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MEMÓRIA, DIÁRIO E ROMANCE EM O AMANUENSE BELMIRO

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Academic year: 2018

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MEMÓRIA, DIÁRIO E ROMANCE EM

O AMANUENSE BELMIRO

Dissertação apresentada à Universidade Federal de Ouro Preto, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Letras, para obtenção do título de Magister Scientiae.

Área de concentração: Letras; Estudos da Linguagem Linha de pesquisa: Linguagem e Memória Cultural

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Lima Machado Universidade Federal de Ouro Preto

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Catalogação: sisbin@sisbin.ufop.br

J967m Justino, Aliny Santos.

Memória, diário e romance em O amanuense Belmiro [manuscrito] / Aliny Santos Justino - 2012.

ix, 199f.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Lima Machado.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Departamento de Letras. Programa de Pós-graduação em Letras.

Área de concentração: Estudos da Linguagem.

1. Memória - Teses. 2. Diários - Teses. 3. Literatura brasileira - História e crítica - Teses. 4. Mnemônica - Teses. 5. Anjos, Cyro dos Anjos, 1906-1994 - Teses. I. Machado, Carlos Eduardo Lima. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Título.

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Realizado? Jamais! Quem pode julgar-se realizado? Só os ingênuos ou os gabolas. Ninguém se realiza, nem na literatura, nem noutra qualquer atividade. O homem sempre alça as vistas para algo que não está ao seu alcance. O homem é sempre um ser fracassado.

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Eis o momento de agradecer a todos aqueles que foram essenciais para a concretização deste processo de engrandecimento acadêmico.

Agradeço muitíssimo ao meu orientador, professor Duda Machado, pela orientação durante todo o trabalho. Agradeço por ter sido paciente além da conta, por acreditar em minha capacidade e por ter dividido comigo seu conhecimento e experiência. Sinto-me privilegiada por ter sido sua orientanda!

Aos professores do Mestrado, sobretudo: à professora Elzira Divina Perpétua, pela importante participação na avaliação do projeto definitivo, bem como no exame de qualificação, pelo grande incentivo durante todo esse percurso e por sempre mostrar-se disponível; à professora Dulce Maria Viana Midlin, por aceitar participar desta banca.

Ao professor Sérgio Alcides, da Universidade Federal de Minas Gerais, por aceitar fazer parte desta banca.

À CAPES/Reuni, pela bolsa concedida durante todo o período do mestrado. À professora Joelma Santana, da Universidade Federal de Viçosa, que me acompanha desde minha graduação e foi a grande incentivadora da minha decisão de iniciar o mestrado.

À minha família, meu porto seguro, sempre! Agradeço pelo apoio incondicional, pela compreensão, carinho e força que sempre transmitiram; aos meus grandes amores: meus pais, José Augusto e Maria Lúcia; meus irmãos, Michelly e Erick; meu sobrinho Michel. Sem vocês, nada disso se tornaria possível!

Aos amigos tão especiais, que vêm me acompanhando ao longo da vida. Obrigada pelo incentivo, pelas palavras de alento e carinho quando o desânimo, por vezes, se abateu sobre mim. Obrigada pela paciência, pois sei que não foi nada fácil ouvir meus constantes dramas. Agradeço, sobretudo, pelo respeito e compreensão de todos nos momentos em que eu me tornei um ser humano impraticável. Henrique, Judity, Gilberto, Luciene, Douglas, Lívia, Aline: amo vocês! Devo um agradecimento especial à Luciene, pela paciência e consideração em revisar meu texto.

Às amigas e companheiras do mestrado, Eliana e Priscila, com quem pude compartilhar os momentos de alegria e dificuldade em Mariana.

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À família Aniceto, sobretudo à Érica e ao Seu Antônio, que me acolheram com muito carinho em minha chegada a Mariana.

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Essa pesquisa concentra-se na abordagem da memória como temática e parte decisiva da construção literária de O amanuense Belmiro, romance de Cyro dos Anjos, publicado em 1937. Nesse romance, temos toda a construção de uma realidade conflituosa, em que a memória exercerá um papel estruturador. O narrador-personagem, Belmiro Borba, está empenhado em escrever suas memórias, porém, o presente se insinua e seu projeto inicial termina em diário. Contudo, ao escrever sobre o presente, Belmiro não consegue evitar as constantes evocações ao seu passado. Assim, o romance incorpora o diário e as memórias em sua estrutura. A partir disso, temos por objetivo inicial, a caracterização da obra através da apresentação das formulações de Bakhtin a esse respeito. Como a narrativa em questão aborda uma relação entre o projeto memorialístico desejado por Belmiro e a elaboração do diário que ele engendra, esse trabalho também se propõe a realizar uma leitura comparativa entre O amanuense Belmiro e A menina do sobrado (1979), obra memorialística do mesmo autor, no intuito de analisar as fronteiras entre romance e memória. Em seguida, trataremos das relações que o romance estabelece entre ficção, autobiografia e representação da memória. Nesse sentido, nosso objetivo é analisar a tematização da memória – através das reflexões do personagem sobre o passado e a memória, além da associação entre memória e imaginação –, a intrínseca relação entre realidade, ficção e imaginário e a relação entre o diário e o projeto de memórias, que se inserem no romance. Tendo em vista a riqueza das relações intertextuais contidas no romance, também analisaremos a dimensão da memória, sob o viés da mnemônica intertextual. Para finalizar, analisaremos a fortuna crítica do romance, selecionando as leituras críticas que julgamos mais relevantes e contrapondo à nossa interpretação.

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Ce travail se concentre sur la mémoire comme approche thématique et partie décisive de la construction littéraire de O amanuense Belmiro, roman de Cyro dos Anjos, publié en 1937. Dans ce roman, il y a une construction d’une réalité conflictuelle dans laquelle la mémoire a un rôle fondamentale. Le narrateur-personnage, Belmiro Borba,

envisage d’écrire ses mémoires, toutefois le présent s’affirme et son projet initial se transforme en journal intime. Cependant, à mesure qu’il écrive sur le présent Belmiro ne peut pas éviter les évocations incessantes de son passé. Ainsi, le roman intègre dans sa structure le journal intime et les mémoires. À ce propos, l’objectif initial de notre travail est de caractériser le roman à travers de la présentation des postulations de Bakhtin sur la constituition du genre romanesque. Comme le récit présente une rélation entre le projet de memóire envisagé par le personnage et l’écriture du journal intime, ce travail propose

également de procéder à une lecture comparative entre O amaneunse Belmiro et A menina do sobrado(1979), roman mémorialiste du même auteur. Par conséquent, nous envisageons analyser les frontières entre le roman e la mémoire. Ensuite, notre sujet sera les rélations étabiles entre la fiction, l’autobiographie et la répresentation de la mémoire. À ce propos, notre objectif est d’analiser la thématization de la mémoire – à travers des réflexions du personnage sur le passé et sur la mémoire, puis de l’association entre la mémoire et

l’imagination – et encore d’autres associations qui composent le roman : la rélation entre la

réalité, la fiction et l’imaginaire et la rélation entre le journal intime et le projet mémorialiste. En raison de la richesse de rélations intertextuelles qui prolifèrent dans le roman, nous analyserons la dimension de la mémoire sous le terme de la mnemonique intertextuelle. Por finir, ce travail traitera de la fortune crítique du roman en sélectionant les lectures critiques les plus importantes par opósition à notre interprétation.

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INTRODUÇÃO...11

1 INCORPORAÇÃO PELO ROMANCE DE OUTROS GÊNEROS...15

2 AS FRONTEIRAS ENTRE ROMANCE E MEMÓRIA...29

2.1 A cidade... 30

2.2 Os perfis femininos e a concepção de amor... 38

2.3 A estrutura familiar... 43

2.4 O perfil psicológico dos dois narradores... 45

2.5 Os amigos... 56

2.6 De Drummond a Cyro dos Anjos: as opções de uma geração de intelectuais... 67

3 FICÇÃO, AUTOBIOGRAFIA, DIÁRIO E REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA...74

3.1 A representação da memória em O amanuense Belmiro... 74

3.1.1 A tematização da memória no romance... 74

3.1.2 As considerações de Belmiro acerca do passado e da memória... 77

3.1.3 A relação entre passado, memória e imaginação... 86

3.2 Realidade, ficção e imaginário... 93

3.3 A dupla inscrição ou o diário dentro do romance...102

4 A MNEMÔNICA INTERTEXTUAL...124

4.1 Machado de Assis e o ceticismo... 136

4.2 O diário de Amiel... 141

4.3 À sombra das moças em flor: no caminho de Proust... 143

4.4 O Amanuense e a poética do gauche: ecos drummondianos...146

5 A FORTUNA CRÍTICA DE O AMANUENSE BELMIRO...149

5.1 O estrategista Cyro dos Anjos... 149

5.2 O Amanuense e a estética da acomodação... 152

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5.6 Um romance singular... 164

5.7 “A vida como literatura”... 167

5.8 Belmiro Borba e o gauchismo de toda uma geração... 172

5.9 Das relações entre os críticos à análise crítica... 178

CONSIDERAÇÕES FINAIS...190

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INTRODUÇÃO

Essa pesquisa concentra-se na abordagem da memória como temática e parte decisiva da construção literária de O amanuense Belmiro, romance de Cyro dos Anjos, publicado em 1937. Tomando por base a hipótese de Proust apud Weinrich (2001, p. 207) de que “a literatura e a memória são próximas” e de que “para um escritor a realidade só se forma na memória”, temos em O amanuense Belmiro a construção de uma realidade conflituosa em que a memória exercerá um papel estruturador. Nesse romance, Cyro dos Anjos nos apresenta a figura conflituosa do narrador-personagem Belmiro Borba, que desde o primeiro momento se diz empenhado em escrever suas memórias e, dessa forma, reviver seu passado. Entretanto, tal empreendimento mostra-se falho em certa medida, já que aos poucos, Belmiro percebe que o presente vai tomando conta da narrativa e o que era para ser um livro de memórias, acaba por se tornar uma espécie de diário, em que relata todas as suas altercações com a realidade. Contudo, no desenrolar desses apontamentos diários, Belmiro insere várias evocações de seu passado e de seu clã: aa família Borba.

Nesse momento, instala-se um grande conflito entre narrar o presente e rememorar o passado – o diário e as memórias – e que será o tom predominante de todo o processo ficcional. Nesse processo constitutivo do narrador-personagem, também é bastante decisivo seu caráter onírico. Belmiro não apenas oscila entre a narrativa de sua realidade cruel e o seu passado – sempre melhor que o presente, posto que busque no mesmo seus pontos de apoio e de apaziguamento – como é acometido por fantasias. Logo, seus relatos, tanto os relacionados ao presente, quanto os relacionados ao passado, são afetados por sua imaginação. Nosso intuito inicial, no primeiro capítulo, é o de caracterizar de modo amplo O amanuense Belmiro através da apresentação das formulações de Bakhtin a respeito do romance, visto como um gênero aberto e crítico que, por conseguinte, admite a apropriação de outros gêneros discursivos, como o diário e as memórias. O estudo destas formulações torna-se necessário para que possamos fixar uma perspectiva básica para o exame da obra, no sentido de esclarecer uma série de enfoques que lidam com a relação entre o romance e o diário, presente no Amanuense.

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sobrado, obra memorialística do mesmo autor, no intuito de analisar as fronteiras entre romance e memória. A menina do sobrado, obra publicada em 1979, apresenta um “narrador -autor” que descreve o percurso de sua vida, relatando tudo que o envolve: a cidade Natal, Belo Horizonte, família, amigos e amores. Nosso objetivo, no segundo capítulo, é analisar os deslizamentos presentes, no sentido de admissão de uma possível inter-relação entre a ficção de O amanuense Belmiro e os relatos contidos nas memórias. É nesse sentido que também atua o trabalho empírico de mapeamento dos dois livros que estamos realizando. Assim, a respeito da relação entre diário e romance em O Amanuense Belmiro, faremos uma comparação entre os mapeamentos de A Menina do Sobrado e O Amanuense Belmiro, que consistem em quadros concentrados que detalham as personagens, as situações, os episódios e o ambiente – as duas cidades – retratados pelo romance e pelas memórias. Desse modo, a análise comparativa dos mapeamentos torna-se importante para que possamos estabelecer, a partir de certas convergências entre os episódios do livro de memórias e do romance, as diferenças decisivas que permitem identificar, até certo ponto, a elaboração ficcional e a transformação dos episódios contidos nas memórias. Nesse sentido, levantamos também a hipótese de ver como as perspectivas filosófico-políticas apresentadas nas duas obras estão diretamente relacionadas à atmosfera intelectual da época que retratam – os anos de 1930 – com base nas descrições de Drummond, que fazem parte de sua obra Confissões de Minas, publicada em 1944.

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Em seguida, o foco de nossa análise será a relação entre realidade, ficção e imaginário, que se estabelece a partir da comparação entre as duas obras de Cyro dos Anjos. Num primeiro momento, trataremos da relação entre O amanuense Belmiro e a Menina do Sobrado – assinalada pelo mapeamento comparativo que realizamos no segundo capítulo – incluindo o aporte teórico de Phillipe Lejeune. Num segundo momento, adotaremos a perspectiva do processo de ficcionalização, formulada por Wolfgang Iser, para remeter às transformações decisivas em O Amanuense Belmiro de um conjunto de aspectos presentes em Menina do Sobrado.

Outra relação a ser analisada é a que existe entre o projeto de um livro de memórias e a elaboração do diário. Primeiramente, do ponto de vista do personagem, o diário é visto como uma espécie de preparação para um livro de memórias, como podemos ver no relato do personagem: “É plano antigo o de organizar apontamentos para umas memórias que não sei se publicarei algum dia” (ANJOS, 2001, p. 31). Nesse sentido, o diário é um modo de fixação mnemônica de situações, e um modo de preservar antecipadamente as memórias. Assim, serão analisadas as relações de conflito entre passado e presente em Belmiro, que irão integrar a elaboração de seu diário. Ao mesmo tempo, o diário é um lugar privilegiado para que se desenvolvam as reflexões do narrador-personagem sobre seu passado e seu presente, distinguindo as reflexões que constam do diário, de outras ligadas mais diretamente à “ação narrativa”. Em terceiro lugar, o diário é um modo de isolar-se relativamente do presente, segundo a perspectiva que iremos considerar e que encontramos no aporte teórico de Béatrice Didier, em suas formulações sobre o funcionamento e a estrutura do diário. Por fim, há que se analisar a proliferação de diários que temos no romance, tais como as motivações para o surgimento dos diários dos personagens Silviano e Redelvim.

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1 A INCORPORAÇÃO PELO ROMANCE DE OUTROS GÊNEROS

Nosso intuito inicial, neste capítulo, é o de caracterizar de modo amplo O amanuense Belmiro através da apresentação das formulações de Mikhail Bakhtin (1993) a respeito do romance, visto como um gênero aberto, crítico, e que, por conseguinte, admite a apropriação de outros gêneros discursivos, tal como o diário. O estudo dessas formulações torna-se necessário para que possamos fixar uma perspectiva básica para o exame da obra, no sentido de esclarecer uma série de enfoques que lidam com a relação entre o romance e o diário presente em O amanuense. Para que possamos esclarecer, de forma contundente, a perspectiva que move Bakhtin em sua explanação do romance, daremos voz a outros autores que também o retomam, como Morson & Emerson (2008) e Luiz Costa Lima (2009).

Anteriormente a uma discussão sobre as especificidades e os processos que o romance engendra, cremos que seja necessária uma pequena contextualização da gênese da sua teorização. Tal empreendimento nos ajudará a compreender melhor as razões que tornam o romance um gênero problemático. Em sua obra O controle do imaginário & a afirmação do romance (2009), Costa Lima expõe as razões que explicam a teorização tardia do romance, começando pela discussão dos estudos iniciais sobre o gênero. O primeiro deles, conduzido por Pierre-Daniel Huet (1630-1721), endossava alguns clichês que eram acumulados ao longo dos séculos, como a subordinação da história à verdade.

Permanecia sedimentada a existência de uma hierarquia entre o relato “verdadeiro”, do qual fazia parte a épica, e o fingido, do qual fazia parte o romance. Nesse caso, de acordo com Huet, a épica seria verossímil por tratar de ações políticas e militares, enquanto o romance privilegiava o amor e a licenciosidade. Dessa forma, a ficção se vê banida de teorizações por ser um gênero contrário à verdade – culminado em sua desqualificação. Dessa forma, “aqueles que se apegavam à falsidade do relato ficcional nele ressaltavam, do ponto de vista retórico, o seu não-polimento artístico e, do ponto de vista ético-religioso, sua frequente licenciosidade” (LIMA, 2009, p. 160). Huet explicita que a licenciosidade não encontra extensão nos romances além da França, por razões ligadas à prática da galanteria mais desenvolvida nesse país. Sua distinção em relação à L’Astrée e mais alguns romances que ainda conservam certa licenciosidade, opõe-se aos bons romances que revelam-se isentos de tal característica.

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advinda das paixões para que possa servir como ensino e prevenção para o leitor. Por essas razões, a subordinação à verdade funcionou como um mecanismo implícito de controle que resultou no atraso das teorizações e considerações sobre o romance. Para Lima (op. cit), tal observação representou o mérito do estudo de Huet, pois fora o primeiro estudo que desvendava esse mecanismo implícito de controle, e, mesmo que não tenha se atido a nenhuma apreciação sobre as características formais do romance, isso se deveu às circunstâncias da época em que foi elaborado.

Para Bakhtin, desde sempre, a teoria da literatura não tem dado conta das especificidades do romance, o que não ocorre com os outros gêneros. A teorização dos demais gêneros literários é satisfatória por se tratar de estruturas que sempre mantém uma estabilidade e uma ossatura calcificada, contribuindo para a formação de um modelo canônico. Quaisquer mudanças não alteram essa estrutura geral, e, por essa razão, Bakhtin não vê nenhuma evolução teórica nesse sentido desde a poética de Aristóteles. O surgimento do romance e a consequentemente romancização dos gêneros – o que corresponde à intrínseca relação que estabelecem com o romance, e à realidade em constante evolução que o constrói1 – desestabilizam as teorizações empreendidas até então, visto que elas não conseguem abarcá-lo. Todos os trabalhos sobre o romance tentavam em vão estabelecer características comuns que fossem invariáveis e imutáveis, todavia culminavam apenas na descrição de suas variedades e nunca em sua definição como um gênero. Nesse momento, Bakhtin destaca as conceituações realizadas pelos próprios romancistas no âmbito restrito de seus romances.

De acordo com o autor, essas definições são o retrato do embate travado pelo romance entre suas próprias variações, e também entre os outros gêneros. Essas definições “se aproximam da posição singular do romance na literatura, posição sem medida comum com os outros gêneros” (BAKHTIN, 1993, p. 402), e cujo sentido esteve em apontar uma versão mais precisa que fosse encarada como forma “correta, [...] necessária e atual” (BAKHTIN, 1993, p. 402), em detrimento de uma definição que abrangesse todos os tipos de romance. O movimento de Reforma fora importante para o favorecimento de um ambiente propício para as teorizações do romance, pois promovera uma busca pela verdade, que levou à “interioridade do sentimento e do pensamento” (LIMA, 2009, p. 163). Dentre as teorizações que surgem sobre o romance, Bakhtin destaca uma série de julgamentos relevantes:

Abre-se esta série com os julgamentos de Fielding sobre o seu romance e o seu personagem, Tom Jones. Em continuação surge o prefácio de Wieland para Agathon, mas o elo mais importante é o Ensaio Sobre o Romance, de Blankenburg. Na _____________

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realidade, a conclusão desta série surge com a teoria do romance dada posteriormente por Hegel. (BAKHTIN, 1993, P. 402, grifo do autor).

Nesse momento da história, essas teorizações ganham importância, uma vez que apontaram um sinal de ruptura com o que era produzido até então. Em sua postulação do romance, Hegel sintetiza alguns pressupostos decisivos para a caracterização do gênero, que vão ao encontro de uma crítica dos gêneros antecedentes com vistas ao posicionamento que assumem frente à realidade. Fundamentando seu estudo em princípios teleológicos, Hegel e, posteriormente, seu sucessor Lukács, enfatizam no romance a representação de um mundo de seres heterogêneos, singulares, dotados de complexidade, em oposição ao mundo de totalidade e completude dos seres homogêneos retratados na épica – gênero predecessor do romance.

Não obstante, tanto Hegel quanto Lukács pecaram em suas teorizações sobre o romance por desconsiderarem as questões formais e empíricas que o subjazem, “desconhecendo a especificidade da forma romanesca enquanto forma estruturalmente mista” (LIMA, 2009, p. 167, grifos do autor). Para Bakhtin, tal caracterização torna-se relevante, posto que seja a primeira a julgar a literaturidade e poeticidade inerentes aos demais gêneros anteriores ao romance. Desse modo, o romance tem seu valor autocrítico reconhecido, bem como sua importância para uma evolução na configuração da própria literaturidade e poeticidade dos gêneros. Cabe ressaltar que Bakhtin não via, nessa postulação, uma teoria do romance em sentido estrito, mas reconheceu sua importância e seu progresso perante muitas teorias existentes até então. Destarte, Bakhtin avança em relação aos julgamentos anteriores e vem a ser, segundo Costa Lima (2009), o antípoda de Lukács, já que as formulações do teórico russo sobre o romance dão ênfase ao estudo estrutural do mesmo. Bakhtin propõe a caracterização das especificidades estruturais e essenciais inerentes ao romance, que são três:

1. A tridimensão estilística ligada à consciência plurilíngue que se realiza nele; 2. A transformação radical das coordenadas temporais das representações literárias no romance; 3. Uma nova área de estruturação da imagem literária no romance, justamente a área de contato máximo com o presente (contemporaneidade) no seu aspecto inacabado. (BAKHTIN, 1993, p. 403-4).

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– a realidade do presente. Segundo Bakhtin, o inacabamento inerente ao romance passa a ser transmitido aos outros gêneros, configurando um processo de prismatização. De acordo com Lima, o processo de prismatização identificado por Hans Blumenberg “impede de antemão o mundo das consonâncias de Hegel, um mundo monológico, criado à imagem e semelhança do ponto de vista do narrador. Impede, sobretudo, que o mundo seja encarado como totalidade” (LIMA, 2009, p. 174), contrariando a postulação de Lukács. Desse ponto de vista, o romance é um gênero dialógico, aberto à representação da multiplicidade de linguagens.

Por essa razão, o estudo de Hegel, retomado posteriormente por Lukács, é superado pelas formulações de Bakhtin. Como vimos anteriormente, o passado entendido pela épica como um valor sacralizado e absoluto se impunha em detrimento da experiência individual, fixando-se num polo contrário à transitoriedade e ao inacabamento do presente promulgado pelo romance. Para Lima, “enquanto o poder foi capaz de manter essa imagem do mundo, o romance não teve condições de se desenvolver, pois com ele antes se impunha antes a visão do mundo a partir do cotidiano” (LIMA, 2009, p. 177). Com relação às três características estruturais do romance apontadas por Bakhtin no excerto anterior, detalharemos melhor cada uma delas, começando pela segunda e a terceira, que tratam da mudança das coordenadas temporais, que é imposta pelo romance, e do contato máximo com o presente inacabado, respectivamente.

Para esclarecer essas duas características formais, Bakhtin o faz em contraposição às formas adotadas pela epopeia, porquanto o gênero romance seja a evolução do gênero épico. Segundo o autor, cada gênero possui uma maneira particular de representar o mundo. Contudo, tanto a instância de tempo quanto a instância de espaço impõem a essa representação certas particularidades de acordo com o gênero específico. Dessa forma, os gêneros e suas correspondentes representações do mundo modificam-se de acordo com a evolução literária. As características que constituem a epopeia são o passado absoluto, a lenda nacional e a distância épica absoluta. O mundo representado na epopeia refere-se ao passado heroico de um povo, sobretudo de um passado impenetrável que, por essa razão, é aceito com reverência e glória. Tanto o autor quanto o ouvinte de uma epopeia situam-se num mesmo tempo, enquanto os personagens estão num tempo que impõe entre os demais uma distância épica absoluta. Tornar esse tempo acessível – contemplando as obras com personagens que possam representar as experiências pessoais – equivaleria a superar a distância épica e transpor a epopeia para o gênero romance.

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principal faculdade criadora. Por conferir ao passado um poder sacralizado, as epopeias sempre endossam a sua glorificação através da retratação de um passado perfeito, que nos é inacessível. Já o romance é um gênero preparado para a experiência moderna e silenciosa da leitura, advindo de uma cultura escrita. A atividade prática e a experiência definem o romance, promovendo o contato com o presente – o tempo histórico do inacabado – com isso, pode-se percorrer um caminho para a busca do conhecimento.

O passado épico representa um mundo homogêneo, onde tudo se encontra perfeitamente concluído. Por ser um gênero antigo e já calcificado, as formas épicas constituem um gênero imutável e pronto, revelado através de seu aspecto acabado que se liga diretamente ao fato de representar um mundo homogêneo e fechado – trata-se de um mundo perfeito, habitado por seres perfeitos, ou seja, um mundo totalmente acabado, onde não há espaço para discrepâncias e problemáticas. Os gêneros antigos e calcificados são fechados e, por essa razão, possuem um cânone. Por conseguinte, não há qualquer possibilidade de que o futuro o perpasse, pois o mundo épico é autossuficiente.

Com propósito, a valorização desse passado resulta no fortalecimento de uma lenda nacional – sendo este outro atributo da epopeia, apontado por Bakhtin. O mundo épico é o mundo que representa o nacional, não havendo espaço para apreciações ou experiências pessoais, “ele é dado somente enquanto lenda, sagrada e peremptória, que envolve uma apreciação universal e exige uma atitude de reverência para consigo” (BAKHTIN, 1993, p. 408). A distância épica absoluta, terceiro atributo apresentado por Bakhtin, como já percebemos, deve-se ao fato de o passado épico não ser passível de aproximação. O mundo épico se distancia de qualquer possibilidade de contato com a experiência pessoal, ou com uma nova interpretação – trata-se de um mundo que representa um passado inalcançável em todos os sentidos, como afirma Bakhtin:

O mundo épico é totalmente acabado, não só como evento real de um passado longínquo, mas também no seu sentido e no seu valor: não se pode modifica-lo, nem reinterpreta-lo, nem reavaliá-lo. Ele está pronto, concluído e imutável, tanto no seu fato real, no seu sentido e no seu valor. (BAKHTIN, 1993, p. 409).

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sacralização e imortalização pelo viés do discurso literário. A superação da distância épica promulgada pelo romance leva a importantes mudanças na representação de diversos níveis como o do tempo, o do mundo e o do homem. Para Bakhtin, essa mudança nas coordenadas temporais permite ao autor uma liberdade de criação e movimentação dentro da matéria narrada.

A partir disso, o autor adquire liberdade para interferir, de qualquer ângulo possível, no interior do gênero. A nova posição que o autor irá ocupar no romance, sua nova postura diante do mundo representado, leva à superação da distância épica. Perante isso, “o mundo já havia desmoronado; aquele mundo monolítico e fechado (tal como era na epopeia) dera lugar a um mundo vasto e aberto, ao mesmo tempo seu e dos outros” (BAKHTIN, 1993, p. 418). O passado em sua forma acabada dá lugar ao presente inacabado, que opera uma transformação da instância temporal dentro da representação do mundo. Porém, não significa dizer que o passado deixa de fazer parte da matéria literária, mas transforma-se de matéria sacralizada para matéria objetiva e autêntica.

Como vimos, o tempo e o mundo modificam-se radicalmente em suas representações literárias. Todos os níveis de representação perdem suas características ligadas ao aspecto acabado, não tendo mais uma abordagem impassível de mutações. Nada está pronto e acabado; toda representação passa a ser instável, passível de atualizações constantes. Logo, a representação do mundo liga-se intrinsecamente ao presente “inacabado pelas contínuas mutações temporais, e entra em relações com a nossa incompletude, com o nosso presente, e esse presente avança para um futuro ainda não perfeito” (BAKHTIN, 1993, p. 420).

O romance surge como gênero em aberto, inacabado, em transformação, já que “não podemos prever todas as possibilidades plásticas para ele” (BAKHTIN, 1993, p. 397), logo, suas possibilidades nunca estão encerradas, sendo o único gênero que permanece em constante evolução em meio aos outros. Por esta razão, não possui um cânone. Outro fator que agrega o inacabamento ao romance, único gênero moderno, deve-se à sua intrínseca ligação com o presente, que é o tempo do inacabado. Se, anteriormente, nas epopeias, víamos uma sacralização do passado, no romance, a ênfase está no devir e no porvir, característicos do tempo presente. Dessa forma, “o romancista gravita em torno de tudo aquilo que não está ainda acabado” (BAKHTIN, 1993, p. 417).

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semelhança do mesmo. Consequentemente, falamos de um homem completo e perfeito em todos os sentidos, que possui uma exteriorização completa e sem problemáticas. Sendo assim, é um homem que coincide consigo mesmo e com aquilo que os outros pensam e sabem sobre ele – ou melhor, o que o autor, os outros personagens e o leitor pensam e dizem sobre ele corresponde ao que esse homem é e pensa sobre si. Essa inteireza e simplicidade da figura humana proporcionam um destino igualmente completo, sem possibilidades de irrealizações. O mundo, o destino ou a linguagem do homem representado pelos gêneros distanciados não permite uma possibilidade de individualização ou de relação com os seres comuns, pois:

O mundo épico conhece uma só e única concepção de mundo inteiramente acabada, igualmente obrigatória e indiscutível para os personagens, para o autor e para os ouvintes. O homem épico está igualmente desprovido de iniciativa linguística; o mundo épico conhece uma só e única língua constituída. (BAKHTIN, 1993, p. 423).

Com a superação da distância épica, torna-se possível uma nova representação do homem, proposta pelo romance. O homem torna-se fruto do inacabado e do imprevisível mundo do presente. Diante desses aspectos, Bakhtin vê o romance como profanação das epopeias, e essa profanação dá-se a partir do instante em que o riso e a comicidade destroem a distância épica e sua seriedade, virando do avesso a imagem do homem, mostrando seus conflitos e disparidades em diversos aspectos. Tais efeitos, também considerados como estilizações paródicas consistem no travestimento dos gêneros sérios e mais elevados da tradição literária.

Vejamos, de maneira pormenorizada, como se dão as estilizações paródicas e como elas dão origem ao gênero romance. Anterior ao romance, a admissão do presente na matéria literária dá-se incialmente nos gêneros sério-cômicos, considerados gêneros inferiores. A atualidade do presente traz aos gêneros sério-cômicos uma nova maneira de representar a língua, o homem e o mundo. O intuito de ridicularizar, trazendo para a realidade todas as matérias de representação, trouxe à tona as estilizações paródicas – travestimento dos gêneros “maiores”. O passado épico é rebaixado, assim como o homem e a linguagem, sendo trazidos para a atualidade do presente, para a realidade possível e reconhecível.

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homem e da língua, eliminando a distância épica absoluta dos gêneros anteriores. A comicidade obtida através do rebaixamento e da aproximação da matéria representada é o fator desencadeante para essa eliminação. O riso e a comicidade são os fatores cruciais para um entendimento realístico do mundo, visto que proporcionam a análise de qualquer objeto de representação de ângulos nunca anteriormente possíveis. Ora, a parodização promove “a retirada do objeto do plano distante, a destruição da distância épica e de qualquer plano longínquo em geral” (BAKHTIN, 1993, p. 414).

Dessa forma, essa nova representação do mundo favorece a uma nova orientação da instância temporal e do mundo, trazendo para a matéria literária o contato com a realidade, a experiência e a proximidade da atividade e linguagem humana. O rompimento desse distanciamento temporal também atribui ao autor um novo papel, dando-lhe a oportunidade de interferir de qualquer ângulo possível na representação do mundo, como já dissemos. Enfim, a parodização é vista como um processo de atualização, posto que rebaixe a representação do homem e proporcione sua atualização e revisão como figura de representação. Desvirtualiza-o do discurso sério, trazendo-o para atualidade, para o presente. As representações literárias se reestruturam radicalmente. Deixa-se o passado glorificado e imutável para se dar conta do presente e sua mutabilidade e imperfeição com vistas com vistas ao futuro, ao porvir e suas consequentes atualizações. Sendo assim, “o romance tem uma problemática nova e específica: seus traços distintivos são a reinterpretação e reavaliação permanentes” (BAKHTIN, 1993, p. 420).

Bakhtin aponta ainda para a representação do personagem problemático, visto que “um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade” (BAKHTIN, 1993, p. 425). Para o autor, isso se deve à discordância do homem consigo mesmo, advinda do contato do gênero com o presente inacabado. Se esse personagem representa o homem desse gênero, logo deve simbolizar a incompletude e a complexidade do mesmo, desvendando sua incapacidade de plena realização. Disso, “surge uma divergência fundamental entre o homem aparente e o homem interior e, como resultado, leva o aspecto subjetivo do homem a tornar-se objeto de experiência e de representação” (BAKHTIN, 1993, p. 426).

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homem da realidade moderna – ora, do presente inacabado –, o romance será o primeiro gênero a abrir espaço para a alteridade. Assim sendo, o romance se atualiza constantemente, portanto, seus heróis são os heróis de um processo indestrutível, que nunca se esgota; enquanto os heróis épicos são os seres distantes de um passado absoluto e inalcançável para o reconhecimento humano, caracterizando um processo facilmente esgotável. Diferentemente do homem épico, o homem do romance não coincide consigo mesmo e são reveladas a sua fragmentação e suas problemáticas, pois, o seu interior não coincide com o seu exterior, o que confere o caráter crítico e autocrítico a este gênero.

O gênero romanesco instaura o momento de distanciamento do passado sacralizado, tendo como característica primordial o contato intrínseco com a realidade moderna, ainda em processo. Dessa maneira, “ao contrário da tradição clássica da ‘heroicização épica’ [o romance], tematiza cenas da realidade imediata, prosaica e contingente, ao mesmo tempo orientadas pela perspectiva distante” (LIMA, 2009, p. 221), e incorpora em seu método composicional a combinação de várias linguagens. Para Bakhtin, a burla imposta pelo romance – entendida como a satirização e subversão da ordem que engendra – é o que permite o exercício da ficcionalidade que o gênero vem a inaugurar.

Por último, antes de retomarmos a primeira característica formal do romance, proposta por Bakhtin – que versa sobre a tridimensão estilística e a consciência plurilíngue –, cabe uma breve explanação sobre a evolução do estudo estilístico com vistas a esse gênero. De acordo com autor, os estudos sobre o romance deixavam de lado a estilística fundamental do gênero, abordando apenas suas características de construção e temática. Apesar de uma grande mudança a partir dos anos 20, as especificidades estilísticas do romance eram relegadas nos estudos teóricos em que esse gênero era o objeto principal.

O estudo estilístico do romance é recente e problemático, pois a grande maioria dos estudos contempla apenas romances ou romancistas específicos. Nesse sentido, as especificidades do gênero romanesco acabam relegadas ao estudo do autor, da linguagem ou do movimento literário ao qual pertence. Sendo assim, o romance possui características específicas que independem do autor, do movimento literário, da linguagem, e o estudo dessas particularidades romanescas acaba sendo ofuscado ou dissimulado. Tal atraso num estudo estilístico profundo do romance deveu-se ao fato de esse gênero novo estar muito além do discurso literário que havia até aquele momento.

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certas unidades estilísticas heterogêneas que repousam às vezes em planos linguísticos diferentes e que estão submetidas a leis estilísticas distintas” (BAKHTIN, 1993, p. 73). Tais unidades estilísticas heterogêneas são:

1. A narrativa direta e literária do autor (em todas as suas variedades multiformes); 2. A estilização de diversas formas da narrativa tradicional oral;

3. Estilizações de diversas formas da narrativa (escrita) semiliterária tradicional (cartas, diários, etc);

4. Diversas formas literárias, mas que estão fora do discurso literário do autor; escritos morais, filosóficos, científicos, declamação, retórica, descrições etnográficas, informações protocolares, etc;

5. Os discursos dos personagens estilisticamente individualizados. (BAKHTIN, 1993, p. 74, grifo nosso).

Sendo assim, a inovação trazida pelo gênero romance deve-se à possibilidade de combinação dessas unidades em seu método composicional, o que explica suas características pluriestilísticas, plurilíngues e plurivocais. Ora, cada unidade estilística acrescida pelo romance possui sua própria linguagem, estilo e voz. Essa relação estabelecida entre o romance e as outras unidades estilísticas ocorre de modo harmonioso, de forma que a unidade acrescida responde à superior. Contudo, são independentes entre si, mesmo fazendo parte de um mesmo conjunto. Nesse sentido, o romance torna-se o gênero que abre espaço para a incorporação de outros gêneros literários e, também, extraliterários.

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Não apenas a épica, mas também outros gêneros literários mais distanciados também têm sua estrutura calcificada e seguem os moldes de um cânone. Surge disso uma dificuldade de teorização do romance como gênero, já que ele é o único que ainda permanece evoluindo, enquanto os outros já se estagnaram ou morreram. O romance expressa as tendências evolutivas do mundo, visto que é o único gênero nascido na era moderna e em tudo semelhante a ela, ao contrário dos demais, que por constituírem formas prontas e acabadas só podem se adequar, bem ou mal, ao mundo moderno.

Outra questão levantada por Bakhtin deve-se à convivência nada harmônica entre o romance e os demais gêneros. Segundo o autor, em épocas do passado longínquo, havia uma harmonização entre os gêneros dentro da unidade literária. Dessa forma, os gêneros podiam se complementar ou se limitar, mas não perdiam suas características naturais. Dentro da organicidade literária, só poderiam coexistir harmonicamente os gêneros já encerrados, com personagens precisos e limitados em suas construções. Contudo, o romance não fazia parte dessa harmonização. Bakhtin vê a incorporação de outros gêneros pelo romance como uma das maneiras de sistematização do plurilinguismo. Nesse sentido, o romance pode incorporar à sua composição tanto os gêneros literários quanto os extraliterários. Cada gênero incorporado conserva sua especificidade estrutural e linguística. Como não há possibilidade de harmonia para o romance, esse novo gênero parodia os demais gêneros, revelando “o convencionalismo das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes outro tom” (BAKHTIN, 1993, p. 399).

A partir do momento em que o romance torna-se um gênero dominante, a literatura inicia um processo de evolução, que Bakhtin denomina “criticismo dos gêneros” (BAKHTIN, 1993, p. 399). À medida que o romance vai vivendo o seu momento de intensa progressão, seu elemento crítico essencial traduz-se na utilização das estilizações paródicas dos demais gêneros. Dessa forma, os principais gêneros são travestidos, garantindo o criticismo como característica primordial de um gênero em constante evolução. Com o estreito contato do romance com os outros gêneros literários, estes romancizam-se. E, segundo Bakhtin, os gêneros romancizados têm adicionados às suas estruturas elementos romanescos como o dialogismo, a autoparodização (riso, ironia, humor) e um inacabamento semântico – característica essencial do contato com o presente inacabado.

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construção. Sendo fruto da realidade e sua constante evolução, o romance torna-se relevante para a renovação dos outros gêneros. Evidentemente, o romance é o gênero que adaptado ao tempo presente, aberto à experimentação constante, permanece sempre cético. Não tem a pretensão de promulgar verdades absolutas de um passado reverente. É o gênero que melhor representa a experiência da vida diária, o que justifica a utilização consciente da multiplicidade de linguagens e consequente heterogeneidade. Por conseguinte, a primazia do romance, em nosso mundo moderno, leva a essa romancização dos outros gêneros.

Segundo Bakhtin, romancizar um gênero significa incorporar a ele uma mudança significativa em sua expressão da visão de mundo, transformando-o em um gênero bivocalizado. Morson &Emerson acrescentam que o gênero que é bivocalizado consequentemente, bivocaliza sua linguagem, transformando-se num discurso que “requer um olhar oblíquo para outras maneiras de falar” (MORSON & EMERSON, 2008, p. 321). É importante salientar a teorização que Bakhtin faz a respeito dos gêneros literários e extraliterários para que possamos visualizar a quebra de paradigmas que o romance instaura.

Em Morson & Emerson encontramos uma ampla discussão das principais formulações de Bakhtin a respeito dos gêneros. Para os autores, essas formulações têm origem nos questionamentos de Medviédev. Os gêneros são vistos pelo autor como maneiras distintas de percepção e representação da realidade. Desse modo, eles são as formas que manifestam as diversas experimentações da realidade, da visão de mundo, o que retoma a consideração de Medviédev, segundo os autores, de que “a ‘obra total’ é uma conceitualização específica do mundo e o gênero é um modo global de concebê-lo, ponto de partida para uma conceitualização particular” (MORSON & EMERSON, 2008, p. 288).

Nesse contexto, os diversos gêneros – entendidos também como gêneros de discurso –, refletem, evidentemente, percepções diversas dos aspectos da realidade. Para os autores supracitados, o gênero não é forma, e também não é ideologia, mas “ideologia modeladora de forma – um tipo específico de atividade científica que incorpora uma percepção específica da experiência” (MORSON & EMERSON, 2008, p. 299). À medida que as experiências a serem interpretadas e percebidas tornam-se mais complexas, os gêneros de discurso desenvolvem-se e tornam-se cada vez mais distintos, tendendo para a assimilação da heterogeneidade. Assim, retomando os autores referidos acima, “os gêneros crescem juntos, anastomosam-se ou ligam-se” (MORSON &EMERSON, 2008, p. 309, grifo dos autores).

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esse recurso é entendido como bivocalização e garante a constante renovação dos gêneros. Outra questão discutida amplamente por Bakhtin e que nos interessa primordialmente deve-se à incorporação empreendida pelo romance de gêneros extraliterários. Por essa razão é que já tínhamos destacado o item 3 das unidades estilísticas heterogêneas incorporadas pelo romance: as “estilizações de diversas formas da narrativa (escrita) semiliterária tradicional (cartas, diários, etc)” (BAKHTIN, 1993, p. 74).

Esse processo não só é possível, como foi bastante salutar para a evolução da linguagem literária, na medida em que gêneros de uma determinada esfera eram incorporados por esferas distintas. Para Morson & Emerson, esses discursos extraliterários “podem penetrar na literatura e dar o tom para vários gêneros literários. Uma complexa interação de gêneros ocorre necessariamente, pois eles se acentuam uns aos outros” (MORSON & EMERSON, 2008, p. 310). Não obstante, o romance seria a forma de pensar que reflete de maneira mais aprimorada a realidade das experimentações dos seres, pois reflete a desarmonia dos mesmos e, por isso, é considerado como um gênero da subversão da ordem.

A partir do surgimento do romance, instaura-se uma relação conflituosa entre esse gênero desarmônico e os demais. Para Bakhtin, uma das grandes diferenças entre o romance e os demais gêneros concerne à sua linha dialógica, a saber, sua absorção de outros gêneros não literários e suas respectivas linguagens. Essa incorporação pelo romance dos gêneros não literários torna-o “mais próximo dos valores prosaicos, de uma apreciação das forças centrífugas e de uma percepção da bagunça essencial do mundo” (MORSON & EMERSON, 2008, p. 320). O caráter autocrítico, bem como essa nova zona de contato com o presente garantem ao romance uma abertura ao hibridismo, pois esse gênero transformador passa a incorporar, frequentemente, outros gêneros extraliterários, como cartas, diários, confissões, (auto) biografias, etc., travando com eles relações muito particulares. Assim sendo:

Todos estes fenômenos são extremamente característicos do romance, enquanto gênero, que está por se constituir. Pois as fronteiras entre o artístico e o extraliterário, entre a literatura e a não literatura, etc., não são mais estabelecidas pelos deuses. Toda especificidade é histórica. O porvir da literatura não é só crescimento e mudança nos limites das inabaláveis fronteiras de sua especificidade, ele abala as próprias fronteiras. (BAKHTIN, 1993, p. 422).

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gêneros mencionados por Bakhtin – confissão, relato de viagem, biografia, cartas – está o que mais nos interessa, o diário. Vale à pena transcrever a formulação de Bakhtin:

Porém, existe um grupo especial de gêneros que exercem um papel estrutural muito importante nos romances e, às vezes, chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco. São eles: a confissão, o diário, o relato de viagem, a biografia, as cartas e alguns outros gêneros. Todos eles podem não só entrar no romance como seu elemento estrutural básico, mas também determinar a forma do romance como um todo (romance-confissão, romance-diário, romance-epistolar, etc.). Cada um destes gêneros possui suas formas semântico-verbais para assimilar os diferentes aspectos da realidade. O romance também utiliza esses gêneros precisamente como formas elaboradas de assimilação da realidade. (BAKHTIN, 1993, p. 124).

Desse modo, o gênero incorporado pode conservar algumas de suas especificidades, todavia, adquire a bivocalização em sua composição. Assim sendo, esse gênero que é incorporado deixa de ser monológico e adquire caráter dialógico. Outra consequência possível prevista no processo de incorporação seria o apagamento das especificidades do gênero assimilado. Em suma, quando esses gêneros extraliterários são incorporados pelo romance, sua estrutura modifica-se, transformando-se em uma nova forma, posto que “introduzem nele as suas linguagens e, portanto, estratificam a sua unidade linguística e aprofundam de um modo novo o seu plurilinguismo” (BAKHTIN, 1993, p. 125). O autor chama atenção para o fato de que estas incorporações podem, ou não, ser engendramentos intencionais do autor.

Esse aspecto revela-se decisivo para a compreensão da estrutura híbrida de O amanuense Belmiro, já que a formulação de Bakhtin a propósito da apropriação pelo romance de gêneros extraliterários, como o diário e as memórias, permite uma revisão crítica das discussões até agora desenvolvidas pela crítica a respeito da presença do diário e da dimensão da memória no romance de Cyro dos Anjos. Merece especial importância a

consideração do diário em O amanuense Belmiro como “forma elaborada de assimilação da

realidade”, segundo o trecho de Bakhtin citado acima. A essa revisão crítica,

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2 AS FRONTEIRAS ENTRE ROMANCE E MEMÓRIA

A partir da leitura de A menina do sobrado e de O amanuense Belmiro tornou-se necessária a elaboração de um mapeamento comparativo das duas obras, que consistiu em estabelecer um quadro que concentrasse personagens, situações, episódios e ambientes das duas cidades referidas, tanto pelo romance quanto pelas memórias. Tendo como elemento central o narrador-personagem das duas obras, tornou-se possível estabelecer, a partir de certas convergências entre episódios do livro de memórias e do romance, as diferenças decisivas que permitem identificar, até certo ponto, a elaboração ficcional e a transformação de episódios contidos nas memórias.

Nosso intuito é o de mostrar a relação concreta entre O amanuense Belmiro (romance) e A menina do sobrado (memórias) para evidenciar como o romance baseia-se em situações que, mais tarde, foram narradas nas memórias. É possível estabelecer uma confluência de ordem geral na caracterização das personagens e da situação familiar no romance e nas memórias. No entanto, o mais importante é assinalar um conjunto de diferenças que assinalam a especificidade da ficção em O amanuenseBelmiro . Assim com base nesta perspectiva, esse mapeamento que constitui uma contribuição original do trabalho que iremos desenvolver – mostrará as dissonâncias inerentes dentro da semelhanças dos personagens e situações, detendo-se nas discrepâncias entre as situações do romance e das memórias. Discrepâncias que serão entendidas como as alterações ficcionais dos dados memorialísticos, tendo em vista a consideração da personagem de Belmiro. Pode-se dizer que como um todo, o mapeamento enfatiza essa transformação ficcional.

Deste modo, como se pode ver retrospectivamente, o romance mantém certas situações autobiográficas reelaborando-as. Esse mapeamento visa a mostrar concretamente como se manifesta em O amanuense Belmiro a relação entre romance (ficção) e memória. Nesse sentido, A menina do sobrado não será objeto de análise específica: sua leitura será limitada ao mapeamento e à questão principal das relações entre romance, diário e memória. Cabe ressaltar que as relações que iremos estabelecer entre a escrita ficcional e a escrita memorialística não possuem um propósito de catalogação. Pelo contrário, nossa intenção é promover o conhecimento e o exame das marcas que diferenciam a ficção das memórias, sem que um gênero esteja subordinado ao outro.

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grande e, a partir disso, o romance vai elaborar uma divisão entre a experiência de Vila Caraíbas – marcadamente idílica e pacífica – e a experiência em Belo Horizonte, sempre carregada de conflitos. Para analisarmos os aspectos convergentes e as diferenças decisivas presentes na análise das obras, selecionamos alguns elementos que julgamos mais essenciais para a elucidação retrospectiva da ficcionalização pelo relato memorialista. A escolha desses elementos levou em consideração a importância que assumem tanto para a construção do romance e do relato memorialista, quanto para o perfil psicológico dos dois narradores.

Por conseguinte, no desenvolvimento dessa análise, poderemos comprovar a relevância que cidade, família, perfis femininos e amigos possuem na construção das características dos mundos respectivos da ficção e das memórias, bem como na configuração dos traços definidores dos dois narradores. O primeiro elemento a ser analisado é a cidade. Inicialmente, trataremos da cidade como o elemento macroestrutural. Ou melhor, analisaremos como o espaço físico – no caso, as cidades de Vila Caraíbas, Santana do Rio Verde, Belo Horizonte – é apresentado nas duas obras, delimitando se convergem ou divergem de acordo com as perspectivas dos dois narradores, pois, como vimos anteriormente, é esse elemento que irá dividir as experiências de Belmiro.

2.1 A cidade

Em O amanuense Belmiro, a narrativa inicia-se com o narrador-personagem já então morador de Belo Horizonte. Em suas evocações do passado, nosso protagonista nos revela o nome de sua cidade natal, Vila Caraíbas, sendo esta uma cidade bastante rural. Lá vivera sua infância e é na juventude que vem para a capital iniciar seus estudos. A família Borba permanece em Vila Caraíbas, enquanto Belmiro vive em uma república de estudantes. Entretanto, com a morte dos pais, já tendo terminado os estudos e estando empregado em uma repartição pública, vê-se obrigado a obter uma casa para viver em companhia das duas únicas irmãs. Essas informações nos são dadas pelo narrador referindo-se ao seu passado, indicando que já vive em Belo Horizonte com as irmãs há bastante tempo.

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habitar em pensões e repúblicas de estudantes. Com a morte da mãe, o pai e as duas irmãs solteiras vão para Belo Horizonte e, a partir disso, passam a viver com o narrador e mais um irmão em uma casa.

Dessa forma, podemos perceber que os espaços físicos ocupados pelos dois narradores se assemelham bastante, haja vista que a cidade que retrata a juventude e a vida adulta por ambos seja explicitamente a mesma, Belo Horizonte. Entretanto, mesmo que as cidades natais não possuam o mesmo nome, a partir das características apresentadas ao longo das duas obras, é perfeitamente possível convergi-las numa mesma cidade. A esse respeito, destacamos o seguinte trecho de uma entrevista concedida à Edla van Steen, em que Cyro dos Anjos comenta sobre a fidelidade de suas memórias: “Há, por vezes, um ligeiro tratamento ficcional, mas na essência os fatos são reais. Fiz transposições, troquei nomes de pessoas, de lugares, levado antes pelo impulso de intensificar a realidade ou, talvez, pelo vezo de romancear as coisas”. (STEEN, 2008, p. 119). É preciso sublinhar a importância deste aspecto, pois mostra de modo específico a marca de certa ficcionalização no que se poderia considerar apenas com dimensão documental e verídica das memórias.

Num segundo momento, partiremos para uma análise contrastiva minuciosa do elemento cidade e como este tem influência direta na própria constituição dos personagens. Trata-se de uma análise comparativa da perspectiva que os dois narradores possuem sobre essas duas cidades, (tanto no tocante ao passado, quanto no presente). Em O amanuense Belmiro, examinaremos qual a percepção que Belmiro tem no presente de Vila Caraíbas, pertencente ao seu passado (e como ele a percebia quando ainda era um morador dela). Veremos também a percepção que Belmiro tem de Belo Horizonte, enquanto morador da capital. Essas abordagens serão contrastadas com A menina do sobrado, onde observaremos como o narrador percebe sua cidade natal enquanto morador dela – ou seja, como ele a percebia durante sua infância – e como ele a percebe já adulto, morando em Belo Horizonte. E, para finalizar, como esse mesmo narrador percebia a capital, o que esta representava para ele, enquanto menino, morador de Santana e enquanto adulto, já estabelecido em Belo Horizonte.

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representa seu terno refúgio, pois é onde pode buscar as delicadas paisagens, bem como “seu cortejo de doces fantasmas” (ANJOS, 2001, p. 26), que lhe servem de abrigo e lhe apaziguam a alma.

Dentro desse quadro do passado, a música aparece como um elemento fascinador que instiga suas paixões infantis. A cidade natal é extremamente rural e, mesmo lá, o personagem já vivia “metido em serenatas e noutras relaxações” (ANJOS, 2001, p. 27). A influência da música permanece intensa mesmo no adulto e acaba sendo o fator desencadeante de vários processos de rememoração na obra. A música traz à tona o mundo de doces melodias, dos vultos femininos e do lirismo que sempre fizeram parte de sua essência. Um claro exemplo se dá quando, ao passar pelo Carlos Prates, Belmiro se depara com uma roda de música da qual participam várias mulheres que estão a dançar. Ao ouvir aquelas melodias, passa a rememorar as rodas de música de Vila Caraíbas. Comparando a roda de música do passado com a do presente, logicamente percebe os elementos dissonantes, entretanto, a música faz com que as moças que ali estavam sugerissem as moças de seu passado. Dessa forma, Vila Caraíbas representa, também, a beleza e a inocência dos vultos femininos.

Tais lembranças evocadas no romance se assemelham à descrição da atmosfera infantil de Santana, presente em A menina do sobrado. As crianças se juntavam na rua para ver a roda das meninas dançando e cantando as cantigas de roda da época. Dentre elas, se destacava o vulto feminino de Risoleta, seu primeiro amor. Nesse sentido, a infância do narrador é marcada pelas cantigas de roda e serenatas que ouvia através das gratas vozes femininas, dentre as quais ressalta Risoleta, uma lembrança que se recusa a morrer no adulto, fato também confessado por Belmiro – e que veremos mais adiante, quando tratarmos de forma mais detalhada da vida amorosa dos dois narradores.

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descobria pessoas tão próximas da sua realidade participando das encenações, sentia-se decepcionado, pois isso desmistificava o espetáculo e dificultava suas idealizações, uma vez que, “não podendo a cabeça funcionar sem imagens” o processo encantatório estava desfeito. (ANJOS, 1979, p. 115).

O fato de Belmiro possuir um caráter essencialmente fabulador, a ponto de construir um mundo próprio onde realidade e sonho se confundem, pode estar ligado ao caráter fantasista que o narrador menino já apresentava no livro de memórias. É descrito como uma criança que gostava de ouvir estórias, desde as mais sofisticadas, contadas pelo primo, às mais simples, desprovidas de preocupações estéticas, contadas pela empregada da família, mas que vinham do vivido e, por isso, lhe despendessem maior atenção e que “servia a apoiar a minha imaginação, que exigia pouco e com rala matéria se habilitava a erguer vastas construções” (ANJOS, 1979, p.106).

Ainda sobre a importância da música nos processos de rememoração do romance, acreditamos que é parte constitutiva das alusões amorosas do personagem e será o meio pelo qual se darão muitas das rememorações do amanuense. Talvez por que a música tenha uma intrínseca ligação com o mito da donzela Arabela pertencente à sua infância. Em determinado momento do romance, Belmiro se lembra de um mito que lhe era contado durante sua infância nas noites da Fazenda, onde, num castelo, a Donzela Arabela, que morrera de amor, entoava tristes canções. O mito donzela Arabela possui relações sensoriais que ligam Belmiro à atmosfera de sua cidade natal, seja com relação à música ou às lembranças de lugares. Nesse contexto, Vila Caraíbas representa um mundo de idealização “romântica” aliado à sensibilidade, já que a criação do mito se deve ao luar caraibano, fruto de “todo o monstruoso romantismo, secreção mórbida da fazenda e da Vila” (ANJOS, 2001, p. 78).

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cidade, o partido do Largo de Baixo e o Partido do Largo de cima, do qual seu pai fazia parte. Também relata a briga que ocorre entre os dois e que rendeu uma noite de tiroteio na cidade. Entretanto, na maioria das vezes sem causar nenhuma morte. Fica evidente que a política e os conflitos que dela resultavam se faziam presente, tanto em Vila Caraíbas quanto em Santana.

Contudo, é importante destacar que há características que não fazem parte das alusões do amanuense, mas que se encontram presentes nas memórias. Um exemplo é o fato de Santana ser uma cidade francófila, na qual a família do narrador tem uma importância política muito grande. Não só por ter participado ativamente da política da cidade, pois o pai exercera, por algumas vezes, a função de Presidente da Câmara, mas, também, porque seu avô fundara a Santa Casa da cidade, sendo dedicada a ele uma festa comemorativa todos os anos. Outros acontecimentos que não são mencionados no romance no mesmo período, mas que julgamos importantes, pois marcam a constituição de seu perfil imaginativo, são as duas viagens que o narrador das memórias faz ainda menino. A exclusão de toda esta parte no romance pode ser vista em termos da economia do tratamento dado pelo enredo ao passado da família e, ao mesmo tempo, pela ênfase ficcional conferida em O amanuense Belmiro ao impacto de Belo Horizonte sobre Belmiro, em especial, de seu ambiente literário, como mostraremos a seguir.

A primeira viagem acontece aos onze anos de idade quando vai a Belo Horizonte pela primeira vez. Lá permanece por trinta dias com o pai e tudo que via lhe causava emoção e deslumbramento. A capital oferecia ao seu universo infantil o material de que não dispunha em Santana. Para ele, a cidade representava a existência de algo sempre novo a ser explorado, a civilização, as luzes mil, as histórias de Nick Carter, os parques e os bondes. A segunda acontece pouco tempo depois, quando visita o Rio de Janeiro, também em companhia do pai. Mas, para ele, dessa viagem não reterá lembranças significativas, posto que tudo aquilo de que sua alma ansiava ele conhecera em Belo Horizonte.

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início da vida na capital é marcado por um momento de transição e de sentimentos conflitantes. Se por um lado essa nova cidade representava um mundo novo repleto de entusiasmo, por outro lado havia a tristeza de deixar a velha cidade. O que amava em Santana era o fato de ser uma cidade pequena, uma velha moldura, porém, a modernização da mesma faz com que não se sinta mais parte dela. Mesmo assim, “a ideia de viver num centro grande me excitava, mas eu queria bem à terra e doía-me o pensamento de deixá-la” (ANJOS, 1979, p. 196).

O narrador das memórias fixa uma oposição entre uma Belo Horizonte, que, mesmo vazia naquela época, representava o movimento e a Santana da vida parada e monótona. Oposição esta que, no Amanuense, se dá em um nível mais problemático, onde o mundo confortante da infância dá lugar aos conflitos internos. Belmiro, ao descrever o início de sua vida em Belo Horizonte, faz o seguinte comentário “pus-me a andar na companhia de literatos e a sofrer imaginárias inquietações” (ANJOS, 2001, p. 28). Apesar desta oposição, os relatos do narrador em A menina do sobrado tratam, em termos básicos, da mesma situação. Não por acaso, os relatos do narrador em A menina do sobrado são da mesma natureza. Ambos se perdem na vida noturna em vez de se dedicarem ao verdadeiro propósito da mudança, que seria a continuação dos estudos. Nesse momento, nas memórias, a capital representa todo um mundo de novidades, frivolidades e frenesi. Ou melhor, todo o aparato necessário para o estudo da ciência da noite, tão inexistente na ruralidade de Santana.

Em suas divagações, Belmiro também traça um perfil dos hábitos e da vida mineira na cidade grande e que se assemelham aos que são descritos nas memórias. Belmiro vê a capital como uma cidade já um tanto modernizada, que perde a singeleza do interior que, de certa forma, caracteriza a Minas Gerais dessa época. Entretanto, ao mesmo tempo, a cidade conserva o espírito desse interior no que diz respeito à mentalidade dos circunstantes e ao fato de ser uma cidade completamente cerrada e cerimoniosa para tudo o que vem de fora. O mesmo tom se dá na narrativa memorialística, onde o narrador relata as mudanças políticas, culturais e a intensa modernização vividas pela capital, mas que, no entanto, não permitiam que se tomasse conhecimento das discussões e dos movimentos literários que estavam a todo vapor em São Paulo. A vida noturna que tanto o atraía e que oferecia vastas e sofisticadas opções não condizia com o isolamento em que se vivia.

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é responsável pelo estreitamento das relações do narrador com o mundo da literatura. Passa a travar discussões literárias, a dispender tempo em considerações sobre leituras literárias. Logo, suas atenções estavam sempre voltadas para a literatura e para o feminino, assim como nas lembranças do amanuense sobre o início de sua vida na cidade. Os dois narradores passam a maior parte da juventude na vadiagem lírica e, como pudemos observar, Belo Horizonte lhes oferecia material em abundância. Todavia, com o passar do tempo e findos os estudos, ambos se estabelecem em uma colocação pública.

Em meio a essas transformações, os dois narradores se referem a uma visita que fazem às suas cidades natais, e veremos que essas referências se apresentam de forma um pouco discrepante, configurando a especificidade da elaboração ficcional em O amanuense Belmiro. O relato de Belmiro se inicia com uma ratificação de que as velhas paisagens se acham no tempo e não no espaço. A partir disso, volta ao passado para relatar sua última ida à Vila Caraíbas, em 1924, quando a família já não existia, apenas as irmãs, que já residiam com ele na capital. O amanuense descreve as transformações físicas sofridas pela cidade ao longo dos anos, o que o leva a crer que sua necessidade de rememorar essas velhas paisagens é inútil. Buscar as lembranças da Vila Caraíbas que lhe dá abrigo é buscar uma espécie de morte, posto que as paisagens, as gratas vozes e as doces melodias já não estejam mais lá.

Já em A menina do sobrado, essa volta – a primeira de muitas que o narrador descreve – se dá em 1926, quando a família ainda reside em Santana, e Priscila, seu amor juvenil, ainda se encontra lá. A única semelhança está na no fato de narrarem as mudanças significativas dos dois espaços. Um importante momento do romance é quando Belmiro narra sua viagem ao Rio. Diferentemente de A menina do sobrado, essa viagem se dá na sua vida adulta e se mostra bastante relevante, posto que o personagem estabeleça comparações entre Minas e Rio. Essas comparações acabam por definir grande parte da constituição do seu próprio espírito. Belmiro vai ao Rio com a desculpa de fazer um relatório no Ministério da Fazenda e, estando lá, é movido por uma sorte de divagações sobre o mar e sobre personagens machadianas que, em sua imaginação, o acompanharam por toda a estadia.

Referências

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