcionamento da memória e a formação de lembranças:

A memória é manhosa, tenho de negacear. Primeiro, reproduzo o painel, assim como vem à mente; depois, investigo pormenores, procuro restituir a pintura primitiva, removendo as finas pinceladas com que, sobre ela, o Tempo compôs outros quadros. Cenas fugazes, que antes haviam cintilado apenas [...] desdobram-se, então, em perspectivas mais amplas, e mundos, que pareciam pra sempre perdidos, vão, aos poucos, emergindo à superfície da lembrança.

Assim, debaixo de certos segmentos do painel [...] representações anteriores podem vir à luz, e imagens sem data, esculpidas numa camada arcaica, ilocável no Tempo, soem aflorar à lembrança. (ANJOS, 1979, p. 13).

Nesse sentido, o memorialista descreve o laborioso trabalho empreendido em seu ofício, que consiste em rememorar o passado e transformá-lo em memorial. A esse respeito, retomamos Ricoeur, em sua explanação sobre o funcionamento da recordação. O conceito de busca, apesar do grau de mitificação que lhe fora conferido por Platão, foi pragmatizado por Aristóteles, que o definiu como sendo a recordação, a anamnēsis: “volta, retomada,

recobramento do que anteriormente foi visto, experimentado ou aprendido, portanto, de alguma forma, significa repetição” (RICOEUR, 2007, p. 46). No esforço de recordação podem ser empreendidos vários processos, “desde a associação quase mecânica até o labor de reconstrução” (RICOEUR, 2007, p. 46). Nesse momento, Ricoeur abre espaço para o tratamento da teoria de Bergson, a respeito do esforço de memória, cuja diferenciação se dá entre a “recordação instantânea” e a “recordação laboriosa”. A primeira constitui o grau zero do esforço que é a reprodução e a segunda, o esforço máximo que é a produção ou invenção.

O ensaio de Bergson apoia-se, também, numa distinção entre diversos planos de consciência, que são desde a lembrança pura, “ainda não traduzida em imagens distintas, até essa mesma lembrança atualizada em sensações nascentes e em movimentos iniciados” (RICOEUR, 2007, p. 47). Nesse sentido, a evocação voluntária de uma determinada lembrança necessita percorrer esse trajeto. A partir disso, Bergson sugere a separação entre a recordação mecânica, que corresponde ao que há de automatismo na recordação e a recordação inteligente, mais ligada à reconstituição e que exige mais do esforço intelectual. Dessa forma:

Diremos então que o ‘esforço de recordação consiste em converter uma representação esquemática cujos elementos se interpenetram numa representação em imagens cujas partes se justapõem’. [...] ‘o sentimento do esforço de intelecção se produz no trajeto do esquema à imagem’ [...]. (RICOEUR, 2007, p. 47-8).

Tanto a recordação quanto a invenção, que constituem o trabalho da memória, configuram-se um esforço de intelecção. Os arranjos antigos podem persistir ao rearranjo exigido das imagens que procuram se inscrever na forma de esquemas, por esse motivo é que “o hábito que resiste à invenção” (RICOEUR, 2007 p. 48). Segundo Ricoeur, há afecção no conceito de busca, pois a dimensão intelectual e a dimensão afetiva da recordação são inerentes a todas as formas de esforço intelectual. Tendo em vista essa afirmação, vejamos outro momento em que o narrador das memórias reitera sobre o aspecto da rememoração, quando este está ligado à emoção. Nessa passagem do capítulo 43 citada acima e que diz respeito à segunda parte da obra, o memorialista descreve uma cena que se passa com seu amor de infância, Priscila. As situações vivenciadas com Priscila estão sempre marcadas por abalos sentimentais por parte do memorialista e por essa razão é que ele tece a seguinte consideração:

Das emoções – dizem os especialistas – apenas se conserva o registro intelectual, nunca a tonalidade afetiva, que o tempo apaga, por certo em nosso próprio interesse.

Que seria da gente, se pudesse de fato revivê-las, tão maior que o das agradáveis é o número das que nos deprimem ou ferem de mortal desgosto? (ANJOS, 2001, p. 163- 164).

Para ele, é impossível reproduzir toda a abundância afetiva de qualquer situação, posto que a memória não conserve a exatidão dos sentimentos. Dito isso, a afecção não é, então, a mesma, não é a afecção original. Ao tratar da distinção entre os conceitos de evocação e busca, Ricoeur aborda a questão da afecção presente nas lembranças. De acordo com Ricoeur, a evocação é a mnēmē a que Aristóteles se referiu, ou seja, o “aparecimento atual de uma lembrança” (RICOEUR, 2007, p. 45). Aristóteles definiu a mnēmē como afecção. A evocação suscita o seguinte enigma: “a presença agora do anteriormente percebido, experimentado, aprendido” (RICOEUR, 2007, p. 45), que se diferencia completamente do enigma da permanência da afecção original: “de saber se a fidelidade da lembrança consiste numa semelhança da eikōn [imagem] com a impressão primeira” (RICOEUR, 2007, p. 45). Em virtude dessas relações é que se instaura a dúvida entre a fidelidade ou a deformação das lembranças.

No capítulo 4, Belmiro narra uma noite insone de Natal, em que é acordado pelo cachorro do vizinho e lança seu sapato na intenção vã de fazê-lo parar de latir. Todavia, antes de adentrar nos pormenores do acontecimento, o amanuense tece um comentário que faz alusão a uma teoria da reminiscência, como podemos observar:

[...] apenas impressões vagas, prestes a se apagarem, me vinham das coisas, e a uma reminiscência tênue (fraca), quase a esvaecer, reduzia-se esta lembrança permanente com que, no estado de vigília, a memória sustenta, a cada instante, nossa precária unidade psíquica, ligando o momento que passou ao momento presente. (ANJOS, 2001, p. 29).

Sob sua ótica, a memória é a faculdade responsável por tentar sustentar as lembranças, ligando o momento que passou ao presente, a cada instante, para que a lembrança se torne permanente. No entanto, as lembranças permanentes reduzem-se a lembranças vagas e difusas até serem esquecidas. Não obstante, em oposição à recordação, temos o esquecimento e seus efeitos que ameaçam a memória. De acordo com Ricoeur, o esquecimento possui dois saberes díspares, o interior e o exterior. O primeiro diz respeito à capacidade de duração das impressões-afecções e o segundo decorre do funcionamento do próprio corpo. Portanto, a recordação tem como antagonista o esquecimento, pois é contra ele que o esforço de busca resiste. Assim sendo, Ricoeur traz à tona o desconhecimento que se

tem a respeito da origem do esquecimento, pois “trata-se de um apagamento definitivo dos rastros do que foi aprendido anteriormente, ou de um impedimento provisório, este mesmo eventualmente superável, oposto à sua reanimação?” (RICOEUR, 2007, p. 46). Por essa razão é que a recordação e todo seu esforço de luta contra o esquecimento gera certa inquietude, já que o resultado bem-sucedido – a memória feliz – é incerto.

O esquecimento é um impedimento que pode ser momentâneo ou o resultado do desgaste natural e inevitável dos rastros, das afecções originárias, causada pelo tempo. Sob esse aspecto, “boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de não esquecer” (RICOEUR, 2007, p. 48) e o esforço de recordação representa o embate da memória contra o esquecimento. No início do capítulo 15, Belmiro relata o esquecimento de Arabela/Carmélia