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O romance da desilusão

5 A FORTUNA CRÍTICA DE O AMANUENSE BELMIRO

5.3 O romance da desilusão

Em “À sombra das moças em flor” (2004)42, João Luiz Lafetá também reconhece

o caráter estratégico da obra, que fora levantado por Antônio Candido. No entanto, a estratégia não estaria apenas na identificação do movimento de báscula entre a realidade e o sonho, mas também na maneira como Cyro dos Anjos antecipa e manobra os elementos de sua narrativa, de forma a impor, de maneira satisfatória, a verdade e a história do personagem. Assim, o primeiro capítulo antecipa o romance e dá uma amostra do que será o dilema de Belmiro: “A busca solitária de um sentido para a vida, empreendida pelo romance às voltas com o mito da Donzela Arabela, seu anseio de plenitude, sua aspiração à totalidade, sua melancólica e resignada certeza do fracasso, sua rica interioridade" (LAFETÁ, 2004, p. 26). Estamos diante de uma prosa que recua e avança, assim como a vida do personagem que, sob sua perspectiva, se processa entre arrancos e fugas. Nesse sentido, o autor evoca os problemas existenciais que serão tratados no romance, porém, para que a narrativa não caminhe para um

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caminho tortuoso da metafísica, há um desvio no qual temas mais inofensivos adentram na conversação.

Esse método, “permite a manutenção da leveza de estilo, que apenas aflora os problemas (arte do romancista...), embora situando-os desde já numa perspectiva dada: que atitude assumir perante a vida?” (LAFETÁ, 2004, p. 22). Em consequência desse fator estratégico, Lafetá vê no Amanuense uma experiência bem sucedida em meio ao modernismo de 1930, pois nisso reside o equilíbrio entre experimentação estética e ideológica do romance. Desse modo, o projeto estético se reflete no projeto ideológico e vice-versa. Se na obra temos o conflito interno do marcante personagem, que reflete o conflito do homem moderno, o mesmo acontece na sua estrutura. O grande diferencial da leitura crítica de Lafetá consiste em interpretar O amanuense à luz do conceito de romantismo da desilusão, desenvolvido por Georg Lukács em sua teoria do romance. Segundo essa acepção, ganha destaca o grande conflito vivido pelo narrador-personagem, que se reflete tanto no plano estético quanto no plano ideológico da obra. Esse conflito é o traço característico de um romance que reflete a desilusão e o desencantamento promovido pelo mundo moderno, cuja teorização fora feita por Lukács em 1915 e Lafetá assim a resume:

O romance seria, portanto, a estória de uma busca do sentido da vida, sentido que deixaria de ser imanente quando, em qualquer ponto da História, a totalidade da vida rompera-se, em decorrência da separação entre essência e existência. E o herói do romance seria, nesta linha de raciocínio, o ser que procura restaurar a totalidade, estabelecendo, pelo encontro de valores éticos autênticos, uma perfeita adequação entre alma e realidade. (LAFETÁ, 2004, p. 26).

Sendo assim, o herói é um ser problemático que apresenta um completo desequilíbrio entre a sua interioridade e a sua exterioridade – sua alma é demasiado vasta em relação ao mundo. O que configura esse tipo de romance é a sua problemática essencial, a existência de uma inadequação entre alma e realidade e o herói, também problemático, trava uma luta entre o mundo exterior e seu mundo interior. Nesse sentido, a tensão reside no fato de a realidade não contribuir para a efetiva concretização dos desejos inerentes à riqueza de sua alma. Por essa razão, o herói que aspira à completude existencial inicia uma busca pelo sentido da vida. Esta busca empreendida pelo herói estaria de antemão destinada ao fracasso, porque o mundo já se encontraria degradado e, por consequência, os “valores éticos autênticos”. A desilusão configuradora do romance jaz na impossibilidade de realização da interioridade do herói. Belmiro vive em grande conflito – grande traço do seu processo constitutivo – com o meio, pois, de um lado está a riqueza do seu mundo interior, e de outro, a

realidade que o impede de ser tudo aquilo que deseja ser, e até aquilo que ele mesmo já o é, mas no seu mundo interior. Assim, “Escrito em forma de diário, narrando o dia-a-dia de seu autor, o livro repousa principalmente no conflito constante que decorre da interioridade do funcionário em choque com o mundo convencional” (LAFETÁ, 2004, p. 28). Em consequência desse conflito é que ele empreende seus mergulhos no passado, para tentar buscar nessas rememorações dos “tempos idos” os seus pontos de apoio.

Na verdade, o que ele busca é um sentido para a sua vida, caracterizando a eterna busca pela essência da vida, que determina a configuração do romance moderno, segundo a teoria de Lukács. Com o intuito de atingir o equilíbrio, harmonizando a sua essência e sua existência, é que a sua escrita se volta para o relato da vida ordinária e o presente teimará em reinar absoluto por entre as rememorações. Se o objetivo inicial era o de narrar as recordações do passado e de sua infância em Vila Caraíbas, o efeito torna-se outro. Porquanto exista a necessidade de processar a realidade através da análise é que o livro de memórias transforma- se no diário. Porém, ambos se interpenetram. Para Lafetá, esse conflito constante é o que caracteriza o eterno movimento de báscula entre a realidade e o sonho, a que Antônio Candido se referiu em 1943. A oscilação entre as duas realidades opostas (a interior e a exterior) transfigura-se no sentimento amoroso de Belmiro. O amor como valor ético autêntico seria o meio pelo qual o narrador-personagem busca reunir essência e existência, porém esse modus operandi não atinge êxito. A totalidade desejada e perseguida através do amor “é conseguida aqui através de um mito infantil, uma forma ‘pretérita’ que permanece na consciência do herói e encarna o ideal a ser atingido” (LAFETÁ, 2004, p. 33).

Dessa forma, Belmiro teima em unir a figura de Arabela, de seu mundo interior, e a figura de Carmélia, do mundo exterior. No entanto, as duas não podem ser a mesma pessoa e a pretendida plenitude amorosa fracassa. O duplo movimento de recusa da vida e de entregar-se à ela é o que propicia o surgimento de um mito, que será o fator mediador desse mesmo conflito em que “O mito Arabela é a interioridade, a moça Carmélia é a realidade objetiva” (LAFETÁ, 2004, p. 33-4). Sendo assim, o movimento de báscula entre a realidade e o sonho traduz-se no movimento de oscilação do amanuense entre a criação de seu espírito, sua essência sentida através do mito Donzela Arabela, e a realidade, a existência real de Carmélia. Na tentativa de tornar-se pleno, Belmiro tenta fundir essas duas configurações Arabela/essência e Carmélia/existência.

O amor é a forma com que Belmiro tanta alcançar a sua totalidade, visto que esse sentimento seria um “valor ético autêntico”. Entretanto, o contato com o amor vivido por Belmiro só se dá através do mito, que não é um valor ético autêntico, mas apenas um

elemento mediador, assim como a figura da mulher. Também está associado ao amor o problema Fáustico, bastante importante para a configuração do romance. Da mesma maneira explicitada anteriormente, o problema Fáustico estrutura-se em torno do movimento de oscilação entre a realidade e o sonho, pois “Belmiro embora sabendo que Arabela não é Carmélia, e que o mito é apenas representação simbólica de algo, insiste em procurar no símbolo a realização de sua felicidade, ao mesmo tempo em que confronta com a realidade e o desmistifica” (LAFETÁ, 2004, p. 35).

O amanuense, ao mesmo tempo em que vê sua entrega ao mundo dos sonhos e da convivência com o mito como única escolha possível, também não consegue desligar-se do mundo racional, do exercício da inteligência. O excesso de racionalização das coisas vence a fruição do sentimento e “o conhecimento da ‘face real das coisas’ destrói a única possibilidade do amanuense atingir a felicidade através do amor” (LAFETÁ, 2004, p. 36). Como opção para o dilema do amanuense – do homem inserido no mundo moderno – Silviano alude à conduta católica, ou melhor, à renúncia da vida e de seus aspectos mais excitantes. Esse modo de supressão da vida é objetado por Belmiro, porquanto o que ele empreende, ao longo do romance, é justamente uma busca por valores éticos autênticos que o conduziriam à transcendência e que estariam presentes na própria vida.

No entanto, “O desalento que se sente quando se constata a inutilidade da busca, seu inevitável fracasso, constitui a essência do lirismo que perpassa o livro e, ao mesmo tempo, a tentativa última de absorver o mundo exterior dentro da interioridade” (LAFETÁ, 2004, p. 30). Segundo Lafetá, é no lirismo que reside a semelhança e a divergência entre Cyro dos Anjos e Drummond. Ambos são líricos, contudo, o eu lírico do “Poema de sete faces”, cujo pequeno excerto encerra o romance, “acaba por absorver, na interioridade de seu lirismo, no seu coração mais vasto, todo o vasto mundo” (LAFETÁ, 2004, p. 31). Já o “eu” amanuense, deixa claro que sua interioridade não consegue abarcar a complexidade e amplitude da vida, pois sua alma é muito mais vasta. A partir do momento em que o mundo e seu peso se impõem, inicia-se a busca de sua essência, justamente para dar conta da complexidade da realidade exterior.

É nesse sentido que “a imanência do sentido à vida, encontra-se no tempo. Anular o fluxo do tempo é reencontrar a vida em sua totalidade” (LAFETÁ, 2004, p. 31). Por essa razão, o amanuense se esforça para anular o presente, que representa a exterioridade, através da rememoração do passado, que representa a interioridade. Não apenas isto, Belmiro também tenta anular o tempo através do processo amoroso, procurando na Carmélia da exterioridade, a Arabela e a Camila de sua interioridade. Para Belmiro, o espírito cotidiano está ligado ao

tempo. Porém, por mais que consiga voltar no tempo, esse espírito já será outro. O tempo é o fator desagregador que torna evidente o fracasso de sua busca.

5.4 Uma imersão no “brejo das almas”

Do ponto de vista do sistema literário, a década de 30 revelou-se bastante conflituosa. Muito do que se julgou definidor do período, como o romance social, deixou de ser encarado como verdade absoluta. Devido a uma modificação da visão da época de 1930, houve a possibilidade de considerar seu caráter multíplice, dando relevante espaço aos outros modos de experiência literária. Nesse contexto, a leitura crítica de John Gledson em “O funcionário público como narrador: O amanuense Belmiro e Angústia” (2003) mune-se de uma perspectiva comparativa, em que são associadas as construções ficcionais de Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos a certos aspectos da poética de Carlos Drummond de Andrade em Brejo das almas.

Sua proposta é a de fazer um exame detalhado da década de 1930, época comum a estas obras, analisando a equivalência entre elas, sem deixar de lado as diferenças imbuídas nessa comparação. Nesse sentido, o aspecto comum destas obras não se deve a uma questão de fonte e influência, mas de uma situação comum vivida pelos autores, configurando a inter- relação entre o contexto histórico-social e estas produções. Os problemas que esses autores abordam são comuns à década, porém a diferença reside no fato de que cada um os trata à sua maneira. Para Gledson, tanto a obra de Cyro quanto a de Graciliano são problemáticas no sentido de que não são facilmente classificáveis, pois “fazem uma ponte sobre a importante divisão entre o social e o individual (ou psicológico)” (GLEDSON, 2003, p. 204).

Dessa forma, ambos têm um traço comum com o romance social, por abordarem o tema da dissolução da linhagem rural, em que de um lado temos a “decadência digna” da oligarquia mineira, e de outro, a “decadência humilhante” da oligarquia nordestina. Todavia, o panorama histórico-social mostra-se de um ponto de vista individual, em que os dois narradores, oriundos do sistema rural decadente, padecem de uma angústia proveniente, dentre outras coisas, dessa própria decadência. Os dois narradores também encontram uma forma de existir através da escrita, seja pelo exercício da profissão, seja pelo exercício de análise de si e do meio. Assim, a angústia de ambos também encontra uma exploração

literária. O diário de Belmiro é uma prova de sua crença na escrita como expressão de si e na importância do conhecimento de si, embora ironize muitas vezes este mesmo procedimento.

Da mesma maneira que Belmiro julga essencial para si a escrita de sua vida, também a ridiculariza e se mostra cético com relação à sua real importância. Segundo Gledson, essa contradição acerca da escrita conduz “a um confronto entre a literatura como liberdade e como produto”, reflexo da posição controversa do narrador, que também estaria presente em Angústia (GLEDSON, 2003, p. 208). A conflituosa maneira de ver a literatura e a escrita, endossa a perspectiva do crítico de que “Os dois autores expressam, no âmbito da própria literatura, um profundo ceticismo a respeito do que a literatura pode afirmar.” (GLEDSON, 2003, p. 209). Para Gledson, a narrativa em primeira pessoa também garante a profusão desses conflitos, já que ela impõe uma perspectiva dupla ao leitor. Ou melhor, a narrativa em primeira pessoa põe em cheque a veracidade do que é relatado pelo narrador, pois os fatos perpassam pela análise pessoal, podendo ser deturpados pela visão de quem os relata. Contudo, o Amanuense possui uma consistência ideológica coerente, sem pesar demais na abstração e complexidade dos problemas que expõe. A convicção de Belmiro na impossibilidade de compreensão plena de qualquer ser humano, pois há em cada um de nós abismos impenetráveis, encontra suas raízes em Bergson e Proust.

Este abismo que se abate sobre a figura do narrador-personagem também se reflete em sua posição incerta diante das instâncias temporais, não por acaso observamos sua constante oscilação entre passado e presente. Para que o narrador-personagem não se feche na confusão de sua mente, é necessário que o autor ultrapasse a visão limitada de seu próprio personagem – o que não acontece no Amanuense, uma vez que “mesmo as dúvidas e a luz irônica jogada na narração do amanuense levantam questões que o próprio autor não dá sinais de responder.” (GLEDSON, 2003, p. 213). Nisto reside a grande diferença entre as narrativas de Cyro e Graciliano, pois este último faz uso de uma relação causal bem definida e todas as ações do narrador-personagem Luís são explicadas, até mesmo as relações entre passado e presente, que ele mesmo não tem pleno conhecimento. A inação presente nos dois romances – mas que se realiza de maneira díspar – expressa de forma decisiva a dissolução comum a ambos e que os torna incapazes de manifestar qualquer tipo de ação. “Este é, então, o ‘brejo das almas’ habitado pelos dois romances. A frustração era real o bastante para os autores tanto quanto para os narradores [...]” (GLEDSON, 2003, p. 217). Soma-se a isto a tão já mencionada identificação de Cyro dos Anjos com seu narrador, que também se aplica a Graciliano Ramos.

A estruturação dessas duas narrativas é, de certa forma, de uma complexidade ímpar que não pode ser repetida, haja vista a produção literária posterior dos dois autores. É essa dissolução do indivíduo a que Drummond faz uso para retratar “um estado espiritual compartilhado, um ‘brejo das almas’ que o poeta mineiro considerava uma característica da geração modernista no começo da década de 30.” (GLEDSON, 2003, p. 219). A crise retratada se desencadeia devido a alguns fatores, dentre eles, a passagem da sociedade rural para a sociedade urbana, ou melhor, a decadência da primeira e o fortalecimento da segunda. Diante disso, os antigos alicerces se rompem e não há mais escoras para o indivíduo: família, política, estabilidade social estão estremecidas. Propositadamente, Belmiro procura na amizade um meio de apoiar-se. Segundo Gledson, a presença de alusões a Bergson e a Freud nesses romances são utilizadas para a descrição da imobilidade vivida pelos intelectuais, “são maneiras estruturalmente necessárias de retratar sua incapacidade de mudar, de se desenvolver de um passado a um futuro possível ou imaginado.” (GLEDSON, 2003, p. 226). Posto isto, vemos que a imobilidade vivida e sentida pelo intelectual são expressas no Amanuense: a inação e imobilidade do personagem, a incapacidade de optar pelo passado ou pelo presente, o encerramento de Belmiro num cargo público burocrático – sinônimo maior da imobilidade.

5.5 O Amanuense e a década de 30

A leitura de Luís Bueno (2006) procura fazer um esboço histórico-social da década de 1930, para que se possa entender a produção literária do período e ainda, discutir e situar O amanuense Belmiro em meio a estas produções. Sua intenção é discutir a situação problemática desse romance, já que não se insere no quadro canônico dos anos 30, que tendeu a glorificar o romance social inicialmente. A década de trinta viveu tensões tanto no campo político – polarização entre direita-esquerda – quanto no campo artístico, polarização entre romance social e romance intimista ou psicológico.

Apesar das revogações propostas pelo modernismo de 22, sobretudo, no âmbito da linguagem, a produção literária da década de 30 rompe com o extremismo estético e ideológico de 22. No começo de 1930, a representação do outro conduz cada autor ao emprego de diferentes métodos e, segundo o pensamento de Luís Bueno, Cyro dos Anjos é um dos poucos autores da época que propõe uma solução complexa para a representação do

outro. Luís Bueno procura esclarecer que a crítica literária enxergava nas produções do período essa visão polarizada, com sobreposição da linha social, em que predominavam as representações socializantes de cunho reformista. Mal se reconhecia o romance intimista como produção do mesmo período, já que ele não estava imbuído desse mesmo objetivo de propor qualquer solução para a realidade social. Em meio a essa conjuntura, surge a narrativa de Cyro dos Anjos, que não encontra consonância com as produções de até então. A essência da obra estrutura-se em torno de um conflito, uma tensão que reflete em vários níveis. O primeiro movimento conflitante está na relação entre passado e presente, que também se configura na relação entre o livro de memórias que Belmiro tem a intenção de escrever e o diário que ele acaba por engendrar. Para Luís Bueno, este já é o primeiro indício da manifestação da realidade social no romance.

A importância do momento histórico, com todos os acontecimentos do período – sobretudo, a revolução de 1930 – leva a uma necessidade de posicionamento do intelectual, principalmente. No entanto, “é nesse momento, e que o presente chama, exigindo mesmo uma posição, que Belmiro Borba, um angustiado pela incapacidade de se definir no presente, resolve fazer um livro de memórias.” (BUENO, 2006, p. 552). O projeto de memórias não vinga, pois não se sobrepõe ao presente, aparecendo apenas em pequenas evocações que cumprem o objetivo de justificar os acontecimentos do presente. O livro de exumação do passado dá lugar ao exame do presente. Dito isto, fica a dúvida, “Se o passado não interessa realmente a Belmiro, o que dizer do conflito que haveria nele entre a vida rural e a vida urbana?” (BUENO, 2006, p. 554). No decorrer do romance, o que se percebe é que, quando Belmiro se refere ao passado, não há uma referência à vida rural, mas sim à vida urbana em Vila Caraíbas, de forma que permanece evidente que o aparecimento da vida rural dá-se apenas “a partir do que está no presente do narrador” (BUENO, 2006, p. 555).

Sendo assim, Luís Bueno afirma que o passado não apresenta grande significado na vida pessoal de Belmiro, contrariando as palavras proferidas pelo próprio amanuense ao longo da narrativa. O romance se desenvolve numa ossatura fixa, em que cada anotação diária é dedicada a determinado acontecimento que vai sendo explicado. E é nesse sentido que o passado é revelado, apenas para esclarecer algo que se passa no presente. Para o crítico, a intenção de Belmiro é menos de se aprofundar nas anotações do diário que tergiversar sobre elas. O amanuense não busca compreender nada profundamente, mas pacificar os conflitos que vão lhe aparecendo. Na verdade, Belmiro escreve para se sentir olímpico diante da existência e é o diário que traz a ele essa sensação. Cumprindo esse propósito, há uma fuga

obsessiva de ir a fundo a qualquer divergência, “até quando ela, em princípio, poderia favorecer o seu ponto de vista” (BUENO, 2006, p. 557-558).

Para Bueno, o narrador-personagem revela uma inaptidão em entrar em contato com o outro, para evitar a possibilidade de conflito e é ainda essa aversão que o faz repelir a multidão. No entanto, ao mesmo tempo em que recusa à vivência plena, anseia por entregar-se a ela. Nesse contexto, Luís Bueno vê a encarnação do mito Donzela Arabela na moça Carmélia o meio mais eficaz de expulsar qualquer possibilidade de vivência. Belmiro não quer mergulhar no fluxo da vida, “O que o amanuense quer parece impossível: que a vida se fixe e permaneça estável. E ele, de alguma forma, sabe que isso é impossível” (BUENO, 2006, p. 561). A importância que a sua roda de amigos assume em sua vida também cumpre o desejo do narrador-personagem de sentir que a vida está fixa e imóvel. Por essa razão, o