• Nenhum resultado encontrado

O feudalismo, do ponto de vista político, representava uma pulverização do poder que respondia melhor às necessidades de uma sociedade saída do fracasso de uma tentativa unitária (Império Carolíngio) e pressionada por inimigos externos (vikings, magiares etc). Na verdade, as tendências centrífugas vinham desde o século IV, quando manifestaram e aceleraram o debilitamento do Império Romano. Naquele momento, com a busca da auto-suficiência por parte dos latifúndios, com a insegurança gerada pela penetração dos bárbaros e com as dificuldades nas comunicações, acentuou-se a ruralização da economia e da sociedade, levando os representantes do imperador a se verem limitados nas suas possibilidades de atuação. Os grandes proprietários rurais puderam, assim, usurpar atribuições do Estado: foi o caso, no começo do século V, da autoridade fiscal sobre os colonos, então delegada ao proprietário da terra na qual eles trabalhavam.

A formação dos reinos germânicos em nada alterou a essência daquele processo. Naquela economia fundamentalmente agrária, os monarcas remuneravam seus servidores e guerreiros com terras, às quais se concediam

muitas vezes imunidades*. O detentor da terra desempenhava ali o papel de Estado, taxando, julgando, convocando. Foi assim que a dinastia Merovíngia se enfraqueceu de tal forma que cedeu lugar à família latifundiária dos Carolíngios. No entanto, porque aquele era o condicionamento socioeconômico da época, Pepino e Carlos Magno continuaram a praticar tal política. Dessa forma os condes foram se apossando de poderes régios e implodindo o Estado carolíngio. Mas o próprio poder condal também foi se parcelando e caindo em mãos de seus servidores, viscondes e castelãos. O mapa político da Europa católica ficava estilhaçado em milhares de pequenas células, verdadeiros micro-Estados.

Dentro de cada um deles o poder estava em mãos dos guerreiros (bellatores), únicos em condições de fornecer proteção naquela época de insegurança generalizada. Ao menos essa tinha sido a justificativa inicial. Um estudo sobre a Provença do século IX ao XII mostrou que a maior militarização da região — cerca de 12 castelos na primeira metade do século X, algumas dezenas pouco antes do ano 1000, uma centena por volta de 1030 — devia-se à necessidade de enfrentar os rivais locais e sobretudo de dominar o campesinato, pois na verdade os inimigos externos não ameaçavam mais desde que em 972 os muçulmanos tinham sido expul- sos dali. As relações entre tais micro-Estados, que se davam por vínculos pessoais, o contrato feudo-vassálico, tinham em última análise o mesmo sentido. A concessão e recepção de feudos e sua contrapartida (o' serviço militar) representavam uma forma de divisão da riqueza (terra e trabalhadores) sempre dentro da mesma elite. O poder político estava fracionado para que pudesse ser mantido.

Nesse contexto, o surgimento das comunas representou um papel interessante e importante. De um lado, aquele processo negava os princípios feudo-clericais*. Realmente, “comuna” significava uma associação igualitária, que quebrava as hierarquias, e era por isso uma “conjuração” contra o exercício dos poderes senhoriais. Daí a célebre definição do abade Guibert de Nogent (1053-1124): “comuna, palavra nova e detestável”. O tipo mais difundido era a comuna citadina, a comunidade burguesa que se organizava para defender seus interesses comerciais diante dos abusos

feudais, como confiscos ou taxações excessivas. No começo do século XI, ela pretendia apenas escapar à arbitrariedade senhorial. Cerca de 100 anos depois, ela passou a buscar autonomia, que se comprava ou arrancava à força, dependendo de cada caso.

Nascia então a verdadeira comuna, ou cidade-Estado. Seu modelo acabado estava na Itália, região mais urbanizada do Ocidente, onde as longas lutas entre Império e Igreja tinham criado um vácuo de poder preenchido pelas associações burguesas. As comunas representaram uma novidade política não apenas na sua relação com os poderes tradicionais, mas também na sua organização interna. No primeiro momento seu regime político foi o consulado, com um grupo de funcionários (cônsules) eleitos defendo poderes executivos e judiciais. Para controlá-lo, havia uma as- sembléia inicialmente formada por todos os cidadãos e depois por um certo número deles escolhido por eleição ou sorteio. Num segundo momento, diante das crescentes disputas internas da camada dirigente, passou-se a entregar o poder a uma só pessoa, de fora da cidade e portanto neutra nos seus conflitos, o podestà (“regedor”).

Esse funcionário que recebia poderes administrativos e policiais tinha um mandato curto e que não podia ser renovado, geralmente de seis meses. Também para impedir que esse sistema caísse na tirania, o podestà era fiscalizado por um grupo de cidadãos, o Conselho Geral, herdeiro do poder dos cônsules. Terminado seu mandato, o podestà era obrigado a permanecer um certo período na cidade, enquanto suas contas eram verificadas. Tal sistema, surgido na segunda metade do século XII, tornou-se o mais comum na primeira década do século XIII. No entanto, ele não conseguiu pôr fim aos conflitos internos, nem os de caráter socioeconômico (entre grandes comerciantes e banqueiros, de um lado, e pequenos comerciantes e artesãos, de outro) nem os de caráter político (entre facções do estrato dominante). Evoluiu-se então para um terceiro momento, a partir da segunda metade do século XIII, o da signoria: diante das lutas internas e da desordem resultante, colocava-se todo o poder municipal por tempo indefinido nas mãos de um único homem, dotado de poder militar para pacificar a cidade, o condottiere, o “comandante”.

O grau de autonomia conseguido pelas comunas foi muito variável conforme o tempo, o local e o tipo de associação. Na Itália setentrional, ele foi precoce (por volta do ano 1000) e intenso. Mostrando sua força e determinação em manter a independência diante das ambições do imperador Frederico Barba Ruiva, as comunas italianas aliaram-se c venceram em 1176. Em Flandres, apesar de submetidas juridicamente ao conde, as comunas gozavam na prática de ampla liberdade. Na Inglaterra, só escaparam do poder senhorial aproximando-se do poder monárquico, e portanto sujeitando-se. Na França, de forma geral, apoiaram a realeza contra a aristocracia feudal, mas as que surgiram em terras monárquicas foram combatidas pelo rei.

E importante lembrar que nem todas as comunas eram urbanas. As rurais, quase sempre muito modestas, nasciam da associação de aldeias contra o seu senhor. O espírito era o mesmo das comunas urbanas, mudavam os objetivos (acesso a áreas fechadas pelo senhor, reação ao desrespeito por costumes locais etc.) e as condições de alcançá-los (mais pobre que a cidade, o campo dificilmente podia comprar sua liberdade). De qualquer forma, pelo menos uma dessas comunas rurais, ou melhor, uma associação delas, teria grande sucesso: a Confederação Helvética, formada em 1291 contra o duque da Áustria, está na origem da Suíça. É verdade que nesse pacto depois também entraram cidades como Zurique e Berna, mas a iniciativa do processo foi camponesa. Para efetivamente soldar peças tão diferentes e encontrar fórmulas administrativas consensuais, foram necessários cerca de dois séculos antes de nascer o Estado suíço. O nacionalismo veio mais ou menos no mesmo momento, quando se literarizou e difundiu as tradições de fins do século XIII sobre o herói que teria encarnado a resistência, Guilherme Tell.

Se de um lado as comunas negavam o mundo feudal, de outro o prolongavam, pois nele tinham nascido e a ele não poderiam se opor completamente. Assim, o instrumento de formação de uma comuna era o mesmo do de um contrato feudo-vassálico: o juramento entre indivíduos que passavam a estar ligados por laços pessoais. Mais importante, as comunas passaram a se ligar entre si e com as regiões circunvizinhas por

meio de vínculos vassálicos. Naquela sociedade que se pretendia igualitária, desde cedo surgiram diferenciações políticas e econômicas que muitas vezes provocaram rebeliões internas. Numa aparente contradição, quanto mais a comuna se emancipava, escapava ao poder do antigo senhor, mais ela se feudalizava, isto é, usava em benefício próprio (ou seja, de seus dirigentes) a nova condição. Daí a expressão já clássica de “senhorio burguês”.