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Belmiro Borba e o gauchismo de toda uma geração

5 A FORTUNA CRÍTICA DE O AMANUENSE BELMIRO

5.8 Belmiro Borba e o gauchismo de toda uma geração

De acordo com a leitura crítica de Ivan Marques, “Balanço de geração: O amanuense de Cyro dos Anjos” (2011), O amanuense segue os rumos de uma vertente literária que promoveu um tipo de “crônica geracional” no modernismo mineiro. Segundo esse viés, a representação literária de cada autor desvela a maneira como enxergam a sua geração e a si mesmos, porém todas corroborando um mesmo tema, um certo “gauchismo”, “um sentimento partilhado por um grupo de modernistas que enfrentavam, no mesmo ambiente, os mesmos ‘insolúveis’ problemas” (MARQUES, 2011, p. 202) – tema cujo Amanuense retratou de maneira fiel. Nesse sentido, o romance de Cyro converge para um diagnóstico do tipo “Cota Zero”, em que predomina a sensação de falência do indivíduo. Em

suma, trata-se de uma literatura intimista, essencialmente preocupada em retratar os dramas do indivíduo que se sobrepõe à literatura mais reformista e é nessa esteira que Cyro dos Anjos realiza o seu balanço de geração em O amanuense. O crítico assinala que o romance tem sua gênese nas crônicas que o autor escrevia para o jornal A tribuna e esta seria uma das razões de seu sucesso. Não somente isso, mas explica também a sensação autobiográfica promovida pelo romance, que também é reforçada por se tratar de uma narrativa em primeira pessoa, em forma de diário – que é motivo de “cismas e ressalvas”, como ressalta Marques.

A escrita do diário, encarada pelo narrador-personagem como uma gravidez, revela-se uma “gestação da morte”, já que a introspecção causada pela imersão na escrita seria uma forma de morte, uma ausência de qualquer possibilidade de vida. Para o crítico, o diário de Belmiro é uma espécie de “masoquismo espiritual” em que aquele que escreve submete-se ao rigor e excesso de crítica de seu próprio eu. Todavia, a escrita funciona como espécie de confissão que traz alívio e conforto. Sobre a veracidade do relato, Marques argumenta que a escrita autobiográfica, e nesse caso encarando o diário como um relato autobiográfico de Belmiro Borba, é resultado de uma construção em que o “eu” que escreve não é o mesmo “eu” que está inscrito – este na verdade é um outro, pois “O memorialista sabe que nem tudo deve ser confessado e que o suposto ajuste de contas não passa, muitas vezes, de um ‘teatro interior’” (MARQUES, 2011, p. 207). Em se tratando do desvelamento de um “eu”, não existe uma verdade absolta. O que sou se mistura com o que deveria ter sido, com o que esse “eu” gostaria de ter sido ou com a forma que gostaria de ser lembrado, ou de ser visto pelos demais.

Assim sendo, quando Belmiro admite a presença do leitor, o teatro já não é puramente interior, mas para uma plateia futura. Para Marques, o romance é um verdadeiro “baile de máscaras” em que prevalece a fabulação e o cabotinismo, em detrimento do cinismo. A preferência de Belmiro pelo gênero diarístico possui uma intrínseca relação com seu modo lírico de existir, pois esta forma de escrita sugere “o vago da experiência poética numa espécie de pintura sem perspectiva” (MARQUES, 2011, p. 208), em contraponto ao afastamento que seria promovido pela escrita autobiográfica. Todavia, mesmo que os eventos sejam relatados no exato momento em que ocorrem, estes são “uma impressão trabalhada pela consciência” (MARQUES, 2011, p. 208), resultado de um processo de estilização, logo, não se pode pensar no diário como espelho da “verdade”. De acordo com Marques, tanto O amanuense quanto Abdias apresentam personagens que fazem uso do diário como confissão, mas que não se realiza plenamente, já que a vontade de confessar trava um embate com o excesso de autojulgamento. Assim, no Amanuense estamos diante de um:

Belmiro patético que se confessa, sofre a perseguição do homem que se censura (o

éiron). Corrigindo a sinceridade, a ironia serve ao narrador tanto para o controle das emoções quanto para, sabiamente, diminuir-se, dissimular-se. Graças ao gesto irônico, que se esparrama por todas as páginas, a realidade flutua entre diversas configurações, que o tempo inteiro se relativizam [...]. (MARQUES, 2011, p. 209).

Esse movimento de oscilação entre o desejo de sinceridade e a ironia do “eu” censurador configura, segundo Marques, o movimento de báscula entre realidade e sonho, apontado por Antônio Candido. O movimento ressalta as intensas contradições de Belmiro, que ora é cínico, ora é lírico, ora parece impulsionar-se para a vida, ora foge dela, evidenciando “a condição fluídica do gauche” (MARQUES, 2011, p. 210). A instabilidade de seu gauchismo também o impede de tomar qualquer posição que seja, permanecendo enraizado em seu mundo de antinomias. Por essa razão, o diário é tão dúbio e indeciso quanto o próprio “eu” que o redige. Os diários de Belmiro e de Abdias desvelam duas personalidades incapazes de ação que, para não travarem um embate com os conflitos do mundo exterior, preferem o enclausuramento da escrita. O projeto inicial de memórias, que não se efetiva e se transforma numa escrita do presente, não pode ser encarado como uma manobra do acaso. Para Marques, tal acontecimento revela, de antemão, que o presente tem uma relevância maior que a tentativa de reconstrução do mundo caraibano, razão pela qual não haveria como compreender a relação entre o Amanuense e a narrativa de Proust, apontada por grande parte da crítica. Belmiro não deseja de maneira concreta buscar o tempo perdido, de tal modo que em nenhum momento da narrativa ele toma nota do mundo rural de Vila Caraíbas, ou ainda, “Se fosse um livro de memórias, o Amanuense certamente daria aos antepassados um espaço maior que o da irônica dedicatória [...]” (MARQUES, 2011, p. 215).

O fato de Belmiro se ver como a negação dos seus antepassados, da linhagem viril e hirta dos Borbas, configura aquilo a que Schwarz intitula como “desvio da linhagem rural”, responsável pela ruptura do narrador-personagem com o passado rural de Vila Caraíbas. Nesse sentido, a caracterização das irmãs como pessoas ignorantes também estabelecem um contraponto com todo o positivismo que parece haver nesta linhagem rural dos Borbas. De modo semelhante, a dissolução do mundo rural é o tema da narrativa de Graciliano (Angústia) e de alguns poemas de Drummond. A dissolução resulta, para os romances de Cyro e Graciliano na inviabilidade dos dois narradores de reconstrução do passado, indo na contramão do memorialismo que vigorou na literatura moderna do período. Sendo assim, de acordo com Marques, o projeto memorialista de Belmiro não encontra terreno fértil para

florescer e Cyro só conseguirá construir um panorama de sua linhagem e de seu passado após um distanciamento do período, quando escreve A menina do sobrado. A narrativa é marcada por esse impasse, ao mesmo tempo em que o presente assume toda a relevância para sua escrita, o passado e as evocações do mundo caraibano resistem e teimam em ecoar no presente. A oscilação se instaura e Belmiro não realiza coisa alguma, não consegue viver o presente e nem reviver o passado:

O sentimento de perda – esse aspecto central que distancia Cyro dos Anjos da memória proustiana – dá um ar de coisa remota e mítica a “realidades” do mundo caraibano que continuam vivas no presente. Se não é possível fixar a volátil mocidade, sobrevivem no entanto os valores e as estruturas do passado – esse o fato histórico que é disfarçado pela fala poética de Belmiro. (MARQUES, 2011, p. 220).

A indecisão da escrita é a indecisão de Belmiro em relação à vida – e a recíproca também é verdadeira. Para compor o universo de indecisão e imobilidade do narrador- personagem, o ambiente burocrático o acomoda perfeitamente. O funcionalismo público é tão imóvel quanto o personagem e dá a ele a segurança necessária para imergir a todo o momento no mundo mítico dos castelos e das donzelas. A burocracia convém para aquele que escolhe a escrita como única possibilidade de vida, haja vista que a grande maioria dos escritores brasileiros estava estabelecida em cargos públicos. A estrutura rural inocula a estrutura urbana, causando as constantes oscilações entre passado e presente, o que representa o “dualismo estrutural” do Brasil, entre herança colonial e presente capitalista. O efeito causa a impressão de inércia, de ausência de conflitos e embates, o que Schwarz apontou como o horror do livro. No entanto, a intenção é de “amenizar a gravidade de todas as coisas. A esse temperamento pacificador se liga a distancia que o amanuense toma das lutas políticas ocorridas no ano de 1935, em que o romance fixa seu calendário.” (MARQUES, 2011, p. 225).

A imagem do carnaval descrita pelo amanuense tem muito do cenário drummondiano, desde a descrição que Belmiro faz de si mesmo – “tal como o gauche de óculos do ‘Poema de sete faces’” (MARQUES, 2011, p. 226) – à narrativa do mágico encontro com Carmélia, cujas imagens remetem aos poemas “No meio do caminho”, “Quadrilha”, “Um homem e seu carnaval”. O carnaval será o grande acontecimento do romance, sobretudo, do ponto de vista amoroso. No entanto, o que se percebe na descrição de Belmiro é que mesmo presente num evento que marca de maneira tão decisiva sua vida amorosa, o amanuense não se entrega à sua vivência, posto que esteja a todo o momento

agarrado às semelhanças com o passado. Os devaneios míticos impedem uma conexão entre seu mundo interior e o mundo exterior. A impossibilidade de vínculo entre a sua interioridade e a exterioridade também se revela na sua relação com a roda de amigos – comércio que conclama essencial a todo instante.

Para Marques, o convívio com cada um dos amigos evidencia o fato de Belmiro possuir as mesmas características ou o desejo de ser como determinado amigo. Nesse sentido, o amanuense “reduz os amigos a meros fantasmas ou prolongamentos de si próprio” (MARQUES, 2011, p. 228). Mesmo quando Belmiro parece escrever sobre a vida dos amigos, seu diário está sempre realçando a si mesmo – motivo que leva Marques a ver Belmiro como o único personagem construído realmente.

Para Marques, o sentimento amoroso do amanuense é de natureza contemplativa e pouco importa a destinatária, Carmélia, Arabela ou Camila. Do mesmo modo, as constantes trocas de nomes quando escreve sobre seus sentimentos endossam não só essa perspectiva, mas também “a impressão pouco romântica de cálculo e frieza” (MARQUES, 2011, p. 228). Assim, conclui-se que o sentimento de Belmiro seria puramente cerebral – estilização do esteta – que o impossibilita para o amor. No mesmo âmbito, estariam as denominadas moças em flor, pois todas representam uma mesma coisa, um objeto universal que jamais será alcançado. Segundo Marques, a figura das moças em flor não demonstra apenas que o tempo agiu, inviabilizando o amor, mas também a divergência e a humilhação sociais, pois para alcança-las “É preciso exibir as distinções que tragam de volta não apenas as lendas românticas, mas sobretudo o prestígio da aristocracia rural” que o amanuense está bem longe de possuir. (MARQUES, 2011, p. 229). Nesse contexto, entra em cena o problema fáustico que ganha a seguinte interpretação:

[...] a sede de infinito que se confunde com o desejo de imobilidade. Nas primeiras chuvas de 1935, uma luta armada se prepara e um governo autoritário se impõe no país. Enquanto isso, os personagens do Amanuense se entregam a melancolias – problemas eternos? Drama fáustico? [...] A fuga para o universal é um recurso tão amenizador quanto a prosa ligeira e elegante. (MARQUES, 2011, p. 230).

Portanto, o problema fáustico seria uma forma condescendente de encarar o fracasso do indivíduo que não podendo (ou não querendo) reagir, abandona-se aos devaneios como forma de compensação. A incapacidade de Belmiro para amar também se relaciona ao amor ao próximo. Belmiro não se relaciona verdadeiramente com o outro, seja com os amigos, seja com a multidão. Assim como os amigos são vistos como projeções de Belmiro, como se não fossem seres individualizados, na escrita de Belmiro, o povo não tem vez,

“Apesar de seus problemas concretos, os miseráveis só existem como ‘abstrações econômicas’, barulhos que passam pelo narrador apenas de ‘raspão’” (MARQUES, 2011, p. 231). Belmiro se mostra completamente alienado para o mundo exterior e a ausência de descrições de um momento marcadamente tenso e agitado politicamente é um reflexo disso.

O silêncio – ou melhor, a ausência de descrição dos conflitos que marcaram o período de sua narrativa – que se propaga na narrativa tem suas causas na imobilidade de Belmiro – que não admite a adesão a nenhum ponto de vista –, reflexo da imobilidade geral da sociedade daquele período. Por outro viés, o silêncio também seria consequência de um período de revolução que acabou não ocasionando grandes mudanças no quadro social e político do país. A imobilidade de Belmiro é também sentida pelos escritores, como afirma Marques:

Mesmo entrosada na estrutura estatal, a inteligência dita contemplativa de escritores como Cyro dos Anjos e Drummond não deixou de captar e exprimir problemas essenciais da sociedade brasileira. A dificuldade de seguir uma direção certa [...] coincide com a essência do temperamento gauche. Nos dois casos, observa-se a falta de acerto, de lugar, de projetos, de soluções. (MARQUES, 2011, p. 233).

O carnaval, que acenara para Belmiro com a expectativa de comunhão com a multidão, fracassara. De fato, segundo Marques, o carnaval de Belmiro é fajuto, assim como o diário e o amor, visto que não há da parte de Belmiro uma vontade de relacionar-se com o outro, ou de escrever com sinceridade e muito menos de vivenciar qualquer sentimento. O carnaval que é inviabilizado pelo personagem apontaria também para o desengano causado pela situação política do período. O fracasso a que Belmiro se impõe demonstra que todas as suas “soluções” – o amor e a literatura – são meros caprichos, fantasias que ele não se esforça para vivenciar.

O que prevalece é a inércia de um personagem que prefere imergir em si mesmo, à margem do mundo, para se poupar de qualquer atitude. A respeito da inércia, Marques a interpreta como a responsável por uma estrutura circular embutida no romance. Ela primeiro incita a escrita para depois ser a sua própria substância e, ao fim, causar o seu encerramento, “O romance se fecha como uma concha. A estrutura circular, que também caracteriza Vidas secas, parece mimetizar o destino dos fracassados, sugerindo as platitudes de uma história – a brasileira – que por excesso de conciliação, não avança.” (MARQUES, 2011, p. 236). O início da escrita de Belmiro, que parece indicar sua opção por transferir a vida para a literatura, termina sem que o narrador faça a opção inversa, marcando a sua preferência pela

inércia. Os devaneios de Belmiro e as fabulações engendradas por Silviano são a prova da dificuldade de adaptação de ambos ao mundo real. Os dois amigos são figuras extremamente céticas que, ao mesmo tempo, são fiéis a posturas conservadoras. Indivíduos inadaptáveis que buscam consolo na exploração de sonhos míticos (no caso de Belmiro) e na mitomania (no caso de Silviano).

Segundo Marques, a admiração de Belmiro pela figura de Silviano é um ardil irônico do autor de revelar, “é o bovarismo próprio do intelectual brasileiro e alienado: a mescla de acanhamento provinciano com desenvoltura verbal – rotina e quimera – [...]” (MARQUES, 2011, p. 239). Assim sendo, a grande estratégia do romance está na utilização da ironia que se dá de maneira complexa, caracterizando o que Roberto Schwarz nomeou como “ironia de segundo grau”, pois seu sentido é entendido como sinceridade pelo leitor, o que seria também prova da influência da escrita de Machado de Assis. O resultado é uma narrativa oblíqua que quer parecer um desabafo sincero. No entanto, é necessária uma leitura atenta para que o leitor não se deixe condescender pela autopiedade do narrador-personagem e perceba suas limitações. A ironia também atende claramente a uma outra intenção de evidenciar o temperamento contraditório do gauche, que ao mesmo tempo em que assume o perfil trágico, também atinge o ridículo. O gauchismo dos personagens é relacionado ao quixotismo – referência clara ao Dom Quixote – que também dá voz a situações grotescas em que o trágico e o cômico andam juntos. Nessa gama de personagens entrariam também o papagaio Tomé, as irmãs de Belmiro, além do próprio amanuense.

Marques procura mostrar, ao longo de sua leitura crítica, que o grupo dos escritores mineiros, cuja liderança cabia a Drummond, também possuía como característica comum certa inaptidão e inércia em relação aos problemas da década de 1930. A comunhão entre os temas e unicidade entre o grupo conduz o crítico a uma leitura do Amanuense como a imagem do modernismo mineiro em cujo penúltimo capítulo estão os quatro escritores mineiros: Emílio Moura, Drummond, João Alphonsus e o próprio Cyro. O poeta irônico seria a imagem de Drummond, o poeta místico cabe a Emílio Moura e o poeta sem nome, encontraria ressonâncias em João Alphonsus.

Os poetas propõem, respectivamente, para o amanuense a ironia, o misticismo e a simplicidade do canto popular. O amanuense, ao longo da narrativa apresenta afinidades com algumas dessas soluções. Possui a ironia, responsável pelos seus arrancos no processamento da realidade e o misticismo, em suas incursões pelo mundo mítico, nas quais a música e as figuras femininas são parte essencial. Já a terceira solução seria uma forma de conciliação entre as duas propostas anteriores, representa o equilíbrio entre os dois rumos anteriores. Do

embate entre os três, o primeiro é o que sai vencedor e todos entoam os versos de Drummond, que corroboram a perspectiva de que estes poetas possuem a alma mais vasta que a realidade do mundo. Por essa razão, os seres que possuem essa inadequação entre alma e mundo encerram-se no enclausuramento de seus próprios pensamentos. São seres que anseiam pelo equilíbrio trazido pela adequação à realidade, todavia, as suas vastas interioridades pertencem a outro tempo, são portanto, gauches. A literatura de Minas proporcionaria uma imersão em busca de um sentimento profundo que materialize a relação desses escritores com os problemas de seu tempo.