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A redefinição da Primeira Idade Média

Os primeiros séculos medievais conheceram uma cristalização da hierarquia social, fenômeno que na verdade já se desenvolvia anteriormente, mas que se completou apenas no século IV. De fato, a crise geral que sacudiu a civilização romana no século III levara a uma limitação dos espaços de atuação individual e ao correspondente alargamento das funções do Estado. Isso se fez sentir tanto nos planos político, institucional, fiscal, econômico e religioso quanto no social. Nessa tenta- tiva global de salvar a civilização greco-latina (Apêndice 2), acreditou-se

que um dos caminhos seria um rearranjo das camadas sociais e sua posterior petrificação, impedindo que novas mudanças alterassem aquela pretensa estabilidade. A camada dirigente julgava ter assim restabelecido a ordem, ter inaugurado uma reparatio saeculi, uma “idade da restauração”.

Na realidade, as tentativas reformistas criaram uma enorme distância social entre as várias camadas. No topo da pirâmide estava a aristocracia senatorial, passada para trás com as reformas de Diocleciano (284-305), que tinham criado uma aristocracia de serviço, mas novamente ascendente com Constantino (306-337). A partir de então, a aristocracia burocrática foi absorvida pela elite tradicional através da cultura e do estilo de vida. Essa aristocracia senatorial era no século IV, em média, cinco vezes mais rica que a do século I — o rendimento anual de um senador chegava a ser 600 vezes maior que o de um comerciante e 24.000 vezes o de um camponês (33: 35, 37).

As camadas médias, rurais e urbanas, encolhiam. As primeiras, devido à generalização do patrocinium, laço de dependência que se criava entre um camponês livre e um grande proprietário. Diante daquele opressor aparelho estatal de altas e constantes exigências fiscais, muitos pequenos proprietários, sem condições de pagar, entregavam sua terra a um importante e influente personagem, colocando-se sob sua proteção. Dessa forma, aos poucos, na prática aquele camponês perdia sua liberdade, ficando vinculado à terra que trabalhava e não mais lhe pertencia. Por outro lado, o latifundiário tirava aquele homem da órbita do Estado (pagamento de impostos, proteção judiciária, convocação militar), contribuindo para o enfraquecimento deste.

Por sua vez, as camadas médias urbanas viam-se esmagadas por dois fatores. O primeiro deles — o processo de ruralização da sociedade romana — resultava de sua contradição básica: sendo escravista e imperialista, ela só poderia manter-se graças a novas conquistas que renovassem o estoque de mão-de-obra e trouxessem mais riquezas por meio de saques e tributos. Contudo, o escravismo e o imperialismo marginalizavam grande parte da população, que precisava ser sustentada pelo Estado. A continuidade da expansão era imprescindível e cada vez mais difícil, e a um custo maior

pela própria distância das regiões a serem submetidas. A preservação e a administração daquele império tornavam-se problemáticas. Quando a ex- pansão cessou, pela impossibilidade de continuá-la, desencadeou-se a crise do século III. E com ela a intensificação das lutas sociais, a contração do comércio e do artesanato, a retração demográfica, a pressão do banditismo e dos bárbaros. Logo muitas das atividades urbanas se debilitaram e a insegurança aumentou, levando a uma forte migração para o campo.

O segundo fator que enfraquecia as camadas médias urbanas era um pesado conjunto de impostos que o Estado cobrava para tentar manter a própria vida citadina. Obrigados a contribuir na promoção de jogos circenses, na distribuição de trigo à população marginalizada e na realização de obras públicas, os curiales (espécie de aristocratas urbanos) procuravam fugir aos seus encargos. O Estado precisou proibir sua migração para o campo e mesmo sua entrada para a camada senatorial ou para o clero. Sua função tornou-se hereditária, como já ocorria com artesãos e camponeses.

Na base da sociedade, os trabalhadores livres urbanos tiveram decretada a vitaliciedade e hereditariedade de suas funções, sendo reunidos em collegiae (corporações) de acordo com a especialização, para facilitar o controle estatal. Os trabalhadores livres rurais tendiam a se tornar dependentes dos latifundiários por meio do patrocinium e, sobretudo, do colonato. A criação dessa instituição era uma tentativa de responder a problemas colocados pela crise: atendia ao interesse dos proprietários em ter mais mão-de-obra, ao interesse do Estado em garantir suas rendas fiscais, ao interesse dos humildes e despossuídos por segurança e estabilidade.

Realmente, com o acentuado recuo da escravidão, que tinha sido a principal força de trabalho do Império Romano, procurou-se constituir um novo tipo de trabalhador rural, o colono. Para os marginalizados que abandonavam as cidades, e para os camponeses livres sem terra, receber um pequeno lote de um latifundiário, entregando em troca parte da sua produção anual, representava alimento e proteção naquela época de carestia e insegurança. Mesmo escravos passaram a ter seus lotes. O proprietário procurava assim solucionar dois problemas daquele tipo de

mão-de-obra — sua baixa produtividade e sua pequena taxa de natalidade — oferecendo melhores condições de vida. Ou seja, o colono surgia do aviltamento da condição do trabalhador livre e da melhoria da condição do escravo. Ele estava vinculado ao lote que ocupava. A terra não poderia ser vendida sem ele, nem ele sem a terra. As obrigações que devia não eram leves, mas estavam claramente fixadas e não podiam ser modificadas pelo latifundiário. O colonus era juridicamente um homem livre, mas verdadeiro escravo da terra.

A penetração e a fixação dos germanos em território romano muito pouco alteraram esse quadro. Pelo contrário, reforçaram a importância dos laços de parentesco em detrimento dos de cidadania, como já ocorrera nos últimos tempos romanos. Também como a romana, a sociedade germânica era rigidamente hierarquizada, com uma aristocracia que possuía a maior parte das terras, uma camada de homens livres guerreiros, por fim os escravos. Aliás, essa estratificação semelhante à da sociedade romana facilitou a lenta fusão entre os dois povos, ocorrida horizontalmente, entre grupos hierárquicos correspondentes, de início sobretudo as aristocracias.

Já no século III, precisando de soldados diante do retrocesso populacional, o Estado romano contratara muitos germanos, às vezes tribos inteiras. O pagamento por esse serviço militar era a entrega de lotes fronteiriços (hospitalitas), prática que se estendeu a todo o território romano com as invasões do século V. No entanto, os moldes em que se dava aquela partilha variavam, No caso dos visigodos e dos burgúndios, os invasores ficaram com dois terços da terra, mas apenas em determinados locais. Os ostrogodos, por sua vez, aceitaram receber somente um terço. Por esses acordos, evitava-se o confisco violento de propriedades (até porque havia abundância de terra diante do retrocesso demográfico) e as aristocracias se aproximavam. A contraprova temos no reino vândalo, onde a inexistência de contratos de hospitalidade levou a expropriações por parte dos invasores, o que descontentou fortemente os proprietários romanos e impossibilitou a fusão racial como ocorreria em outros locais.

Mas alguns fatores dificultavam a aproximação entre conquistadores e conquistados. A fraqueza demográfica germânica ajuda a explicar a

recusa à miscigenação em certos reinos, talvez como forma de preservação de identidade. Para tanto havia certa segregação, com bairros separados para romanos e bárbaros nas cidades da Itália ostrogoda, com a função militar proibida aos romanos em diversos reinos, com os germanos em quase todos os locais usando sua roupagem tradicional, que os distinguia facilmente dos nativos. Foram proibidos os matrimônios mistos, determinação de uma lei romana de 370 e que os germanos mantiveram em alguns reinos até meados do século VII.

Mais importante foi a questão religiosa, já que ostrogodos, visigodos, vândalos, burgúndios, suevos e lombardos adotaram o arianismo, heresia* que os afastava da população romana católica. Talvez essa opção religiosa tenha mesmo sido outra forma de os bárbaros conservarem sua identidade, o que explicaria o fato de os godos terem colocado obstáculos jurídicos à adoção do arianismo por parte dos romanos. Igualmente funcionando como obstáculo, francos, alamanos, alanos, anglos e saxões permaneceram ligados ao paganismo. Empecilho que foi sendo removido a partir do momento em que os francos, em 496, e os visigodos, em 587, se converteram ao catolicismo e acabaram em diferentes momentos sendo imitados pelos demais germânicos.