• Nenhum resultado encontrado

A renovação imperial carolíngia

As condições para tanto estariam reunidas apenas no reino franco do século VIII, na figura de Carlos Magno. Em primeiro lugar, pelo fato de ele ter a anuência da Igreja para dar aquele passo. De fato, os francos tinham sido os primeiros germânicos a se converter ao catolicismo romano, em fins do século V. Depois, em 732, Carlos Martel derrotara os muçulmanos na célebre batalha de Poitiers, ganhando o prestígio de um verdadeiro salvador da Cristandade*. Seu filho, Pepino, o Breve, consolidou o pacto franco-papal. Em troca da deposição do último rei da dinastia Merovíngia e de sua própria entronização como rei dos francos, em 751, Pepino arrancou as terras italianas recém-ocupadas pelos lombardos e entregou-as à Igreja. Ademais, ele transformou em lei o antigo costume dos cristãos de entregar o dízimo (décima parte dos rendimentos) à Igreja. Por fim, o próprio Carlos Magno continuou a obra do pai, derrotando definitivamente os lombardos, confirmando a doação daquelas terras ao papado e alargando a Cristandade ao submeter saxões e ávaros.

Em segundo lugar, as relações do Ocidente com Bizâncio estavam bastante abaladas naquele momento, de forma que não havia a preocupação dos três séculos anteriores em respeitar os direitos bizantinos. Ainda por cima, pôde-se argumentar que quando da coroação de Carlos Magno, no Natal de 800, o título imperial estava vago, pois o trono em Bizâncio estava ocupado por uma mulher. De qualquer forma, os bizantinos consideraram o fato uma usurpação e, apesar de em 812 terem feito um acordo e reconhecido a validade do título de Carlos Magno, sempre viram o Império Ocidental como ilegítimo. Carlos Magno, de seu lado, parece ter-se interessado pelo título como um prêmio por suas atividades políticas. Tudo indica que ele não via o império no sentido romano, mas como algo transitório, como “uma espécie de apoteose pessoal” (60: 126).

Isto fica claro pela organização administrativa do Império Carolíngio, excessivamente personalizada. O território estava dividido em centenas de

condados, de extensão variável, cada um deles dirigido por um conde, nomeado pelo imperador. O conde representava o poder central em tudo, publicando as leis e zelando pela sua execução, estabelecendo impostos, dirigindo trabalhos públicos, distribuindo justiça, alistando e comandando os contingentes militares, recebendo os juramentos de fidelidade dirigidos ao imperador. Em troca recebia uma porcentagem das taxas de justiça e sobretudo terras entregues pelo soberano. Na tentativa de fiscalizar esses amplos poderes dos condes, o imperador contava com os missi dominici (“enviados do senhor”), que aos pares (um leigo e um clérigo) visitavam os condados e elaboravam relatórios a respeito. Contudo, sendo esses enviados eles próprios condes e bispos ou abades, poucas vezes cumpriam seu papel imparcialmente.

Nas regiões fronteiriças, o representante do imperador recebia poderes especiais, sob o título de marquês. Nesses locais a tendência autonomista tornava-se ainda maior, havendo apenas um frágil vínculo com o Império. Acentuava essa situação a tradição germânica pela qual todo ano era convocada uma assembléia geral, na qual as decisões eram teoricamente tomadas por todos os homens livres. Na prática, pelas dificuldades de viagem, compareciam apenas os optimates, que tinham então seu peso político reforçado. Como resultado disso tudo, o imperador carolíngio detinha somente um dos monopólios anteriormente gozados pelo imperador romano, o de cunhagem de moedas. Procurando contrabalançar o vasto poder dos nobres, era obrigatório o juramento de fidelidade ao imperador por parte de todo habitante masculino desde os 12 anos de idade.

Mas essa prática revelou-se insuficiente para superar a fraqueza estrutural do Império Carolíngio, o que levou em 843 à sua fragmentação por meio do Tratado de Verdun, assinado entre três netos de Carlos Magno. Nele aparecia o primeiro esboço do futuro mapa político europeu. Corporificando tendências anteriores, o tratado estabeleceu dois grandes blocos territoriais, étnicos e lingüísticos (dos quais surgiriam as futuras França e Alemanha) e uma longa faixa pluralista, composta de uma zona de personalidade definida (Itália do norte), zonas multilingüistas que

sofreriam o poder de atração daqueles primeiros blocos (futuras Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Suíça), zonas intermediárias que seriam objeto de longas disputas (Alsácia, Lorena,Trieste, Tirol).

O que explica esse fracasso do Império Carolíngio e portanto a passagem, mais uma vez, para a pluralidade política? Em primeiro lugar, o fato de o Império não ter unidade orgânica, assentando-se sobre dois princípios contraditórios: o universalismo das tradições romana e cristã e o particularismo tribal germânico. A diversidade étnica era insuficientemente soldada pela autoridade real, muito sujeita a flutuações conforme a personalidade do soberano. Mais eficaz era a unidade espiritual, com o Império num certo sentido sendo tão-somente “a expressão política de uma unidade religiosa” (40: 218). No entanto isso não bastou para garantir seu sucesso, pois levantou a questão que se estenderia por séculos: a Igreja deveria tutelar o Império ou vice-versa?

Mapa 6. A partilha de Verdun, em 843, e os grupos lingüísticos (reproduzido de 70: 98)

Carlos Magno pretendeu unir a si todos os súditos importantes, num vínculo que manteria o predomínio imperial. A relação vassálica implicava, porém, a entrega por parte do soberano de terras e privilégios políticos que na verdade o enfraqueciam. Naquela economia essencialmente agrária, ao ceder terras para os nobres o imperador precisava conquistar novas áreas, mas para tanto dependia do serviço militar daqueles mesmos elementos. Surgia um círculo vicioso difícil de ser rompido. Ora, ao estabelecer novos laços de vassalagem para poder manter os já estabelecidos, debilitava-se o princípio monárquico, e o poder do soberano colocava-se noutras bases, contratuais.

Em terceiro lugar, revelou-se problemática a fusão do poder temporal e do poder espiritual na figura do imperador. No seu papel militar, pela tradição germânica, ele deveria ser um chefe guerreiro e obtentor de pilhagens; no seu papel religioso, pela tradição cristã, ele deveria ser o mantenedor da paz e da justiça. Frágil equilíbrio. Com Carlos Magno tendeu-se mais para a primeira função, com seu filho Luís, o Pio, para a segunda. Esse imperador fez, com sua opção, com que a expansão cristã fosse realizada por intermédio de missões religiosas, e não mais de conquistas militares. O soberano ficou assim privado dos proventos da pilhagem, de forma que precisava remunerar os vassalos com suas próprias terras, esgotando a fortuna fundiária carolíngia, base inicial de seu poder.

Por fim, as novas invasões dos séculos IX-X contribuíram para mostrar a debilidade do sistema imperial. A rapidez dos vikings, que descendo da Escandinávia penetravam pelos rios com seus barcos leves e ágeis, não permitia a defesa por parte daquele exército difícil de ser convocado e pesado nas manobras militares. A cavalaria dos magiares, sem as pesadas couraças ocidentais e aproveitando as planícies da Europa central, de onde saíam, causava pânico, e antes de qualquer contra-ataque retirava-se rapidamente para suas bases. Os muçulmanos e eslavos, ainda que menos perigosos, também contribuíam para aumentar o sentimento generalizado de insegurança. Ficava patente a impotência dos soberanos, e cada região organizava sua própria defesa, em torno da nobreza local. Era a região, portanto, que passava a definir seu próprio destino. A Europa*

cobria-se de castelos. O poder se fragmentava.

Ou, para usar as palavras de Roberto Lopez, “foi sobretudo devido à sua desorganização e à sua pobreza de raiz que a Europa 'invertebrada' do século X pôde resistir melhor às invasões do que o Império Romano do século V: em parte nenhuma havia centros vitais, artérias principais ou núcleos econômicos cuja perda pudesse levar ao desmoronamento de toda uma província. Para destruir uma a urna tantas células minúsculas, fora preciso um plano de ação e uma continuidade de desígnio que os agressores por certo não possuíam”. Assim, passado o impacto inicial, os invasores se enraizavam, a superfície do mundo cristão que Carlos Magno conhecera se duplicava, os invasores e os povos já estabelecidos se mesclavam. Em suma, no século X nascia a Europa (70: 112, 114). A partir de então, estavam presentes os personagens políticos que se manteriam em cena até o fim da Idade Média: o Império, a Igreja, as monarquias, o feudalismo e — um pouco mais tarde — as comunas*.