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O estrategista Cyro dos Anjos

5 A FORTUNA CRÍTICA DE O AMANUENSE BELMIRO

5.1 O estrategista Cyro dos Anjos

O primeiro estudo crítico que abordaremos enfatiza de maneira decisiva o caráter estratégico de O amanuense Belmiro. Em “Estratégia” (2001)39, Antônio Candido inicia sua

leitura crítica por uma citação de rodapé, escrita por Almeida Salles, a respeito de uma diferenciação feita por Valéry entre escritores estrategistas e escritores táticos. Almeida Salles aplica essa distinção à situação literária brasileira. Nesse caso, os escritores táticos, que engrossam a maioria dos escritores brasileiros, governam-se exclusivamente pelo instinto e inspiração. Já os escritores estratégicos são aqueles que empreendem um laborioso trabalho de escrita em que dedicam anos de reflexão, tanto do pensamento a ser manifestado, bem como dos procedimentos técnicos a serem utilizados. Por essa razão é que Cyro dos Anjos se enquadra no segundo grupo, revelando-se “possuidor de uma visão pessoal das coisas, _____________

lentamente cristalizada no decorrer de longos anos de meditação e estudo” (CANDIDO, 2001, p. 13-4). Seu Amanuense reflete o grande cabedal cultural do autor, evidenciando suas leituras através das inúmeras relações intertextuais, já analisadas no capítulo 4.

A grande arma estratégica identificada por Candido consiste no “movimento de báscula entre a realidade e o sonho” estabelecido por Belmiro ao longo da narrativa. Em virtude da escrita de seu diário, no qual “evadir-se da vida; é a única maneira de suportar a volta às suas decepções, pois escrevendo-as, pensando-as, analisando-as”, o amanuense oscila entre o mundo real e o mundo onírico (CANDIDO, 2001, p. 14). Esse movimento corresponde ao fato de Belmiro oscilar entre a riqueza do seu mundo interior – e aqui entram as constantes reminiscências empreendidas pelo personagem –, que ora ele enxerga como real e o mundo exterior, o qual ele vê como sendo a força destruidora que o movimenta. O mundo onírico do amanuense incide em seu mundo real como uma alternativa à sua sensação de infelicidade por nada ter realizado na vida. Em virtude disso é que “Sonha; carrega nas costas a enorme trouxa de um passado que não pode se desprender” e nem quer. (CANDIDO, 2001, p. 14). Nesse movimento também se inclui o amor. Belmiro possui sua própria maneira de amar, transformando o objeto de seu amor, a moça real Carmélia, num mito, assim como o mito da Donzela Arabela. Dessa maneira, teima em oscilar entre a aparência real do mundo exterior, cuja figura feminina Carmélia representa e seu mundo interior, dotado de infinita sensibilidade, onde aparecem os arquétipos de Arabela e da namorada de infância Camila – pois esta não é menos mitológica que Arabela. Para Candido:

A sua desadaptação ao meio levou-o à solução intelectual; esta, que falhou como solução vital, permanece como fatalidade, e o amanuense, a fim de encontrar um pouco de calor e de vida, é empurrado para o refúgio que lhe resta – o passado – uma vez que o presente lhe escapa das mãos [...] (CANDIDO, 2011, p. 14).

Mas, esse não é o único drama no romance. Belmiro não pode escolher entre nenhum dos mundos, seja o da realidade (do tempo presente) ou o do sonho (do tempo passado recriado pelas reminiscências). Sua vida irá se processar entre essas oscilações, onde um mundo perturba o pleno andamento do outro e uma existência efetiva não se configura. Sendo assim, o narrador-personagem irá buscar seu equilíbrio através da autoanálise, proporcionada pela escrita do diário. O presente se impõe, porém o amanuense não o vivencia. Ao evadir-se pela escrita, “sua evasão consiste justamente em introjetar o mundo e banhá-lo nas próprias águas. Belmiro é o homem que chegou ao estado de paralisia por

excesso de autoanálise” (CANDIDO, 2001, p. 15). Na autoanálise de Belmiro, Candido destaca aquilo que nomeamos como o caráter produtor de antinomias40, como a razão de sua possível adesão ao ceticismo absoluto, desencadeante de sua inação. No entanto, o que salva o narrador-personagem de viver completamente emaranhado na rede das antinomias é o seu lirismo, que lhe confere certo equilíbrio. Não por acaso, com relação ao ceticismo e ironia presentes no romance, vistos como a semelhança entre a escrita de Cyro dos Anjos e Machado de Assis, Candido caminha na contramão para apontar a diferença decisiva entre os dois autores:

[...] enquanto Machado de Assis tinha uma visão que se poderia chamar dramática, no sentido próprio, da vida, Cyro dos Anjos possui além dessa, e dando-lhe um cunho muito especial, um maravilhoso sentido poético das coisas e dos homens. O que é admirável, no seu livro, é o diálogo entre o lírico, que quer se abandonar, e o analista, dotado de humour, que o chama à ordem; [...] Essa alternância, que ele emprega também como um processo literário, encontramo-la de capítulo a capítulo, de cena a cena, na própria construção do estilo. (CANDIDO, 2001, p. 16).

Mais uma vez, a partir da citação acima, comprova-se, ainda que por outro viés, a estratégia que prevalece em toda a estruturação do romance, posto que o movimento duplo que comporta o perfil do narrador-personagem se reflete na narrativa. O Belmiro patético e o Belmiro sofisticado se contrapõem e se alimentam reciprocamente. O primeiro quer se entregar ao método de recomposição de seu idílico passado e o segundo, um ser implacável com o anterior e que impor sua ironia e sofisticação. São esses desnivelamentos que alimentam o conflito interior a que o romance se refere constantemente.

Candido indica a razão que leva o narrador-personagem a continuar a escrita, mesmo tendo consciência de que sua imersão pelo passado é, na verdade, uma imersão num mundo que ele mesmo recria e de que o presente vai se insinuar perpetuamente. Para Candido, “Belmiro escreve porque precisa abrir uma janela na consciência a fim de se equilibrar na vida, o que não importa em ilusão quanto ao verdadeiro significado deste trabalho” (CANDIDO, 2001, p. 17). Por conseguinte, é, sobretudo, esse aspecto que conduz o crítico a estabelecer uma relação entre o narrador-personagem e a figura do intelectual brasileiro. Não só a constituição do narrador-personagem, mas também a própria situação em que se encontra. Nesse contexto, o problema fáustico que Candido aponta como o problema central da obra, também endossa essa relação:

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A atitude belmiriana resulta de uma aplicação do conhecimento aos atos da vida – entendendo-se neste caso por conhecimento a atitude mental que subordina a aceitação direta da vida a um processo prévio de reflexão. E assim, Cyro dos Anjos nos leva a pensar no destino do intelectual na sociedade, que até aqui tem movido uma conspiração geral para belmirizá-lo [...]. (CANDIDO, 2001, p. 17).

De acordo com o autor, as condições sufocantes a que os intelectuais estão submetidos, os dirigem ao confinamento em atitudes de contemplação do passado, sem que se vejam aptos a tomar alguma posição. A sociedade nesse período induz os intelectuais a não desenvolverem uma atitude de oposição a ela. A intenção é a de que a literatura torne-se “inofensiva”, restringindo-se à literatura intimista. Essa representação dar-se-ia, em Belmiro, por seu apoio no excesso de autoanálise e introspecção, desencadeando sua imobilidade; já em Silviano, o apoio se dá pela prática filosófica, pela “ascese intelectual”. Assim, o destino do intelectual, conduzido pelas pressões da sociedade, é o de adotar uma atitude de recolhimento, assim como Belmiro, à esfera da pura introspecção. Para Candido, a estratégia engendrada pelo romance remete a uma característica singular dos escritores de Minas Gerais. As obras mineiras possuem uma sensibilidade impar que as tornam facilmente identificáveis e correlacionáveis pelo leitor. “Os problemas do homem” são apresentados de maneira perspicaz, propiciando uma estratégica afinação entre autor e leitor.