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O ressurgimento da peste na Baixa Idade Média

O crescimento populacional acabou por se revelar excessivamente elevado para as condições européias de então. Durante o auge daquele fenômeno tinham sido ocupadas terras marginais, de menor fertilidade, que se esgotavam em poucos anos, baixando a produtividade média e desestabilizando o frágil equilíbrio produção-consumo. No mesmo momento em que essa contradição se revelava mais claramente, no século XIII, ocorria uma alteração que acentuava as dificuldades. E tal alteração, por sua vez, era ao menos em parte produto daquela própria condição.

O aumento populacional tinha implicado a derrubada de grandes extensões florestais, já que a madeira era o principal combustível e material de construção: em 1300 as florestas da França cobriam 1 milhão de hectares a menos que hoje (57: 80). Dessa forma comprometia-se o equilíbrio ecológico, provocando mudanças no regime pluvial e portanto no clima, elemento fundamental para uma sociedade agrária como aquela.

Isso ajuda a explicar as chuvas torrenciais que em 1315-1317 atingiram a maior parte da Europa ao norte dos Alpes, exatamente nos locais de grande devastação florestal. O clássico estudo de Henry Lucas (22:1930, 343-377) mostra que as chuvas constantes e a queda de temperatura prejudicavam as vinhas, a produção do sal que se dava por evaporação, e sobretudo a produção dos cereais, cujos grãos não cresciam nem amadureciam.

Na Inglaterra, o preço de uma medida de trigo, que era de 5

shillings em 1313, pulou para 20 em princípios de 1315 e para 40 em

meados do ano. Em Antuérpia, importante centro distribuidor de cereais, o trigo subiu 320% em sete meses. A fome fazia grande quantidade de vítimas. O canibalismo tornou-se comum. Diferentes epidemias agravavam a situação. Impulsionada pela fome, muita gente vagava em busca do que comer, levando consigo as epidemias e a desordem. Em Ypres, importante cidade do norte europeu, cerca de 10% da população morreu em 1316.

Na verdade, este foi apenas um ensaio da crise demográfica da Baixa Idade Média, que teve seu ponto crucial no ressurgimento da peste, então conhecida por peste negra. Ela apresentava-se de duas formas. A

bubônica (assim chamada por provocar um bubão, um inchaço) tinha uma letalidade (relação entre os atingidos pela doença e os que morrem dela) de 60% a 80%, com a maioria falecendo após três ou quatro semanas. A peste pneumônica, transmitida de homem a homem, tinha uma letalidade de 100%, fazendo suas vítimas depois de apenas dois ou três dias de contraída a doença.

Também a peste, de certa forma, resultava da desmedida expansão do período anterior. Sempre presente no Oriente, ela atingiu a colônia genovesa de Caffa, na Criméia, expressão da expansão territorial e comercial do Ocidente*. Contra essa presença ocidental, os tártaros cercavam a colônia italiana quando a peste se manifestou em seu exército. Recorrendo àquilo que Jean-Noël Biraben chamou de “inovação na guerra bacteriológica” (BIRABEN:I, 53), eles arremessaram cadáveres infectados por

cima das muralhas genovesas.

Abandonando o local, os genoveses levaram a peste para Constantinopla, Messina, Gênova e Marselha. Destes portos ela difundiu-se pelo restante da Europa. Grosso modo, a peste propagou-se de sul para norte, quase sempre do litoral para o interior. Ela caminhava mais rapidamente pelas principais vias de comunicação e penetrava mais facilmente em regiões de alta densidade demográfica, produto da Idade Média Central.

Democrática e igualitária, a peste atingia indiferentemente a todos. Ao contrário do que os historiadores sem conhecimento médico sempre afirmaram, a má nutrição não era condição agravante. Ricos e pobres, organismos bem e mal alimentados, eram igualmente suscetíveis à peste. A diferença residia no fato de se estar mais ou menos exposto ao contágio. Grupos como coveiros, médicos e padres eram mais atingidos por razões profissionais. As zonas rurais, de população mais esparsa, eram mais poupadas que as cidades. A única possibilidade de salvação estava em manter-se afastado dos locais tocados pela peste. Foi o que fizeram, por exemplo, os personagens do Decameron, de Giovanni Boccaccio, que abandonaram Florença e foram viver isolados nos arredores da cidade enquanto a peste maltratava seus concidadãos que não tinham recursos

para fugir.

Fig. 1. A dança macabra. Xilogravura italiana de 1486. Até por volta de 1350 raramente a morte era retratada, e quando o era tratava-se de uma mensageira do mundo divino. A partir de então, a morte tornou-se um tema recorrente na arte e na literatura, representada como uma força impessoal, com iniciativa própria, que atinge a todos, poderosos e humildes, clérigos e leigos, jovens e velhos, virtuosos e pecadores. O significado da morte alterou-se, e com ele toda uma sensibilidade: perdendo qualquer conotação ética, atingindo a todos indistintamente — na presente figura, um bispo e um homem rico — a morte deixou de ter natureza cristã. Caminhava-se para uma nova espiritualidade*, questionava-se o poder de intercessão da Igreja, preparava-se terreno para o Protestantismo.

Até 1670, a Europa foi atingida todo ano. No período crítico, o da chamada peste negra, em 1348-1350, as perdas humanas variaram, conforme a região, de dois terços a um oitavo da população. No conjunto, estima-se, a Europa ocidental perdeu cerca de 30% de seus habitantes naquela ocasião, e só retomaria o nível populacional pré-peste 200 anos depois, em meados do século XVI. A peste negra foi a maior catástrofe populacional da história ocidental: num intervalo de tempo bem menor, matou, em termos absolutos, mais do que a Primeira Grande Guerra Mundial e, em termos relativos, considerando-se a população européia nos dois momentos, mais do que a Segunda Guerra Mundial.

Bibliografia básica: 41, 42, 43, 50, 52, 56, 63, 64, 70, 84.

Bibliografia complementar: R ALEXANDRE, Le climat en Europe au Moyen Âge.

Contribution à l'histoire des variations climatiques de 1000 à 1425, d'après les sources narratives de l'Europe occidentale, Paris, EHESS, 1987; J. -N. BIRABEN, Lês

hommes et Ia peste en France et dans les pays européens en mèditerranéens, Paris-La

Haye, Mouton, 1975-1976, 2 vols; O. GUYOTJEANNIN (dir.), Population et

démographie au Moyen Âge, Pau, CTHS, 1995; J. HEERS, “Les limites des méthodes

statistiques pour les recherches de démographie médiévale”, Annales de

Démographie Historique, 1968, pp. 43-72; C. McEVEDY e R. JONES, Atlas of World Population History, Harmondsworth, Penguin, 1980.

Capítulo 2