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De um lado, a cultura erudita, de elite, cultura letrada que pelo menos até o século XIII foi eclesiástica do ponto de vista social e latina do ponto de vista lingüístico. Conscientemente elaborada (mas sem deixar, é claro, de ser tributária da mentalidade*), era formalmente transmitida (escolas monásticas, escolas catedralícias, universidades). Por isso, tendia a ser conservadora, a se fundamentar em autoridades*. Na célebre frase atribuída a Bernardo de Chartres, no começo do século XII, “somos anões sobre ombros de gigantes. Desse modo, vemos melhor e mais longe que eles, não porque nossa vista seja mais aguda ou nossa estatura maior, mas porque eles nos erguem à sua gigantesca altura”. A melhor denominação dessa cultura é “clerical”, por esta palavra abarcar o sentido de “eclesiástica” (grupo que monopolizou a cultura escrita até o século XII) e ao mesmo tempo de “letrada” (novo significado desde fins do século XIII, com o crescimento do segmento laico alfabetizado).

De outro lado, estava a cultura que já foi chamada de popular, laica ou folclórica, e que preferimos denominar “vulgar”, pois para os medievais esta palavra rotulava sem ambigüidade tudo que não fosse clerical. A cultura vulgar era oral, transmitida informalmente (nas casas, ruas, praças, tavernas etc.) por meio de idiomas e dialetos vernáculos. Espontaneamente elaborada, ela expressava a mentalidade de forma mais direta, com menos intermediações, com menos regras preestabelecidas. Ideologicamente, ela se inclinava a recusar os valores e práticas oficiais. Ainda que muito presa às suas próprias tradições — que a Igreja tendia a tachar de superstições* —, a cultura vulgar não estava fechada a outras influências. Ainda que respeitadora do passado, não deixava de olhar para o futuro, daí a crítica feita na primeira metade do século XII pelo cronista eclesiástico autor da Historia compostelana: “Esse é o costume do povo, amar sempre o que está por vir”.

Esses dois pólos culturais opostos em tantos aspectos não eram impermeáveis um ao outro. O ordo eclesiástico, por não se auto-reproduzir devido ao celibato obrigatório, era constituído por indivíduos de origem forçosamente laica, que viviam seus primeiros anos no âmbito da cultura

vulgar e tornavam-se adultos impregnados dela. Os leigos, de seu lado, não desconheciam a cultura clerical, que de certa forma fazia parte de suas vidas através da liturgia cristã, dos sermões, das modalidades de comportamento impostas pela Igreja. Essas intensas trocas eram alimen- tadas e alimentavam a cultura intermediária, “aquela praticada, em maior ou menor medida, por quase todos os membros de uma dada sociedade, independentemente de sua condição social. [Ela é] o denominador comum, o conjunto de crenças, costumes, técnicas, normas e instituições conhecido e aceito pela grande maioria dos indivíduos da sociedade estudada” (53: 34).

Nesse campo é que estavam os idiomas vernáculos. Na Europa dos romanos, o latim fora usado segundo as normas cultas (o latim clássico, falado e escrito em situações formais) ou de maneira popular (o latim vulgar). Com o desaparecimento do Império, a degradação da cultura erudita e a chegada dos germanos, o caráter dinâmico do latim vulgar foi acelerado e modificou-se tanto que por volta de 600 ele deixou de ser falado. Ou melhor, transformou-se no século VIII em novos idiomas, chamados de românicos por terem partido da fala romana. O latim sobreviveu apenas como língua eclesiástica. Mas não como língua materna, pois os eclesiásticos falavam o mesmo idioma de todas as pessoas de sua região, aprendendo o latim apenas com o ingresso na camada clerical. Por toda a vida os oratores eram bilíngües, falando um idioma vulgar nos seus contatos com a sociedade laica e o latim na relação com seus pares e na atuação profissional. As línguas vulgares eram de todos.

Também pertencia à cultura intermediária a manifestação cultural mais significativa para a Idade Média — o cristianismo. Sendo uma religião, religio, sua função era, segundo a etimologia que vinha da Antigüidade, de re-legere, “reunir”, ou de re-ligare, “religar”, nas duas hipóteses tendo, portanto, o sentido de reaproximar as instâncias divina e humana. A primeira conhecida através de mitos*, a segunda buscando comunicação com ela através de ritos. Se no caso do cristianismo medieval os mitos são na origem, quase sempre, produto da cultura vulgar (53: 45- 67) e os ritos da cultura clerical, com o tempo as influências

interculturais apagaram tais fronteiras.

A cultura erudita procurou apossar-se dos relatos míticos, promovendo e legitimando o registro escrito de alguns deles e controlando sua interpretação. Os textos considerados “inspirados”, ou seja, escritos por Deus por intermédio de autores humanos (profetas e apóstolos), tornaram-se canônicos, isto é, reconhecidos pela Igreja como representando a Palavra de Deus. O conjunto desses 73 textos (46 do Antigo Testamento, 27 do Novo), conhecido por Bíblia, foi estabelecido lentamente até se firmar no sínodo de Roma, em 382. Da mesma forma que a Igreja se atribuía o poder de identificar os livros sagrados, considerava-se a única a poder fazer a exegese (“explicação”) deles. A teologia medieval foi exatamente a busca de certa racionalização daqueles relatos, a tentativa de desmitologizar a mitologia cristã.

A cultura vulgar, por sua vez, pressionou ao longo da Idade Média para que certos ritos fossem criados ou modificados. Um exemplo do primeiro caso é o reconhecimento clerical do culto aos mortos, com a inclusão no calendário litúrgico da festa de Todos os Santos no século IX e, em princípios do século X, da festa de Finados na data seguinte, 2 de novembro. Um exemplo do segundo tipo é o gesto ritual da elevação da hóstia. Como desde o século VIII o padre se virava de costas para o público na hora do sacrifício eucarístico, estabelecendo uma relação apenas entre ele, em nome dos fiéis, e a Divindade, os leigos pressionavam por maior participação no evento. Foi então introduzida, em fins do século XII, a prática de o sacerdote elevar a hóstia após a consagração, para que os fiéis a vissem naquele momento-chave da espiritualidade* cristã. Enfim, o cristianismo medieval tal qual sentido e vivido pela quase totalidade da população, clérigos e leigos, era um componente — o componente central — da cultura intermediária daquela sociedade.