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5 A FORTUNA CRÍTICA DE O AMANUENSE BELMIRO

5.6 Um romance singular

A leitura crítica de Alcir Pécora no posfácio do Amanuense, intitulado “Um romance reticente” (2006), já de início constata que, ao romance, importa menos a história que o move que outros elementos de sua construção. O nome da instituição burocrática na qual Belmiro exerce seu ofício de amanuense, a Seção do Fomento Animal, ironicamente indica a realização do trabalho que nada tem de trabalho, posto que fomente apenas o ócio daquele possui inigualável “traquejo com essas operações perfeitamente inúteis” (PÉCORA, 2006, p. 229). O narrador-personagem não é o primeiro gênio dentro de um corpo subalterno, representado pela literatura moderna. A monotonia de sua vida é interrompida por um episódio de carnaval que une a figura de uma mulher “ao passado, à infância, e mesmo a um tempo que já se insinua fora do tempo, desfocado pela memória longínqua”, (PÉCORA, 2006,

p. 230) transformando-a numa entidade ilusória formada pela junção de Carmélia-Camila- Arabela. Ilusória, posto que a associação entre a figura de uma moça real, o mito infantil e as lembranças deturpadas da namorada de infância, não configuram um ser real. Munido de tal “superabundância sentimental”, o Dom Donzel da Rua Erê põe-se a alimentar suas ilusões e a escrever sobre seu passado e seu presente, atitude esta que segue fomentada pela Seção. Esse imbróglio é o que engendra a narrativa de Belmiro:

[...] O amanuense Belmiro é todo ocupado pelas fantasias diárias em torno de Carmélia e Camila – muitas vezes confundidas entre si, como a própria proximidade dos nomes indica –, ambas violentamente amadas na imaginação do amanuense. Tais fantasias constituem a base do repertório lírico a pontuar a banalidade esvaziada do dia-a-dia [...]. (PÉCORA, 2006, p. 231).

Isto conduz Pécora a buscar no que estaria, afinal, a força do romance, já que este enredo seria simplório e a caracterização dos personagens não apresentaria grande riqueza, exceto a construção de Belmiro. Desse modo, os personagens representam tipos que não agem, mas que se apresentam através de relações de oposição narradas por Belmiro, que “vai enredando a narrativa em perplexidades e dilemas insolúveis a ponto de produzir o seu efeito mais notável: um insolúvel de gêneros dentro de gêneros bem conhecidos como o romance, o diário e o memorial.” (PÉCORA, 2006, p. 232). Toda a obra revela-se um labirinto de antagonismos para os quais não há saídas. O primeiro deles refere-se ao problema fáustico, apontado por Silviano, e para o qual haveria duas soluções a se adotar. A primeira, a conduta católica, em que o homem abdica de toda forma de entrega à vida através da realização de seus desejos, ou seja, a “supressão da vida”. Já a segunda, em oposição à primeira, refere-se à renúncia ao conhecimento, para a comunhão com os sentidos e a satisfação dos desejos.

A renúncia ao conhecimento, nesse caso, é necessária, pois é ele quem estrangula a própria vida. Belmiro oscila, mas não opta por nenhuma destas soluções, posto que sua abdicação da realização do desejo não seja voluntária. Muito menos sua não-efetivação tem razões na prática metafísica. Para Pécora, o mesmo se dá com Silviano, que não lança mão da conduta católica e sua tendência à metafísica estaria mais para uma “estratégia de exibição pública e escapismo letrado do que pensamento consequente sobre a vida ou mesmo sobre a filosofia” (PÉCORA, 2006, p. 234). O segundo antagonismo possui relação direta com o sentimento amoroso. A oscilação do amanuense também se configura entre o amor pela Carmélia real – ser de carne e osso – e nesse caso, a conduta correta seria procurar meios de realiza-lo – e o amor pela figura mítica – junção da figura sobrenatural de Arabela à

lembrança deformada de Camila. Assim, há uma “ligação vicária entre a epifania fugaz do presente e a plenitude imaginária de um passado tornado maravilhoso pela memória infantil” (PÉCORA, 2006. P. 234 ). Belmiro se vê diante de um impasse que não consegue resolver. E nem quer:

[...] ao tornar Carmélia sublime, impede-se de conquistá-la na vida real, e, ao encontrar nela um novo corpo para o sonho, impede a autossuficiência da imaginação do passado. De outra maneira, se é o seu lirismo devaneador o que aparentemente distingue Belmiro da vida miúda de burocrata, é esse mesmo lirismo que o entrega, sem saída, à inexorável dispersão maquinal do quotidiano anódino do escritório. (PÉCORA, 2006, p. 234-235).

Essas relações antagônicas do personagem se refletem no plano da escrita, pois esta também não consegue se resolver, oscilando entre a narrativa do presente contida no diário e o projeto de memórias que evoca o passado, tornando o romance reticente. Quando Belmiro decide escrever sobre seu passado, o faz numa clara intenção de se distanciar da desagregação promovida pelo presente. Com isto, percebemos a ilusão do narrador- personagem sobre seu próprio passado, que ele enxerga como algo positivo a ser reconhecido. Se em tal empreendimento Belmiro lograsse êxito, teríamos um livro de memórias em que o passado mítico e sentimental seria o pano de fundo para a construção de personagens transcendentes, nos moldes de Camila e Arabela:

O seu efeito lírico básico seria a produção de um passado sublime, e a sua vontade de literatura se entenderia adequadamente como escapismo pragmático contra o presente medíocre da repartição, onde não há possibilidade de sustentação verossímil de personagens não medíocres. (PÉCORA, 2006, p. 235).

Assim sendo, os constantes antagonismos do romance não permitem que o livro de memórias se efetive. As memórias cedem passagem à escrita do cotidiano, porém não deixando de contaminá-la, “e o lirismo do passado quer se projetar, contraditoriamente na anti-lírica do presente” (PÉCORA, 2006, p. 236). Logo, no nível da escrita também são desencadeadas algumas relações antagônicas em que ora descreve-se o presente, ora contempla-se o passado, ora estamos diante de um diário, ora vemos resquícios de um memorial. Esse antagonismo formal induz Pécora a admitir que:

[...] Belmiro é tão inepto para escrever um diário, quanto é para produzir um relato de memórias. Os eventos do presente, enquanto sucessão miúda de coisas sem

importância, não são inteiramente invulneráveis à irrupção do sonho. [...] Memorial e diário: ambos os gêneros se misturam, tomando formas vicárias, falhadas. (PÉCORA, 2006, p. 237).

Isto pode ser compreendido se pensarmos que Belmiro faz várias reflexões sobre o diário e, desse modo, não há da parte dele uma entrega simples ao ato de escrever um diário. O diário é várias vezes suspenso ou alterado pelo movimento da narrativa, no desenvolvimento de situações e de caracterização das personagens, bem como pela evocação do passado mítico. O antagonismo entre memória e diário conduz à elaboração do gênero romance que abarca os dois anteriores. Esse romance é a possibilidade engendrada por Belmiro para existir em um tempo tão complexo como o presente, sendo este o tempo do inacabado que, assim como a Seção, não fomenta coisa alguma. A literatura é, nesse caso, uma maneira de inserção no mundo, “Escrever, desse ponto de vista, significa um esforço de encontrar um enredo pessoal na existência, que não seja apenas invenção da memória ou determinação do ofício estúpido” (PÉCORA, 2006, p. 238). Escrever um romance representa a tentativa de Belmiro de não se entregar à crueza da realidade e de não se curvar à impossibilidade de rememoração. Posto isto, conclui-se que a realização do romance se dá pela inter-relação entre os três gêneros – diário, memorial e romance – que “não se fixam, nem se cumprem” (PÉCORA, 2006, p. 239) e que por essa razão tornam a obra essencialmente singular no panorama do romance moderno brasileiro.

5.7 “A vida como literatura”

Em A vida como literatura (2006), Silviano Santiago começa investigando as razões que levam Belmiro a encerrar de maneira súbita o diário de sua vida. Aos 38 anos e metido no procedimento de escrita há um ano e meio, por que não haveria mais nada a escrever para alguém que está ainda na metade da vida? Utilizando-se das inúmeras relações intertextuais entre o romance e a poesia de Drummond, indaga: “E agora, leitor?” (SANTIAGO, 2006, p. 11). De acordo com o crítico, tanto o leitor quanto o amigo Carolino são figuras que Belmiro incorpora à vida na última hora e ambas possuem em comum o desejo de conversar com este que escreve.

Porém, essa interrupção repentina do narrador-personagem impede que o leitor converse com “anotações ditas autobiográficas que, em virtude do fim brusco que lhes é dado, apenas lhe passam uma vida pela metade?” (SANTIAGO, 2006, p. 11, grifo do autor). Contrapondo-se à estética das narrativas oitocentistas, nesse romance a última página do diário de Belmiro corresponde à metade de sua experiência existencial. Ao aludir a certos conceitos de Walter Benjamin sobre o narrador, a leitura crítica de Silviano Santiago parte do princípio de que um romance oferece ao leitor o sentido de uma vida, ou melhor, o leitor o lê como se fosse a história de uma vida. A escrita de Belmiro é fruto da penetração da realidade em sua vivência, sendo que esta penetração ocorre de maneira traumática, dela resultando a necessidade de escrever. Através da escrita, o narrador-personagem empreende uma fuga do contato devastador com o real, estruturando simbolicamente a realidade em forma de diário – que reflete o modo enviesado como a realidade é sentida. Esse modo de representação da realidade oblíqua é fomentado por um processo de construção da ficção em que referências autobiográficas são transmutadas para uma espécie de biografia ficcional. O que antes era autobiográfico passa por uma “despersonalização” e se transforma em ficção. Esse processo é assim descrito:

Ao rejeitar a espontaneidade da realidade que lhe jorra sob os olhos como fator de criação literária, ao buscar obsessiva e diuturnamente sentir o modo violento e brutal como a exterioridade do real o traumatiza, violentando-o, ao deslocar o eixo da vida do plano do real para o plano da realidade simbolicamente estruturada, dos signos da existência para uma grafia-de-vida, o ficcionista Cyro dos Anjos explora de forma oblíqua a maneira como os choques e confrontos com a experiência o fazem imaginar, refletir e escrever. (SANTIAGO, 2006, p. 17, grifo do autor).

Os confrontos com a experiência, ou seja, com a vida, são os fatores desencadeantes do processo de escrita de Belmiro. Existir é, em grande medida, uma experiência traumática que conduz a uma necessidade de refletir e, assim, estruturar o real simbolicamente. O amigo Silviano também sofreria desse duro embate com o real, embora não tenha a consciência do fato, portanto, não empreende o mesmo procedimento de Belmiro. Por essa razão, Silviano aparece apenas como aquele que toma para si uma atitude pedante e de autoglorificação e que não quer ter consciência do trauma. Para tal, seu método de prevenção – falso, como se verá – é a conduta católica, que nessa leitura consiste em não querer despertar-se para o real, escorando-se na religião. Dessa forma, é um meio de sublimação do contato traumático com a realidade através de uma conduta cristã, que expurga traumaticamente a própria vida. “Silviano trapaceia com a realidade” (SANTIAGO, 2006, p.

20), e é dessa forma que Belmiro nos fornece uma primeira perspectiva do caráter de Silviano como o mentiroso e o mistificador, capaz de dar à realidade perspectivas múltiplas, mas todas contaminadas pelo seu egocentrismo.

Mais adiante, Santiago analisa o efeito Georges Duhamel presente na narrativa, fazendo com que a mesma também se inscreva no âmbito das memórias imaginárias. Para o crítico, as epígrafes que retomam Remarques sur les mémoires imaginaires, propositadamente, revelam a filiação teórica que conduzirá a construção ficcional do Amanuense. O romance francês é, na verdade, uma reação ao movimento vanguardista, pois vai de encontro à desordem promovida por este, do ponto de vista da criação literária. Da mesma maneira, não apenas Cyro dos Anjos, mas também outros dois principais autores da década de 30, Graciliano e Érico Veríssimo, iriam beber desta fonte antivanguardista, escrevendo uma “prosa moderna/modernista com uma língua nacional castiça e um estilo coloquial e enxuto” (SANTIAGO, 2006, p. 38). Outra filiação é, também, evidente, pois o Amanuense, como originário de uma série de crônicas escritas por Cyro, irá beber na água do fait divers, cuja forma fora tão difundida por André Gide:

O interesse pela observação – objetiva e/ou subjetiva – do cotidiano, o gosto pela

crônica dos acontecimentos diários, a descrição sem artifícios dos fatos e sem a fantasia da literatura, a opção pelo fluxo natural da escrita de um diário e, finalmente, o cultivo da contenção estilística como virtude no trato da língua nacional castiça. (SANTIAGO, 2006, p. 40).

Por esse viés, a narrativa deixa de lado o teor universalizante para tratar da banalidade dos fatos da vida, trazendo o leitor para um terreno mais próximo de suas relações com o mundo. Assim sendo, a essência da narrativa de Cyro é a gama de situações autobiográficas. No entanto, a relação que se estabelece entre o narrador-personagem e a realidade é alegórica, da qual origina uma escrita da vida imaginária. Portanto, “Se o forte das memórias é a verdade humana, o das memórias imaginárias é a verdade poética” (SANTIAGO, 2006, p. 43). Voltando à epígrafe do Amanuense, vê-se que ela estabelece uma oposição entre vida real e vida imaginária, ou melhor, entre verdade humana e verdade poética, dessa forma, o crítico esclarece-nos que o romance “foi sendo escrito como solução às questões teóricas sobre o estatuto da ficção” (SANTIAGO, 2006, p. 46). Em oposição às construções ficcionais, que buscavam retratar a realidade e a verdade humana por um viés documental, surgem algumas obras que, como o Amanuense, preocupam-se com a verdade

poética a ser oferecida pelo discurso ficcional e que surgem como respostas às questões sobre o que é verdadeiro e o que é ficcional:

Teria sido melhor que Cyro buscasse o estatuto duma narrativa “real” que oferecesse o sentimento de verdade humana? Seria ficcional uma narrativa ‘real’ que apenas passasse o sentimento de verdade humana? Cyro encontra uma boa solução ao impasse numa narrativa que opta pelo trabalho de arte e pela busca da verdade poética. Uma escrita memorialista que, se esquivando da autobiografia pura, da indiscrição confessional e do memorialismo clássico, encontra alicerce ao narrar as

memórias de um outro, ao dramatizar no papel vidas imaginárias, cujas cores e vibrações são tão intensas quanto as da vida real. (SANTIAGO, 2006, p. 46-47, grifos do autor).

Dessa forma, uma narrativa escrita em primeira pessoa, em que o narrador é o próprio personagem, coloca em xeque os limites do “eu” que, para o leitor, transita entre o real e o imaginário. Ao passo que esse “eu” é estilizado dentro do real simbolicamente estruturado, sofre um processo de “subjetivação”, de ressignificação – e nesse aspecto Silviano Santiago dá início à abordagem da filiação do romance a Nietzsche. Através da estilização ou subjetivação, elimina-se uma visão unidimensional do indivíduo, agregando novas perspectivas, novas maneiras de olhar e analisar esse outro – o que leva à filiação ao perspectivismo de Nietzsche.

O narrador-personagem do romance, em seu ato de escrita, de estilização do real, oferece-nos vários ângulos de observação sobre si e sobre os personagens, ou seja, todo seu relato passa pelo perspectivismo. Por esse viés, vemos que a personagem Silviano tem acrescida à sua caracterização inicial uma nova perspectiva, pois “passa a representar dentro do romance o artista por excelência, e é nessa condição segunda, condição essencialmente nietzschiana, que ele traz a chave do livro” (SILVIANO, 2006, p. 54). Assim como Nietzsche opõe-se ao dogmatismo, Silviano, apesar de propor a atitude católica como solução para os problemas da vida, não a adotará, configurando uma falsa apologia de sua parte. Para o crítico, Silviano simboliza aquele sofisticado e intelectual que está a procurar a verdade poética da vida, o alter ego de Cyro dos Anjos. Em oposição a essa figura, temos Belmiro, que “ainda preso ao passado e aos antepassados, [...] se contenta com a verdade humana e saudosista da vida” (SANTIAGO, 2006, p 56.), por essa razão é que se atribui a ele o ofício de narrador-personagem, pois não seria crível atribuir uma narrativa saudosista e limitada à verdade humana a um personagem múltiplo e rico em conhecimento literário e filosófico como Silviano.

Seguindo a leitura crítica de Silviano Santiago, temos a análise do que ele denomina como as três camadas de fabulação empreendidas no romance. A primeira dá conta

da realidade do presente de Belmiro e seus amigos naqueles anos de 1930. A segunda refere- se ao passado do narrador-personagem em Vila Caraíbas e a terceira diz respeito à tomada de posse do “sistema Borba” pelo narrador. Para o crítico, essas três camadas de experiência superpõem-se de maneira harmoniosa e se apresentam em dois níveis, cujo primeiro corresponde à “escrita da identidade, do rio e da ciência do sangue” (SANTIAGO, 2006. p.61, grifo do autor) e o segundo refere-se ao “peso da árvore genealógica na avaliação da experiência cotidiana de Belmiro na cidade de Belo Horizonte” (SILVIANO, 2006, p. 62).

Em relação à apropriação do sistema Borba, três níveis de escrita se apresentam e englobam inversão de padrões culturais, psicológicos e comportamentais aliados às três questões que retratam o problema fáustico, a solteirice e o gênero. As figuras representativas do sistema Borba, Belmiro, Francisquinha e Emília têm como traço comum a indisposição para enlaces matrimoniais, bem como uma inaptidão para o convívio social. Belmiro e as duas irmãs são o resultado da união de dois sistemas, o paterno dos Borbas e o materno dos Maias. O primeiro caracteriza-se pela força, virilidade e rispidez – tudo aquilo que venha a recompor a atmosfera moral da Fazenda – já o segundo, caracteriza-se pela fineza, delicadeza e inteligência. No entanto, Belmiro não se constituiu plenamente em nenhum dos dois, não é delicado como a mãe e nem viril como pai, um ser inacabado nos dois sistemas, “Enquanto protagonista, ele é um indeciso no tempo e espaço da genealogia e no tempo e espaço rural e citadino. Ele é um parado. Ele não é multifário, como Silviano. Não ousa aventurar-se pelas ‘possibilidades de vida’”. (SANTIAGO, 2006, p. 67).