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Ao promover a unção de Pepino, em 751, a Igreja justificara o poder monárquico. Em parte isso ocorrera por circunstâncias, já que o papa necessitava do apoio franco contra os lombardos. Em grande parte porque o próprio clero não escapava ao enraizamento da sacralidade real na psicologia coletiva*. Expressando esse sentimento, São Patrício afirmava no século V que um bom rei representa para seu povo “tempo favorável, mar calmo, colheitas abundantes e árvores carregadas de frutas”. O abade Abbon de Fleury, no século X, lembrava que “a partir do momento da sagração desobedecer ao rei é desobedecer ao próprio Deus”. Em fins do século XI, ao passar pelo norte da Itália, o imperador Henrique IV, apesar de excomungado pela Igreja, era procurado por camponeses que queriam tocar suas vestes por acreditar que assim teriam boas colheitas. Na passagem do século XI ao XII, um interessante texto, conhecido por

Anônimo normando, afirmava ser o rei persona mixta, homem por natureza,

Deus pela graça transmitida pela unção. Na Inglaterra de meados do século XIII até princípios do XVIII, na França até 100 anos mais tarde, os reis curavam certas doenças pelo contato de suas mãos. Alguns documentos de períodos de trono vacante falam no “Cristo reinante”, ou seja, quando da falta de um rei o poder revertia à sua fonte, Cristo, em nome de quem, portanto, ele governava.

Apesar de aceitar a sacralidade monárquica, a Igreja velava para que tal poder não se tornasse excessivo, daí a farta literatura conhecida por “espelho dos príncipes”. Literatura de exortação aos monarcas, de quem se exigiam qualidades cristãs e a quem se estabeleciam limites de atuação. Limites que vinham de uma outra faceta do rei medieval. De fato, se ele “era teocrático, não é menos certo que ao mesmo tempo era um senhor feudal cuja função como tal deve se separar conceitualmente de sua função teocrática” (91: 155). De um lado, como Rex Dei Gratia, “rei por graça de Deus”, mantinha uma relação unilateral, com amplos poderes (mais teóricos que práticos, na verdade) sobre seus súditos. De outro, como suserano (isto é, “senhor do senhores”), mantinha uma relação bilateral com seus vassalos, a quem devia determinadas obrigações como

contrapartida dos direitos que possuía em relação a eles.

Esse aspecto contratual vinha dos bárbaros germanos, para quem o rei, eleito, estava de certa forma subordinado ao direito costumeiro da tribo. Este determinava os poderes e atribuições do rei, e naturalmente não podia ser alterado por ele sem o consentimento da comunidade por intermédio da assembléia dos guerreiros. Com o mesmo espírito, no feudalismo o vassalo que não cumpria suas obrigações podia perder seu feudo*, depois de julgado por seus pares no tribunal do senhor. Correspondentemente, o senhor que desrespeitava suas obrigações via o vassalo romper o contrato feudo-vassálico [diffidatio). Assim, o rei feudal como suserano mantinha relações contratuais apenas com seus vassalos diretos. Escapavam-lhe os vassalos de seus vassalos (menos na Inglaterra) e a população servil que dependia de seu senhor imediato, o detentor da terra na qual ela vivia e trabalhava.

Esse contratualismo presente nas atitudes mentais da Idade Média tinha originado nos séculos XII-XIII uma grande variedade de agrupamentos com determinados interesses a defender, das corporações de ofício às universidades, das comunidades juramentadas burguesas às heresias*. Indo ao encontro disso, a redescoberta e a revalorização do pensamento aristotélico trouxeram à tona, no século XIII, a idéia de que o poder da assembléia popular estava baseado no direito natural. Assim, tanto por parte dos monarcas que buscavam apoio para suas decisões quanto por parte daqueles que pretendiam impedir eventuais abusos da realeza, as assembléias representativas ganharam importância desde mea- dos do século XIV. Especialmente na tarefa legislativa, a partir do princípio “o que afeta a todos deve ser aprovado por todos”, presente no Direito feudal e também no Direito Romano, que recuperava terreno desde o século XII. Enfim, “o conceito de representação política é, sem dúvida, uma das grandes descobertas dos governos medievais” (89: 70).

Por outro lado, a partir da própria fragmentação política feudal desenvolvia-se um elemento que acabaria por ter um papel reaglutinador. Os bárbaros tinham possuído certa solidariedade de tribo ou de povo, que contudo não se associara a um território por causa de seu nomadismo.

Com a penetração e fixação em terras do antigo Império Romano, aos poucos surgiram vínculos entre os habitantes, seus costumes, suas tradições e o território ocupado. O primeiro resultado disso é constatável séculos depois, quando em 813 o concilio* de Tours recomendava ao clero traduzir os sermões em língua vulgar para que fossem mais bem compreendidos. As condições específicas de cada povo em cada região refletiam-se em formas próprias de expressão.

Os idiomas vernáculos apareciam, e com eles o princípio do nacionalismo, isto é, certa consciência dos indivíduos de um grupo humano de terem uma origem e um destino comuns. Esse sentimento passou, desde o século XI e mais claramente desde o XII, a se identificar com todo um reino e a ser mesmo reconhecido como legítimo pela Igreja. Mas o nacionalismo progredia em torno do soberano (rei no aspecto teocrático) ou do suserano (rei no aspecto feudal)? Cada região apresentou uma resposta própria. Na impossibilidade de examinar todos os casos, de todos os matizes, vejamos rapidamente as situações limítrofes.

Na França, a dinastia dos Capetos (987-1328) soube explorar as possibilidades da prática feudal para ganhar um poder diferente do feudal. De um lado, aqueles reis aproveitaram-se de qualquer desrespeito aos costumes para confiscar feudos e ampliar os territórios que governavam como senhores diretos, o chamado domínio real. De outro lado, insistiam que os vassalos revoltados quebravam seu juramento e expunham-se às sanções divinas, além de dar exemplos perigosos que seus próprios vassalos poderiam seguir. Ademais, recorrendo ao serviço de consilium devido pelos vassalos, os reis organizaram muitos órgãos, sobretudo o Parlamento de Paris, que lhes permitiram como suseranos arbitrar quaisquer desacordos entre senhores e vassalos. Dentro das regras feudais, os monarcas franceses prepararam a unificação jurídica. Paralelamente, aproveitando-se da recuperação do Direito Romano, tentaram aplicar o antigo princípio de “o que o príncipe decidiu tem força de lei”. Apesar das dificuldades e limites dessa aplicação, é inegável que, no conjunto, o poder real era a partir do século XIII cada vez mais o poder de um soberano e cada vez menos o de um suserano.

Assim, já em 1204 Filipe Augusto pôde, pela primeira vez, usar oficialmente o título de Franciae rex. No ano seguinte surgiu a expressão

Regnum Franciae, entendido esse “reino da França” como a communis patria de todos os franceses. A fusão entre rei, França e nação francesa

avançava, levando teóricos do século XV a considerar que o rei era o reino, o que permitiu a Luís XI (1423-1483) afirmar “eu sou a França”, 200 anos antes de Luís XIV, no auge do Absolutismo, proclamar seu célebre (mas talvez apócrifo) “o Estado sou eu”. Não surpreende, portanto, que o título de majestade — que desde as primeiras décadas do século XI indicava as representações de Cristo entronizado, e que por volta de 1120 passara à língua francesa com esse mesmo sentido — tenha começado em torno de 1360 a ser aplicado ao rei.

O caso da Inglaterra é oposto. Ali, o feudalismo não partiu de um processo espontâneo como na França, mas foi implantado de fora para dentro e de cima para baixo em 1066, com a invasão de um grande vassalo francês, o duque da Normandia, Guilherme, o Conquistador. Nas terras então arrancadas à população nativa, o novo rei colocou os homens que o acompanharam na invasão. Foram criados assim 5.000 feudos, cujos detentores eram vassalos reais, mas — ao contrário do que ocorria no continente — também os vassalos daqueles deviam fidelidade direta ao rei. Ou seja, a subenfeudação não enfraquecia o poder monárquico, daí a clássica expressão de “feudalismo centralizado” que se utiliza para a Inglaterra. Além disso, o rei manteve para si, em cada região, mais terras do que tinha ali seu mais poderoso vassalo. Com essa base de poder, seu bisneto Henrique II (1154-1189) tentou alargar sua função teocrática, enfrentando com isso a oposição da Igreja por intermédio do arcebispo de Canterbury, Tomás Becket. Assassinado, se não a mando do rei, pelo menos por sua instigação, ele tornou-se uma espécie de mártir, e o poder real passou a sofrer diversas contestações.

Fig. 3. Sagração de um rei inglês (miniatura francesa de princípios do século XIV, atualmente no Corpus Christi College, Cambridge). A cerimônia de sagração que transformava o rei cm figura quase sagrada era um rito eclesiástico, como se vê pelos vários bispos e outros clérigos que cercam o monarca nesta imagem. Observe-se também o destaque dado aos símbolos do poder de que o rei era então investido: trono

(como o chamado “Cristo em majestade”), coroa (como o próprio Cristo e alguns santos em certas representações), cetro (como os bispos).

Com João Sem Terra (1199-1216) a questão se agravou. Necessitando de recursos para manter suas possessões na França, o rei confiscou castelos e terras. Como tais medidas ocorriam no campo do direito feudal, os barões, ou seja, os vassalos reais, podiam reclamar a diffidatio. Impopularizado com a derrota em Bouvines, e cada vez mais pressionado, o rei precisou assinar em 1215 a Magna Carta, que reforçava os princípios feudais, esvaziando conseqüentemente a faceta teocrática do poder. Na sua cláusula mais famosa, a Magna Carta instituía um Conselho de Barões para zelar pelo cumprimento por parte do rei de todas as determinações do documento. Estava lançada a semente do Parlamento, que, ao contrário de seu correspondente francês, não servia aos interesses do rei. Fiscalizava-o e controlava-o.