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A tematização da memória no romance

3 FICÇÃO, AUTOBIOGRAFIA, DIÁRIO E REPRESENTAÇÃO DA

3.1 A representação da memória em O amanuense Belmiro

3.1.1 A tematização da memória no romance

Primeiramente, trataremos da representação da memória no romance a partir das considerações feitas pelo próprio narrador-personagem. Nesse sentido, veremos como a memória vai sendo representada na narrativa através das reflexões tecidas por Belmiro acerca do passado e da memória, em que também se inserem as reflexões sobre recordação e esquecimento. Para isso, a análise dessas reflexões incluirá as formulações teóricas de Paul Ricoeur (2007) e Harald Weinrich (2001), sobretudo quando tratarmos das diversas alusões a Henri Bergson e Marcel Proust, presentes no romance.

Em seguida, abordaremos a relação entre memória, passado e imaginação, que se estabelece desde as referências ao mito Donzela Arabela – relacionado à intrínseca ligação entre as lembranças do passado do narrador-personagem e o imaginário construído por ele mesmo –, que interfere decisivamente em seu presente. Outro aspecto inerente a essa relação, refere-se à ligação vislumbrada pelo narrador-personagem entre o fenômeno da recordação e a criação literária. Essa abordagem irá incluir, novamente, as formulações de Paul Ricoeur. Antes de adentrarmos na análise propriamente dita, cabe realizarmos um esboço geral do estudo de Ricoeur, tendo em vista que esse será o elemento norteador de nossas considerações acerca da tematização da memória no romance.

Em A memória, a história e o esquecimento, Paul Ricoeur empreende um rico estudo que visa delinear a fenomenologia da memória. De acordo com Ricoeur, Platão definiu a memória e a imaginação como sendo a representação presente de uma coisa ausente. Na verdade, Platão se atém à dimensão veritativa da memória, ou seja, à fidelidade das imagens conservadas na memória em relação àquela que seria a imagem originária – no entanto, exclui um tratamento da dimensão do passado. As formulações de Platão se concentram numa abordagem da memória e da imaginação a partir de uma investigação da verdade e do erro e, por essa razão, não dá importância ao passado. Dessa forma, essa investigação visa resolver a seguinte questão: até que ponto a imagem que temos e que está fixada em nossa memória corresponde à imagem que lhe deu origem? Ou seria esta imagem, presa em nossa memória, afetada pela imaginação? Essa problematização da imagem está aliada ao conceito de impressão, pois se nos lembramos é porque o acontecimento imprimiu sua marca em nós, tornando possível a sua volta através da lembrança.

Nesse caso, de acordo com Platão, o apagamento das marcas deixadas pela impressão configura-se um erro, o qual dá origem ao esquecimento, definido como “como apagamento dos rastros e como falta de ajustamento da imagem presente à impressão deixada como que por um anel na cera” (RICOEUR, 2007, p. 27). Outras perguntas essenciais nesta investigação são: O que é verdade na memória? O que é falso – e que configura o erro – na memória? Sendo assim, a memória e sua dimensão veritativa são postas em cheque, pois instaura-se a dúvida sobre o conhecimento do passado, cujo acesso nos é dado pela memória. Para Ricoeur: “o que está em jogo é o estatuto do momento da rememoração, tratada como um reconhecimento de impressão. A possibilidade da falsidade está inscrita nesse paradoxo” (2007, p. 30). A representação do passado através de uma imagem suscita alguns embates, pois nesse processo a reprodução de imagens pode ser afetada pela imaginação. Por essa razão, Platão propõe uma dissociação entre a memória e a imaginação a partir de suas similitudes.

A importância de Aristóteles deve-se à distinção que realiza entre a memória e a recordação (reminiscência). De acordo com o filósofo, a memória (mnēmē) representa a simples presença da lembrança – que decorre dos agentes da impressão – no espírito. Já a recordação ou reminiscência (anamnēsis), representa “a recordação enquanto busca” (RICOEUR, 2007, p. 34), na qual seus princípios tem origem em nós mesmos. Assim sendo, o tratado de Aristóteles pretende diferenciar a evocação simples (mnēmē), do esforço de busca de uma lembrança (recordação/reminiscência/anamnēsis): “A memória [evocação simples], nesse sentido particular, é caracterizada inicialmente como afecção o que a distingue precisamente da recordação” (RICOEUR, 2007, p. 35).

O que liga essas duas acepções é a dimensão temporal, visto que só podemos nos lembrar de algo a partir de uma passagem temporal. Para que haja lembrança, é necessário que o tempo transcorra: “E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retorno, que a recordação percorre” (RICOEUR, 2007, p. 37), sendo a dimensão temporal igualmente importante para a distinção de Aristóteles entre a memória e a imaginação. Portanto, seu tratado rompe com o vínculo entre memória e imaginação estabelecido por Platão. Outra diferenciação, dada por Aristóteles, contempla as noções de imagem e da sua impressão através do conceito de inscrição, que surge como resposta para justificar o fato de nos lembrarmos da coisa ausente que estamos reconhecendo. Nós nos lembramos da impressão e da coisa ausente – que a impressão se tornou – porque esta impressão se inscreveu em nós, em nosso espírito.

Apesar da condição polissêmica da memória, Ricoeur dedica um esboço fenomenológico que possui um caráter fragmentário, mas cujo cerne é a sua relação com o tempo. Nesse esboço, Ricoeur deixa claro que o caráter fragmentário se deve ao fator objetal da memória, sendo necessária a distinção entre a “memória como visada e a lembrança como coisa visada” (RICOEUR, 2007, p. 41). Sendo assim, as lembranças – objeto da memória – gozam de multiplicidade e variedade, enquanto a memória é única e diz respeito à capacidade de efetivação de lembranças. Para o estudo dos fenômenos concernentes à memória, Ricoeur vai estabelecer uma série de pares de oposições que formam uma tipologia ordenada, sendo eles: Hábito e Memória, Evocação e Busca, Retenção ou lembrança primária e Reprodução ou lembrança secundária e, por último, Reflexividade e Mundanidade. Contudo, nos interessa apenas a diferenciação entre hábito e memória.

Para a explanação desse primeiro par, Ricoeur retoma algumas observações de Bergson – que nomeia este mesmo par como memória-hábito e memória-lembrança – que caracteriza a lembrança espontânea. Para Ricoeur, esses conceitos representam dois polos

opostos cuja unidade se deve à dimensão temporal. A memória-hábito é rigorosamente semelhante ao hábito, pois trata-se de uma memória tão absorvida pelo presente que funciona como uma atividade contínua. Essa memória é agida – dirigida para um determinado fim – e não é representada, configurando uma memória que repete. Já a memória-lembrança é o contrário. Ela é uma representação, não é agida, pois no momento de sua aprendizagem, ela não foi direcionada para determinado fim – que, no caso, é a intenção de memorização, correspondendo à memória que imagina. Depois dessa introdução do trabalho de Ricoeur, partiremos para a análise dos aspectos referentes à tematização da memória. Não obstante, na medida em que se tonar necessário, voltaremos a alguns conceitos desenvolvidos pelo autor.