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Aumentos porcentuais na população européia entre os anos 200 e 1300 (reproduzido de McEVEDY e J ONES , p 23)

A expansão da Idade Média Central

Mapa 2. Aumentos porcentuais na população européia entre os anos 200 e 1300 (reproduzido de McEVEDY e J ONES , p 23)

Portanto, mesmo sem se poder quantificar com maior rigor e precisão a expansão demográfica da Idade Média Central, ela é inegável. Assim, é preciso pensar nas razões desse fenômeno. De início, devemos lembrar que naquele período dois fatores que anteriormente elevavam a mortalidade tiveram seu alcance reduzido. O primeiro deles — ainda insuficientemente esclarecido — foi a ausência de epidemias, com o recuo da peste e da malária, continuando apenas a lepra a ter certa intensidade. Talvez, como já vimos, a fraca densidade populacional anterior tenha funcionado como um diluidor e amenizador dos deslocamentos de bactérias.

O segundo fator a considerar é o tipo de guerra, que não envolvia grandes tropas de combatentes anônimos, como nas legiões romanas ou nos exércitos nacionais modernos: a guerra feudal era feita por pequenos bandos de guerreiros de elite, os cavaleiros. As batalhas propriamente ditas eram raras. Prevaleciam as ações individuais dos guerreiros, e não uma ação coletiva coordenada. Apesar dos laços de vassalagem* e de parentesco, uma luta entre dois grupos de nobres feudais envolvia geralmente poucas dezenas de guerreiros, raramente algumas centenas. Quando da invasão da

Inglaterra, em 1066, Guilherme da Normandia contava com 4.000 cavaleiros comandados por 200 barões. Na importante batalha de Bouvines, em 1214, na qual se jogou a sorte da França capetíngia, do Império Angevino e do Santo Império, Filipe Augusto contou com apenas 900 cavaleiros e 5.000 infantes.

E claro que durante essas lutas alguns senhorios eram devastados, porém o efeito destruidor da guerra geralmente fazia-se sentir apenas de forma local. O raio de ação de um grupo de cavaleiros era bastante reduzido, em virtude das dificuldades de deslocamento e de aprovisionamento. Aqueles guerreiros irrequietos e pouco disciplinados não se mantinham muito tempo em campanha. O contrato feudo-vassálico estipulava quase sempre um serviço militar de 40 dias anuais, sendo problemático mesmo para um senhor feudal poderoso reunir seus vassalos por um prazo superior. Em razão disso, sempre que possível os reis tentavam contratar guerreiros mercenários, alternativa possibilitada pelo próprio crescimento demográfico.

Acima de tudo, a guerra feudal não objetivava a morte do adversário, apenas sua captura. Como uma das obrigações vassálicas era pagar o resgate do senhor aprisionado, c como na pirâmide hierárquica feudal quase todo nobre, além de ser vassalo de outros, tinha seus próprios vassalos, capturar um inimigo na guerra era obter um rendimento proporcional à importância do prisioneiro. Por isso, os cronistas lamentavam as batalhas mais violentas, nas quais a morte de alguns cavalei- ros representava a perda de polpudos resgates. Além disso, o instrumental bélico era mais defensivo que destruidor. É significativo que as bestas — dotadas de molas metálicas e portanto de poderoso arremesso, que penetrava uma armadura a até 270 metros de distância — tenham sido proibidas no II Concilio de Latrão, em 1139, por serem consideradas mortíferas.

Mas a remoção de fatores obstaculizadores do crescimento populacional não explica tudo. É preciso considerar a ocorrência de fatores facilitadores daquele fenômeno. O primeiro deles era a abundância de recursos naturais. Já observamos que com o recuo demográfico dos

séculos II-VIII extensas áreas anteriormente cultivadas foram abandonadas, permitindo a recuperação das florestas, que tinham sido fortemente exploradas pelos antigos. Dessa forma, no início da Idade Média Central o espaço cultivado era muito restrito, predominando a natureza virgem, da qual homens tiravam importantes complementos à alimentação. A abundância de terras cultiváveis fica atestada pelos arroteamentos empreendidos durante a Idade Média Central, possíveis graças à existência de largos espaços a serem conquistados à natureza. Diante disso, é possível pensar que o aumento da produtividade agrícola nos séculos XI-XII deveu-se, pelo menos em parte, ao fato de se cultivarem terras virgens — ou praticamente isso, por terem ficado inexploradas por longo tempo — e portanto de maior fertilidade.

Outro fator que contribuiu para a expansão demográfica medieval foi a suavização do clima. Ainda que insuficientemente explicado, o fenômeno parece indiscutível e de alcance mundial, tendo ocorrido então, por exemplo, um recuo do gelo nos mares e montanhas do norte e abundância de água nas regiões saarianas, que depois o deserto reconquistaria. Na Europa ocidental o clima tornou-se mais seco e temperado do que atualmente, sobretudo entre 750 e 1215. A viticultura pôde então expandir-se em regiões anteriormente impróprias, como a Inglaterra. A paisagem de alguns locais foi alterada e humanizada, como a Groenlândia, que fazia jus a seu nome (literalmente, “terra verde”) e apenas no século XIII, em virtude de novas mudanças climáticas, passou a ter icebergs em sua direção, tornando-se inóspita.

O período mais quente e seco não apenas transformou determinadas áreas em cultiváveis e habitáveis como contribuiu para dificultar a difusão da peste. De fato, na forma bubônica seu vetor é a pulga, que vive sob uma temperatura de 15 a 20 graus e sob uma umidade relativa do ar de 90% a 95%. Na forma pneumônica, a peste é transmitida pelas gotículas de saliva do homem infectado, as quais em regiões frias e úmidas ficam em suspensão na atmosfera e penetram no organismo pela respiração. Ou seja, a pluviometria condiciona o ritmo sazonal da peste, com a umidade do ar estimulando a epidemia se ela estiver presente na região.

Daí nas zonas atlânticas, devido à umidade, a peste ter-se instalado e persistido por anos sob uma forma atenuada antes de eclodir em vagas violentas.

Por último, ajuda a explicar o crescimento populacional dos séculos X-XIII o surgimento ou difusão de uma série de inovações nas técnicas agrícolas. Na verdade, discute-se qual teria sido o elemento a desencadear o processo: o crescimento populacional, pressionando por maior produção, levou ao progresso técnico, ou, ao contrário, foi o progresso técnico que possibilitou a expansão demográfica? A primeira tese foi defendida, dentre outros, por David Herlihy (22: 1958, 23) e a segunda, por estudiosos como Georges Duby (43:1, 211). De qualquer forma, dentre os aperfeiçoamentos técnicos da época, três exerceram uma ação direta sobre a elevação da produtividade agrícola: a nova atrelagem dos animais, a charrua pesada e o sistema trienal.

O primeiro deles teve efeitos importantes, pois na Antigüidade a força motriz do cavalo era fraca, nunca sendo usada nos trabalhos agrícolas, porque uma parelha deslocava menos de 500 quilos, enquanto a partir da Idade Média Central passou a deslocar até mais de 5 toneladas (57: 63). A nova atrelagem substituiu as correias colocadas no pescoço do animal, que pressionavam a jugular e a traquéia, por uma espécie de coleira rígida que não estrangulava. Assim, o cavalo pôde desde então ser utilizado nos serviços agrícolas, o que representou um grande ganho de energia: boi e cavalo têm a mesma força de tração, porém este último desloca-se uma vez e meia mais rápido e pode trabalhar uma ou duas horas a mais por dia (96: 62).

Viabilizou-se dessa forma a utilização da charrua, que talvez tenha sido introduzida na Europa ocidental pelos germanos na Primeira Idade Média, mas que era muito pesada e requeria força motriz animal. Assim, durante os primeiros sete ou oito séculos medievais continuou-se a empregar o velho arado romano, eficiente apenas nos solos ligeiros das regiões mediterrâneas. A expansão agrícola para regiões de solos mais profundos e duros tornou a charrua indispensável, pois ela não se limita a arranhar a camada superior do solo, revolvendo a terra e trazendo para cima os

nutrientes acumulados nas camadas inferiores. Além disso, ela economiza mão-de-obra ao dispensar a tarefa de cavar o solo com enxada antes de semeá-lo.

De especial importância, no entanto, foi o sistema trienal, possivelmente a mais influente inovação agrícola da época. De um lado, porque a divisão da terra cultivável em três partes aumentou a extensão da área produtiva, deixando apenas um terço em pousio*, contra metade no sistema bienal dos séculos anteriores. De outro lado, porque o sistema trienal alterou os próprios hábitos alimentares: uma parte da terra era semeada com cereais de inverno (trigo e centeio) e outra com cereais de primavera (cevada e aveia), esta principalmente para cavalos, daí a estreita relação entre sistema trienal e uso daquele animal. A sementeira de primavera, além dos cereais, compreendia quase sempre leguminosas (ervilhas, lentilhas, favas), que nitrogenando o solo mantêm sua fertilidade, além de fornecer proteínas para a alimentação humana.

Este é um ponto fundamental. As inovações tecnológicas não apenas produziram uma maior quantidade de alimentos como, sobretudo, uma melhor qualidade. Até aquela época a dieta era mal balanceada, porque, baseada em cereais, fornecia muitas calorias e hidrato de carbono e poucas proteínas e vitaminas. A alteração então ocorrida na dieta talvez explique a mudança na proporção entre população masculina e feminina, favorável à primeira na Alta Idade Média e à segunda posteriormente.

Como mostrou o estudo de Bullough e Campbell (22: 1980, 317- 325), até o século X ou XI a mulher ingeria pequena quantidade de ferro, que seu organismo necessita em proporção maior do que o do homem, devido à menstruação, à gravidez e à lactação. Portanto, a anemia feminina era generalizada na Alta Idade Média, daí a maior propensão das mulheres a certas doenças. Com a introdução de leguminosas na dieta e uma presença mais assídua de carne, peixe, ovos e queijo, a mortalidade feminina diminuiu. Tal fato teve ampla repercussão, contribuindo até mesmo para a valorização social da mulher.