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Tais eram os personagens no palco político medieval. Mas como contracenaram nos seis séculos da Idade Média Central e da Baixa Idade Média? Sabemos que os poderes universalistas (Igreja e Império) estavam em choque constante, porque pela própria natureza do que reivindicavam — a herança do Império Romano — somente um deles poderia ter sucesso. Assim, ambos fracassaram, permitindo a emergência de poderes particularistas (feudos* e comunas*) e nacionalistas (monarquias). Mais do que isso, quando ficou patente, em fins da Idade Média, que o futuro pertencia a estas últimas, duas nacionalidades já tinham perdido sua opor- tunidade histórica de organizar Estados centralizados. A luta entre os universalistas debilitara as bases territoriais e nacionais da Itália (centro nevrálgico da Igreja) e da Alemanha (base do Sacro Império).

Dessa forma, por muito tempo elas permaneceram apenas realidades geográficas, não políticas. Perdidas as chances de obter colônias no Novo Mundo dos séculos XVI-XVII, atrasadas na industrialização dos séculos XVIII-XIX, secundarizadas na partilha da África e da Ásia do século XIX, aquelas nacionalidades sentiam cada vez mais a necessidade de se corporificar politicamente. Tal ocorreu em 1870-1871, mas como o atraso relativo já existia aqueles novos Estados precisaram adotar uma política agressiva, que esteve nas raízes das duas Grandes Guerras do século XX. O fracasso do nacionalismo alemão e italiano na Idade Média foi fator essencial para explicar sua virulência nas últimas décadas do século XIX e primeiras do XX.

Modernidade como Estados nacionais unificados, mas que em virtude de trajetórias medievais diferentes teriam destinos políticos diferentes. Como na Inglaterra o processo de feudalização e a Magna Carta atribuíram ao rei o papel de suserano, ele nunca sofreu forte oposição (a não ser nos poucos momentos em que tentou ser soberano) e a monarquia pôde manter-se até hoje. Na França, por sua vez, como na Idade Média prevaleceu o papel de soberano, o monarca pôde tornar-se absolutista na Idade Moderna, despertando contra ele as revoluções de 1789, 1830 e 1848, quando então a monarquia desapareceu definitivamente.

Mas a formação das monarquias nacionais não se deu sem oposição dos poderes universalistas. O Império procurou, por exemplo, contestar a monarquia francesa aliando-se à inglesa, mas foi vencido em Bouvines em 1214 e não pôde impedir o crescente fortalecimento dos Capetíngios. Contra as pretensões imperiais, os juristas franceses desenvolveram nas décadas seguintes o princípio — logo adotado por outras monarquias — de “o rei é imperador no seu reino”. A Igreja, alegando ex ratione peccati (“por razões de pecado”), expressão ampla que lhe deixava grande margem de manobra, intervinha com freqüência nos assuntos internos de vários reinos, lançando excomunhão* sobre o monarca, interdito* sobre todo o país, cobrando o dízimo e outras taxas. Como representante da autoridade divina na Terra, o papa Inocêncio III chegou mesmo a receber Portugal, Sicília e Inglaterra como feudos.

Os poderes particularistas não podiam, é claro, escapar ao jogo político medieval. De um lado ocorriam conflitos, surdos e abertos, dentro dos feudos e entre eles. Dessa situação é que surgiu o outro tipo de poder particularista, de espírito diverso, a comuna. De outro lado, como já dissemos, as monarquias estimulavam as rivalidades entre feudos e comunas na tentativa de submeter todos os particularismos, precondição para completar a unificação e a centralização nacionais. Também os universalistas procuraram dominar os particularismos, impedindo que eles se fundissem em Estados nacionais. O Império tentou controlar as ricas e importantes comunas italianas, porém foi derrotado em Legnano em 1176. A Igreja buscou comandar a nobreza feudal por meio das Cruzadas, mas perdeu o

controle da situação e saiu desgastada. Tentou impor seus valores nas comunas e apenas acelerou o surgimento de heresias*.

Ao contrário do nacionalismo, o particularismo feudal não era irredutível ao universalismo eclesiástico, já que o cristianismo funcionava como elemento cimentador daquela infinidade de micro- Estados. O que, contudo, não encobria a contradição básica da sociedade feudo-clerical*, particularista no seu primeiro elemento, universalista no segundo. O particularismo comunal, por sua vez, foi mais sólido no seio dos universalismos, pois estes pretendiam englobá-lo mas não anulá-lo, como faziam os nacionalismos. Em razão disso, o movimento comunal foi mais desenvolvido na Itália e na Alemanha, o que também contribuiu para abortar os Estados nacionais nessas regiões.

Apesar das transformações políticas dos séculos XI-XIII, na Baixa Idade Média os vínculos feudais continuavam a tensionar as relações entre vários Estados: o rei da Inglaterra era vassalo francês, o reino português surgira de uma secessão de Castela, a Escócia estava ligada à Inglaterra, e Flandres à França. Todas essas questões pendentes, ou mal resolvidas, vieram à tona com o grande conflito nacionalista da Idade Média, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Mas esta também envolveu questões feudais internas, pois cada vez mais se restringia o papel social da nobreza, que era cumprido através de guerras locais, proibidas pelas monarquias, daí a necessidade de guerras mais amplas, entre os Estados. Na perspectiva das . monarquias, guerras nacionais significariam, entre outras coisas, a submissão e o controle definitivos da nobreza feudal. Na perspectiva desta, as guerras monárquicas poderiam ser o caminho para restabelecer seu poder e controlar o próprio Estado. Deste duplo ponto de vista, a Guerra dos Cem Anos foi também o grande conflito feudal da Idade Média.

Bibliografia: 38, 48, 55, 58, 60, 68, 71, 85, 89, 95.

Bibliografia complementar; M. BLOCH, Os reis taumaturgos, São Paulo, Cia. das Letras, 1993; E. H, KANTOROWICZ, Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política

medieval, São Paulo, Cia. das Letras, 1998; M. PACAUT, Les structures politiques de l'Occident médiéval: Paris, Armand Colin, 1969; Ch, PETIT-DUTAILLIS, La monarchie féodale en France et en Angleterre, Paris, Albin Michel, 1933; J. A. C. R, SOUZA (org.), O reino e o sacerdócio, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1995.

Capítulo 4