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A instabilidade dos séculos XIV-

Na Baixa Idade Média, a passagem da sociedade de ordens para uma sociedade estamental, produto da própria dinâmica feudal, acelerou-se naquele contexto de crise generalizada. Com a quebra da rígida estratificação anterior, baseada num ordenamento divino da sociedade, o organismo social tornou-se determinável pelos próprios indivíduos. Dito de outra forma, a tendência ao imobilismo social foi sendo substituída pela

aceitação da possibilidade de mudanças — na sociedade de ordens cada indivíduo ê de determinada camada, na sociedade estamental (o termo “estado” surge por volta de 1200) ele está numa certa camada. A partir disso, foram se desenvolvendo relações de classe no interior do terceiro estado, ocorrendo então convulsões sociais de um novo tipo, já “modernas”.

A aristocracia, naturalmente, foi a mais atingida pelas transformações da época. As dificuldades da economia senhorial arruinavam muitas famílias nobres, que perdiam suas terras e se deslocavam para as cidades ou para as cortes principescas ou monárquicas. Dessa forma, a nobreza sofria certa descaracterização ou ao menos perdia alguns dos traços que tinham feito parte de seu poder e prestígio até então. Essa situação nova e pouco compreensível para os nobres provocou mudanças gerais no seu comportamento psicológico, dentre elas uma limitação (consciente ou não, é difícil saber) da natalidade. Em razão disso, naquele período, a cada seis gerações, em média, extinguia-se uma linhagem aristocrática. Desfalcada demográfica e economicamente, ela precisava abrir-se a elementos provenientes da burguesia e mesmo de um campesinato rico que se formara com a crise.

Por meio desse freqüente expediente da nobreza de tentar recuperar- se graças a casamentos convenientes, ocorreu o enobrecimento de algumas famílias burguesas (França) e o aburguesamento de muitas famílias nobres (Itália). De certa forma, portanto, a própria nobreza contribuiu para a mobilidade social do período. Outro aspecto importantíssimo desse fenômeno foi ter-se completado a quebra da identidade clero-nobreza. Sabemos que desde o século XI ocorriam atritos no interior da aristocracia, com leigos e clérigos disputando a posse dos excedentes produtivos gerados pelo crescimento econômico. Contudo, em relação ao restante da sociedade, a aristocracia continuava, de forma geral, a agir em bloco. Desde o século XIII, porém, e acentuadamente com a crise do século XIV, o clero ia deixando de ser recrutado exclusivamente na nobreza e formava-se um “proletariado clerical” (51: 227).

expressado as transformações sociais então em gestação, consolidou-se com a crise aristocrática. Foi assim que se deu a penetração burguesa no campo, com a compra de terras, que ocorria pelo menos desde o século XIII acelerando-se na Baixa Idade Média. O fenômeno foi especialmente intenso na Itália, onde o domínio da cidade sobre a zona rural circunvizinha não era apenas uma especulação interessante ou uma fonte de prestígio, mas também uma questão de segurança: Gênova, por exemplo, produzia cereais para apenas quatro meses do ano. Diante das limitações da agricultura italiana, cada cidade buscava estender seu poder sobre um amplo raio de 25 a 30 quilômetros, o que levou muitas vezes duas cidades a disputar a mesma área. As guerras interurbanas italianas (e, em menor escala, alemãs) eram produto da crise e também contribuíam para agravá- la.

No interior de cada cidade, o patriciado urbano (10% ou 15% da população total) dominava o governo e formava verdadeiras dinastias. Um exemplo famoso é fornecido pelos Médici, donos de uma companhia de comércio e banca: Giovanni conseguiu uma importante magistratura em 1421, seu filho Cosme foi senhor de Florença por mais de três décadas, o filho deste sucedeu a ele como por direito hereditário, e depois Lourenço, filho do anterior, aliou-se a uma antiga família nobre, fazendo de um de seus filhos um duque, de outro um papa (Leão X), além do que sua bisneta iria casar-se com o rei da França. Nos casos menos espetaculares e mais comuns, os burgueses procuravam ofícios que enobreciam, como altos cargos judiciários e administrativos. Na Inglaterra, por volta de 1350, os representantes das cidades, junto com a pequena nobreza (gentry), passaram a constituir uma seção especial do Parlamento, a Câmara dos Comuns.

Em relação aos trabalhadores rurais, a crise social manifestou-se de dupla forma. De um lado, o retrocesso demográfico e econômico acelerou o processo de recuo da servidão, o ressurgimento de um campesinato livre, e permitiu até a formação de uma elite camponesa. Esta era constituída por indivíduos que, aproveitando o desaparecimento de famílias nobres e o despovoamento de regiões inteiras pela peste negra, conseguiram obter

terras próprias. Nelas, a pecuária era a principal atividade, em virtude da falta de mão-de-obra e da relativa manutenção do preço da lã, um dos poucos produtos não afetados pela crise econômica. De outro lado, em certas regiões, sobretudo na Inglaterra, o campesinato viu-se diante da chamada “reação senhorial”, isto é, do revigoramento dos laços de dependência, com os senhores, especialmente os eclesiásticos, tentando reimpor antigas obrigações, que desde o século XII ou XIII tinham caído em desuso. Na Itália, essa “reação senhorial” foi mais acentuada nas terras de propriedade de mercadores.

Fig. 8. Banquete (miniatura francesa do século XV, de uma cópia da Histoire

d'Olivier de Castille et d'Artus d'Algarbe, hoje na Biblioteca Nacional de Paris).

Uma das formas de a nobreza decadente reafirmar seus valores tradicionais era a ostentação, como nesse banquete em que os servidores e os músicos são mais numerosos que os convidados. A sala é decorada por grandes tapeçarias, o príncipe, seus familiares e convidados vestem-se luxuosamente, estão presentes dois cães, símbolos aristocráticos.

Quanto à mão-de-obra urbana, a situação era mais homogênea e mais difícil. A crise não criou uma elite trabalhadora, como fizera no campo,

apenas reforçou o poder da alta burguesia. A relativa alta de preços industriais, enquanto os preços agrícolas caíam, atraía muitos camponeses para as cidades. Dessa forma, aumentava a oferta de mão-de-obra urbana, o que permitia ao patriciado burguês pressionar os salários para baixo, rompendo a tendência altista gerada pela peste negra. As corporações de ofício fecharam-se ainda mais, zelosas de seus privilégios: a condição de mestre tendeu a se tornar hereditária, dificultou-se a abertura de novas oficinas, em Flandres recorreu-se à violência contra a indústria artesanal rural que se formava como escapatória ao oligopólio corporativo.

O resultado daquele estado de coisas, tanto no campo quanto nas cidades, foi uma série de sublevações populares. Algumas eram contra a miséria, em regiões mais pobres, caso do movimento dos Tuchins (1366- 1384), camponeses e artesãos arruinados do Auvergne e do Languedoc. As revoltas camponesas mais importantes, porém, mobilizaram trabalhadores em boa situação, que enfrentavam a reação senhorial. Tais movimentos não eram revolucionários, mas reacionários, buscando a volta a um passado recente, considerado menos duro. Eram mais contra a conjuntura do que contra a estrutura. Foi o caso da revolta de Flandres marítima (1323-1328), iniciada com a recusa ao aumento dos impostos e ao dízimo eclesiástico, que atingiam sobretudo os camponeses médios, logo seguidos pelos artesãos de Bruges e de Ypres. Pouco depois, a liderança do movimento foi assumida por proprietários rurais ricos. Por fim, o rei francês esmagou os revoltosos, que tiveram seus bens confiscados.

O mesmo se aplica à Jacquerie (maio-junho de 1358), começada na região parisiense e propagada por outros territórios franceses. O movimento não foi contra a miséria, como se pensou por muito tempo, mas resultou de uma conjuntura difícil, advinda da peste negra, da legislação salarial de 1351 e 1354, do crescente peso dos impostos, dos problemas gerados pela Guerra dos Cem Anos. Na rebelião campesina inglesa de 1381, a questão fiscal também teve peso decisivo. Apesar da célebre frase de um de seus líderes — “quando Adão arava e Eva fiava, quem era o nobre?” —, o movimento não era antinobiliárquico. Resultava da depressão eco- nômica, do alto custo da mão-de-obra que prejudicava os pequenos

proprietários, das dificuldades causadas pela guerra na França. Por isso mesmo, nobres participaram dela, contra um Estado que pedia novas tropas e impostos.

As revoltas urbanas, por sua vez, eram pelo controle do Estado, em processo de afirmação, fosse ele comunal, senhorial ou nacional. Do primeiro tipo foi o movimento dos Ciompi (1378), em Florença, cidade dirigida desde fins do século XIII pela alta burguesia (popolo grasso). Quando, diante do descontentamento do popolo minuto, se começou a discutir um projeto para aumentar a participação dele no poder, os ânimos ficaram exaltados e o palácio do governo foi tomado. Os ciompi, isto é, cardadores de lã, passaram a ocupar a maioria das magistraturas, mas logo veio a reação dos homens de negócios, dos chefes de oficina e dos artesãos médios, restabelecendo a ordem anterior. Do segundo tipo foi a sublevação de Bruges e Gand (1379-1382), que se levantaram contra o poder do conde de Flandres, pretendendo autonomia no tratamento das questões político-comerciais que então envolviam Flandres, colocada entre os interesses da França e da Inglaterra. Do último tipo foi a revolta de Étienne Marcel (1356-1358), membro da alta burguesia que, afastado da corte monárquica por razões familiares, armou o povo de Paris, tomou o palácio real e pretendeu tutelar a realeza.

Bibliografia básica: 25, 30, 50, 51, 54, 63, 72, 74, 80, 82. Bibliografia complementar: R. ANDERSON, Passagens da Antigüidade ao feudalismo, Lisboa, Afrontamento, 1980; G. FOURQUIN, Les soulèvements populaires au

Moyen Âge, Paris, PUF, 1972; H. FRANCO JÚNIOR, Peregrinos, monges e guerreiros. Feudo-clericalismo e religiosidade em Castela medieval, São

Paulo, Hucitec, 1990; A. GUERREAU, O feudalismo, um horizonte teórico, Lisboa, Edições 70, s.d. (ed. orig. 1980); V. D. SILVA, A legislação econômica e

social consecutiva à peste negra de 1348 e sua significação no contexto da depressão do fim da Idade Média, São Paulo, Coleção da Revista de História,

Capítulo 6