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O Amanuense e a poética do gauche: ecos drummondianos

4 A MNEMÔNICA INTERTEXTUAL

4.4 O Amanuense e a poética do gauche: ecos drummondianos

No âmbito da literatura brasileira, outra referência óbvia são as relações intertextuais que a narrativa estabelece com certos aspectos da poética de Drummond. Uma das razões deve-se à homologia entre universo literário e contexto histórico social, vivenciada pelos dois autores. Discutimos amplamente no capítulo 336, o compartilhamento por estes autores das orientações políticas e filosóficas que, de certa forma, são abordadas em suas criações literárias. Retomaremos algumas das perspectivas que compuseram nossa análise, porém, nos concentraremos na abordagem das retomadas intertextuais.

De acordo com John Gledson, a realidade social que estes autores incorporam em suas obras não pode ser ingenuamente explicável apenas pela relação de fonte e influência, mas sim por um contexto histórico-social compartilhado que o Brejo das almas de Drummond poderia muito bem definir. Nesta obra de Drummond, “há uma clara referência a mudanças sociais e econômicas do mesmo tipo que os romances descrevem [...] Existe também certo ceticismo dos moradores de Brejo das Almas [...]” (GLEDSON, 2005, p. 219). Não somente isso, pois o título comum a essa geração de escritores mineiros dos anos de 1930 também se refere a um estado espiritual comum, de preocupações ideológicas graves, porém com a impossibilidade de se apoiarem em alguma solução. Corroborando essa visão, Ivan Marques também aponta para este sentimento de falência do indivíduo – de sua incapacidade como intelectual de uma geração, de apontar soluções ideológicas que amenizem suas frustrações – que caracteriza o modernismo de Minas, encabeçado pela poética de Drummond.

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Os elementos drummondianos ecoam por todo O amanuense, seja para expressar uma determinada atmosfera, seja para a caracterização do “eu” do narrador-personagem amanuense. No capítulo 40, em que Belmiro está a refletir sobre os rumos de suas amizades, chega à conclusão de que é um gauche, pois suas melhores ideias permanecem sempre dentro de si, enquanto as piores é que saem. O elemento gauche, marcadamente drummondiano, não é o único eco do poeta, pois pode-se perceber claramente uma referência ao poema “Poesia”, em que o eu-lírico dispensa tempo tentando escrever um verso, “Ele está cá dentro e não quer sair” (ANDRADE, 2002, p. 21). O narrador-personagem compartilha com o eu lírico a “timidez que orienta todos os atos para o avesso”. (MARQUES, 2011, p. 203). Belmiro sofre por não conseguir dar um passo em direção à comunicação real com os indivíduos, preferindo sempre suprimir suas ideias para não dissociar-se do pequeno círculo do qual julga fazer parte.

As correlações não cessam. Em certo momento, Belmiro reflete sobre a falta do que escrever que, vez ou outra, o perturba, visto que o leve a questionar a sua própria existência. Para ele, o que impossibilita uma existência tranquila e sem abismos é a ausência do desejo, já que “a vida é quase boa, quando é vazia”. Ao final conclui, transcrevendo os versos de “Poema que aconteceu”: “Nenhum desejo neste domingo, nenhum problema nesta vida” (ANJOS, 2001, p. 133). Poderia até incluir que a vida talvez fosse outra, “não houvesse tantos desejos”37 (ANDRADE, 2002, p. 5). A essência entre o eu-poético de Drummond e

Belmiro trazem a tona esse sentimento de dissolução do individuo, que se sente incapaz de ação. O capítulo final do amanuense ilustra esta situação comum, em que Belmiro sente que sua vida parou no tempo, mas “A vida parou, ou foi o automóvel”?38(ANDRADE, 2002, p. 28).

Do seu ponto de vista, apenas ele, Belmiro permanece estático e imutável.

Outros poemas de Drummond aparecem como temas centrais na narrativa. Um deles, “Um homem e seu carnaval” possui relações com as cenas do carnaval vivido por Belmiro e que marca sua vida amorosa. A multidão, as ondas de éter, as sensações alucinógenas da festa mundana, bem como as namoradas que riem e mostram os corpos, tornando-se impossíveis de serem esquecidas – todos os elementos da poesia de Drummond encontram referências no episódio carnavalesco de Belmiro. Em “Sombra das moças em flor”, em que o poeta que retoma o motivo proustiano, está a vida que foge na figura nas moças que rodopiam, incitam as lendas, mas que se casam com outros e é “inútil protestar”, ou se perder “em mil análises proustianas”. Já “Coração numeroso” aparece no relato de Belmiro sobre sua visita ao Rio de Janeiro. O amanuense é tomado por uma série de _____________

37 “Poema das sete faces”. 38 “Cota-zero”.

divagações sobre o mar e sobrea cidade que é da mesma inquietação sensorial apresenta por Drummond neste poema em que o eu-lírico versa sobre uma visita ao Rio.

Outra relação que podemos inferir, deve-se a associação entre o ofício de funcionário público e o de literato. Assim como Cyro, Drummond também se alimenta deste cômodo casamento entre burocracia e literatura. De acordo com Ivan Marques, da mesma maneira que Drummond se abstinha de questionar o lugar privilegiado que ocupava, o amanuense conserva a mesma atitude. Belmiro em nenhum momento parece ver que a Seção do Fomento e o círculo burocrático e influente com o qual trava relações o retiram de vários apuros, como do episódio em que vai preso. Outra relação intertextual presente no Amanuense é assim identificada por Marques:

Declarações como “os acontecimentos conduzem os homens” e “agora é o presente que me atrai” lembram o “sentimento do mundo” apresentado nos anos 40 por um Drummond que permanece solitário e preso aos tempos idos. Nesse sentido, não é o presente que se insinua nas notas do amanuense, mas o passado que se implanta na “vida besta” de Belo Horizonte. (MARQUES, 2011, p. 223).

Dessa forma, a poética de Drummond e a narrativa de Cyro estabelecem uma relação intertextual que parece sinalizar para a impossibilidade de se firmar em qualquer ponto do passado e dar um “ora bolas” para o presente. É necessário oferecer resistência ao passado e sobreviver ao refúgio que este mundo mítico oferece. Nem donzelas, nem Arabelas, nem moças em flor podem impedir o presente de se impor. O capítulo final do romance também traz consigo a transcrição de alguns fragmentos do “Poema de sete faces”. Novamente, a referencia ao desejo, ao problema que está em desejar alguma coisa. Não houvesse desejo não haveria problemas insolúveis. Retomando o poema e analisando todos os conflitos vividos pelo narrador-personagem, pode-se concluir que Belmiro reconhece que sua alma é mais vasta que o mundo, motivo central de sua inadequação. O melhor é encerrar-se em seus próprios pensamentos, já que segue sozinho, sem amigos e abandonado, mas não sem um último questionamento de Drummond, que não compreende o abandono por Deus, se este já sabia que o eu-poético ou o narrador-personagem eram tão fracos.