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Da mesma forma que a respeito da moradia, não é possível resumir a evolução e as características do vestuário medieval, devido à sua grande variedade no tempo, no espaço e nas categorias sociais. Ademais, nesse campo novo da medievalística, a documentação é muito pobre, em especial sobre a Primeira e a Alta Idade Média. Por fim, como observam Françoise Piponnier e Perrine Mane, “apesar de responder a uma das necessidades vitais do ser humano, proteger seu corpo contra as agressões exteriores, o vestuário a custo foi admitido no mundo dos historiadores como um objeto

tão digno de interesse quanto a alimentação ou ainda as formas de habitação”. (p. 5)

Apesar dessas dificuldades, um dado parece inegável: por toda Idade Média a base do vestuário foi a túnica de mangas. Seu comprimento mudou várias vezes, mas geralmente ia até os tornozelos para as mulheres e até os joelhos para os homens. Debaixo dessa túnica usava-se uma camisa, longa no caso feminino, curta no masculino, pois os homens portavam ainda calções, uma espécie de ceroula que ia até os tornozelos. No inverno, quem tinha condições colocava diretamente no corpo, sob a camisa, uma peliça, espécie de colete de pele, sem mangas Por cima de tudo vinha uma capa, às vezes com capuz, de pele no caso dos mais ricos, de lã no dos mais simples. O calçado podia ser bota de couro de cano alto para os ricos ou simples sapatilha de tecido para os mais pobres. O uso de luvas era difundido em todas as categorias sociais. O guarda-roupa era muito limitado, geralmente apenas um conjunto de peças de reposição. As peças superiores (túnica, capa) eram duráveis, as íntimas eram tiradas para dormir e usadas cerca de duas semanas antes de ser lavadas, de forma que não se desgastassem muito.

Lazer

De maneira geral, os medievais levavam uma vida material dura, os clérigos passando muitas horas por dia em orações, estudo e tarefas cotidianas de sua diocese ou mosteiro, os senhores laicos em exercícios militares e administração de seu senhorio*, os burgueses em difíceis negociações e perigosas viagens, os camponeses num trabalho pesado e de retorno nem sempre compensador. O trabalho era visto como penitência devida pelo Pecado Original, após o qual Deus decretara que o homem comerá “com o suor do rosto” (Gênesis 3,19). A palavra “trabalho”, e seus correspondentes em todas as línguas latinas, derivou de tripalium, um instrumento romano de tortura. Mas, como em todos os locais e épocas, a Europa medieval tinha variadas formas e momentos de lazer que procuravam compensar o trabalho no restante do tempo.

especialmente da condição social da pessoa. Na teoria, os clérigos procuravam evitar a ociosidade, mãe do pecado, e deviam limitar-se a cantar, a ler, a conversar entre si ou a passear pelo claustro*. Na prática, visitavam parentes e amigos leigos, faziam pequenos jogos de advinhação e mímica, viajavam em peregrinação* e para ir a sínodos e concílios*. Os de comportamento menos rigoroso, como os goliardos*, não dispensavam a taverna, o jogo de dados e mesmo, às vezes, o bordel.

Os senhores laicos apreciavam especialmente a caça (que servia sobretudo de preparação para a guerra), os banquetes em que se recebiam vassalos e forasteiros importantes, os torneios em que se podia ganhar fama e riqueza, os jogos aristocráticos, como o xadrez, introduzido na Espanha muçulmana talvez no século X e que se difundiria no Ocidente a partir do século XII. Os citadinos apreciavam diferentes jogos de azar, em particular de dados, praticados em praças públicas ou cm tavernas, e que muitas vezes provocavam desordens, levando monarcas como Luís IX da França (1226-1270) a proibi-los. Em meados do século XIV surgiram no sul da Alemanha os primeiros jogos de baralho. Os camponeses, por fim, dedicavam-se sobretudo a jogos ao ar livre, espécies de disputas esportivas que testavam a força e a habilidade físicas.

O lazer medieval por excelência estava nas muitas festas do calendário, que reservava (contando os domingos, dia semanal de festa) cerca de um quarto do ano a elas. Festas que, da mesma forma que em todas as sociedades agrárias, não eram apenas rupturas com o cotidiano e momentos de descanso, e sim atividades de forte caráter mágico, propiciatório, que pelo desperdício, pela abundância de comida e bebida buscavam atrair os favores dos poderes supra-humanos. Por isso mesmo as festas do calendário litúrgico medieval, comemorações cristãs de eventos importantes da história santa, sempre guardaram muito de seu caráter pagão.

Era o caso, para citar um primeiro exemplo, da Páscoa, a principal data do calendário cristão, na qual se rememora a Ressurreição do Senhor. Ora, esse momento do ano havia milênios era objeto de reverência, marcando o início da primavera no Hemisfério Norte e, assim, o renascimento de toda

a natureza após o inverno. A semana pascal formava um conjunto de festas agrícolas muito mais antigas que os eventos que comemora no calendário religioso judaico (Êxodo) e no cristão (Ressurreição de Cristo). Sentido enraizado na psicologia coletiva* e que não desapareceu na Europa medieval com a cristianização da data. Os jejuns e orações da semana terminavam, como nas sociedades pré-cristãs, com uma farta refeição, na qual mesmo os mais pobres comiam carne e ovos, que tinham sido interditados durante a Quaresma.

Em junho havia muitas datas festivas, que funcionavam como uma espécie de compensação antecipada ao verão, ponto alto dos trabalhos agrícolas e, portanto, estação de poucas festas. Dentre as comemorações juninas, a principal era a de São João Batista, no dia 24, o dia do ano de maior número de horas de sol no Hemisfério Norte. Mas outros santos também eram reverenciados naquele mês, e dessas festas nasceu o teatro medieval, que até o século XI representava no pórtico das igrejas dramas religiosos em latim e depois enredos cm língua vulgar, chamados “jogos” nos séculos XII-XIII, “milagres” no XIV e “mistérios” no XV. Desde o século XIII, paralelamente a esse teatro ainda de fundo religioso, desenvolvia-se um puramente laico, que se utilizava de temas do teatro antigo e de tradições folclóricas locais.

Já no outono, a 29 de setembro, na festa de São Miguel, os camponeses pagavam suas obrigações anuais ao senhor da terra e, com a participação deste, celebravam o fim da etapa mais dura dos trabalhos no campo. Aquela era uma ocasião de o senhor desempenhar seu papel de provedor, de propiciador de fartura, oferecendo uma refeição simples porém farta a toda a comunidade. Em outubro ocorria a vindima (colheita da uva), fato importante naquela sociedade para a qual o vinho era praticamente a única bebida tônica, essencial no inverno que se aproximava e também na liturgia. Essa atividade era de tanta significação que deu nome ao mês no calendário carolíngio: Windumemanoth, “mês das vindimas”. Entende-se assim que ela fosse festejada com grandes festas locais, plenas de cantigas camponesas e vinho.

solstício de inverno, isto é, do dia mais curto do ano, após o qual o sol começa a reaparecer com maior força e duração. Depois de longas discussões sobre a data do nascimento do Salvador, no século IV ela foi colocada naquele dia, a partir da identificação mítica entre Cristo e o Sol. O antigo costume de trocar presentes naquele momento para estimular a fertilidade foi prolongado pelo cristianismo, que o justifica como comemoração do nascimento do Deus encarnado e como imitação do gesto dos magos que o presentearam. No fecho do inverno, o Carnaval e seus excessos alcoólicos, alimentares e sexuais festejavam o fim da morte temporária da natureza que ocorre naquela estação.

Morte

Vivendo num mundo agrícola, em que se percebe cotidianamente como alguns seres precisam morrer para que outros possam viver, convivendo com a constante ameaça da fome, das epidemias e das guerras, os medievais sentiam a onipresença da morte, mas isso não os incomodava. Eles tinham dela uma visão natural, tranqüila, diferente da de seus descendentes dos séculos seguintes. Como o cristianismo ensina que a morte é o começo da vida eterna, e não o fim definitivo, chegado o momento as pessoas procuravam se preparar. A grande tragédia não era morrer, mas morrer inesperadamente, sem ter confessado, recebido os sacramentos*, feito doações e esmolas, estabelecido o testamento. Tinha-se consciência e resignação pelo fato de que o destino das espécies vivas é morrer. A morte nivela os homens e mostra o despropósito de seu orgulho e suas riquezas.

Esse é o sentido da advertência de Deus ao ser humano, ainda no Paraíso: “Você é pó e ao pó voltará” (Gênesis 3,19). Esse é o sentido do texto que o monge Cisterciense Hélinand de Froidmont escreveu entre 1194 e 1197: “A morte libera o escravo/a morte submete rei e papa/e paga a cada um seu salário/e devolve ao pobre o que ele perde/e toma do rico o que ele abocanha”. Mas no século XII, com os progressos materiais da sociedade cristã ocidental e com o desenvolvimento do individualismo, foi mudando a postura a respeito da morte. O homem passara a viver melhor e queria viver mais. A morte foi deixando de ser uma amiga que o encaminhava para a

eternidade para se transformar numa inimiga que o afastava de tudo que conseguira ou pensava vir a conseguir neste mundo. O naturalismo franciscano que saudava afetivamente a morte como “nossa irmã, da qual homem algum pode escapar”, foi apenas um intervalo naquela tendência. No século XIV, com a peste negra, completou-se o ciclo e surgiu o conceito da morte macabra, mórbida, destrutiva. A morte não era mais uma presença cotidiana, era o fim do cotidiano.

Bibliografia básica: 16, 30, 41, 43, 45, 51, 57, 59, 64, 66.

Bibliografia complementar: J. -L. FLANDRIN, Un temps pour embrasser. Aux

origines de ia morale sexuelle occidentale (VI-XI siècle), Paris, Seuil, 1983; B.

LAURIOUX, Le Moyen Ãge à table, Paris, Adam Biro, 1989; M. PASTOUREAU,

A vida cotidiana no tempo dos cavaleiros da Távola Redonda, São Paulo, Cia.

das Letras, 1989; F. PIPONNIER e R MANE, Se vêtir au Moyen Àge, Paris, Adam Biro, 1995; A. H. de OLIVEIRA MARQUES, A sociedade medieval

Capítulo 8