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Ética – breves recortes evolutivos dos ciclos (des)construtores do valor

4.6 Ética, reificação humana e trabalho:

4.6.2 Ética – breves recortes evolutivos dos ciclos (des)construtores do valor

A moral vinculada à sociedade escravista, concebida por uma ideologia dominante, considerava “[...] o escravo como ‘instrumento falante’, cuja vida era igual ao valor de uma coisa.” (TITARENKO, 1982, p. 59). “O ‘bem’ se torna equívoco: o ‘bem’ do escravismo dos faraós se torna ‘sistema dominador’ para seus escravos.” (DUSSEL, 2007a, p. 384). Trata-se de concepção moral que persiste e sobrevive aos tempos e torna-se mais vigorosa quando a sociedade supera as trevas medievais e, num extrato do processo evolutivo civilizacional, do Renascimento ao Iluminismo, irrompe nos séculos das luzes a possibilidade da escravidão

94 Dados apresentados (dia 28/04/2010, em Belo Horizonte) durante palestra proferida por Celso Salim, pesquisador da

FUNDACENTRO-MG, em atividade alusiva ao “Dia Mundial em Memória das Vítimas de Acidentes de Trabalho”.

Tabela 1 – Número de acidentes, doenças e óbitos relacionados ao trabalho no Brasil, de 2000 a 2008.

formal extinguir-se, e isso de alguma forma irá ocorrer, instituindo-se, a partir da Revolução

Industrial, uma nova forma de exploração do homem pelo homem.

A escravidão se transforma. Não se admitem mais estados escravistas. As leis reverberam o abolicionismo. Há marcante deflexão da classe que vive do trabalho. O estado de escravidão ganha traços miscigenados e as pessoas, independentemente de raça ou etnia, que vivem da sua própria força de trabalho, ajustam-se à nova (velha) concepção moral; não mais feudal ou escravista, mas burguesa; não mais escravos, mas proletários ou operários.

Ao oferecer ao homem condições libertárias a suas maiores e melhores possibilidades, criações – intelectuais ou tecnológicas – que pela lógica propiciariam uma vida melhor, com

bem-estar em profundidade e em amplitude social e coletiva, também trouxe as primeiras

contradições àquilo que fora denominado de questão social95, no século XIX, como

designativo ao fenômeno de pobreza (humana) crescente entre os membros das classes operárias assolados a partir da Revolução Industrial com o advento da sujeição social (coletiva) ao capitalismo de um lado, enquanto, de outro, a acumulação da riqueza e da propriedade se manteve privada, monopolizada por outra parte da sociedade, a burguesia.

Estar instrumento de produção e do capital e não mais força viva de trabalho esconde a verdadeira face daquilo que irá se tornar o trabalhador daí em diante.

Transcender o espaço da produção, inclusive não mais do trabalho, sustenta possibilidades desprezíveis à lógica defendida para a manutenção do atual sistema. Adequar condições que incluem a racionalidade e a humanidade ao trabalhador, como lazer, educação, cultura e esporte, por exemplo, que podem ser a possibilidade de emancipação da condição humana, coloca sentido e resistência à precariedade das situações e espaços de degradação consentidos até então. É aí que procuramos identificar em qual dimensão e como as necessidades humanas, suas condições de subsistência, interferem na sujeição às diversas formas de uso da força de trabalho viva.

Como “[...] consequências imediatas da produção mecanizada sobre o trabalhador.” (MARX, 2002, p. 451) há a sujeição do homem e de sua família às imposições da nova forma de “[...] apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares. O trabalho das mulheres e das crianças.” (MARX, 2002, p. 451). O que caracteriza a (des)constituição das relações familiares na dimensão em que os hábitos e costumes de até então passam a obedecer à lógica determinada pelo capital. “Assim, de poderoso meio de substituir trabalho e

95 “[…] a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a

lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação.” (TELLES, 1996, p. 85).

trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de idade, sob o domínio direto do capital.” (MARX, 2002, p. 451). Para a classe trabalhadora, as implicações dessa nova ordem alteram o vínculo dos valores sociais a partir da família. A força

de trabalho passa a ser consumida pelas obrigações deletérias do capitalismo que abre mão de

qualquer outro valor que não seja o lucro. Dessa forma, “[...] o trabalho obrigatório, para o capital, tomou o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre realizado, em casa, para a própria família, dentro dos limites estabelecidos pelos costumes.” (MARX, 2002, p. 451).

A ética, nas relações sob a égide do capitalismo, perde os referentes que a consolidam enquanto virtude a ser preservada na sociedade. Só passa a ser observada nas ações e no comportamento do homem trabalhador, apenas se se compromete com a produção e o lucro, do contrário (quando não é observada), é condizente com o ideal do capitalismo e a racionalidade “aparente”, sob essas circunstâncias, prescinde do valor humano, dos hábitos, dos costumes e da ética.

Será na dissociação entre mente e mãos96, no exercício do trabalho, que percebemos o quanto pode haver o retrocesso evolutivo da espécie humana a dimensões específicas da matéria, coexistindo a criatura humana artificial (reificada) junto às estruturas artificiais de um sistema construído e constituído para a produção, obedecendo às leis da física (mecânica,

termodinâmica, robótica…) em sua concepção. Concepção na qual o homem trabalhador usa,

nesse processo, praticamente pela última vez, sua capacidade racional, que é dirimida pelas leis exclusivas do capital. Daí em diante, terá que se situar ou se dispor da mesma forma que sua criação (artificial), seus produtos ou coisas. A criatura humana artificial disposta no ambiente em que é tratado como se fosse um compósito constituído de matérias dotadas de resiliência, mas contida em (e de) sua própria fragilidade (humana) e a (fragilidade) das demais espécies vivas, levando-nos a observar o homem que ainda vive da força do trabalho, destituindo-se, primeiro, da racionalidade que o distingue das demais espécies vivas; segundo, da irracionalidade que o identifica às reações e aos impulsos dos demais animais irracionais; e, por fim, também, de sua forma biológica que o caracteriza entre as demais espécies vivas,

96 Nesse sentido, fica mais fácil para identificar essa ruptura, bem como suas consequências aos trabalhadores, que

destaquemos os dados do Anuário Estatístico da Previdência Social, porém estratificando-os (de modo elementar) e tendo como referência o período de 2000 até 2008, no qual se registrou só nos primeiros anos da primeira década do século XXI, 4.381.065 acidentes de trabalho no Brasil. Número de registro que supera a média anual de 486 mil ocorrências; e, mensalmente, superior a 40 mil acidentes de trabalho, com mais de 1350 ocorrências por dia ou 56 por hora. Das 25.494 mortes registradas, devido aos acidentes de trabalho, foram em média 236 mortes por mês e 7,86 por dia. Dos dados relativos a 2008, foram 747.663 registros em decorrência de acidentes ou doenças ocupacionais, sendo nestes casos os membros superiores os mais afetados, ou seja, com 188.842 ocorrências. (BRASIL, 2010).

transformando-se em coisa. Razão pela qual já não mais se preserva, pois que reificado – perde assim sua própria percepção da vida e, consequentemente, a percepção das demais espécies e de seus semelhantes.

A dissociação entre mente e mãos pode ser comprovada quando o homem trabalhador se mistura ou se liga ao processo de produção97 e não mais se percebe ou se preserva enquanto força viva de trabalho, neutralizando, ou até mesmo eliminando, sua capacidade humana

(racional ou irracional). Sennett (2009, p. 56) nos diz que “[...] quando a cabeça e a mão estão separadas, é a cabeça que sofre.” Podemos deduzir dessa citação e da ideia que a fundamenta que se trata da realidade na qual os processos desencadeadores da alienação humana se originam98. Ao concordarmos com Sennett, faz-se necessária uma reflexão acerca da alienação desencadeada na ruptura que sugere. Teremos que admitir uma mente já comprometida nos

sentidos da própria alienação. Se admitirmos, logicamente, passamos a concordar que este

processo neutraliza a cabeça (a mente). As mãos, ou melhor, as ações que ela possa desenvolver não terão a razão ao direcioná-las. Não há a racionalidade objetivando as escolhas que possam permitir aproximação ou distanciamento das ações, dos sistemas operacionais ou ambientes propiciadores do risco ou da insalubridade. Portanto, invertendo a lógica de Sennett, sem, entretanto, discordar de sua ideia, “quando a cabeça e a mão estão separadas”, pode-se até deduzir que, a priori, a mente já foi afetada, com isso é o corpo (a mão) que se expõe, deteriora e sofre, mas sem a sensibilidade estimulada para rejeitar ou reagir a essa situação.

97 Destacamos que os dados dos Relatórios Técnicos 1 e 3 das Indústrias de Calçados e Confecções, relativos à

pesquisa sobre acidentes do trabalho em micro e pequenas empresas industriais (MPE) nos ramos calçadista e de confecções, também comprovam tal dissociação. Em especial, pelo fato de que, exatamente os membros superiores, mais precisamente as mãos, são dispostos à produção como se fossem apêndices de máquinas ou equipamentos, distando-se de suas condições e fragilidades orgânicas e biológicas como se tivessem propriedades comuns às

matérias dotadas de resiliência, ou seja: “Os registros de acidentes mais diagnosticados, conforme CID – 10/Grupos, foram ‘ferimento do punho e da mão’ e ‘fratura ao nível do punho e da mão’. Esses dois diagnósticos corresponderam a 46,3% dos acidentes nas MPE. Em ordem decrescente, ‘traumatismo superficial do punho e da mão’, ‘queimadura e corrosão do punho e da mão’, ‘lesão por esmagamento do punho e da mão’, ‘outros

traumatismos e os não especificados do punho e da mão’ e ‘amputação traumática da mão’, respectivamente com participações 7,1%, 5,7%, 4,2%, 3,8% e 3,1%, totalizaram 23,9%, ou seja, uma proporção inferior ao diagnóstico

mais frequente, ou seja, o ‘ferimento do punho e da mão’, que teve uma participação sobre o total de 30,2% (TAB.

7). Enfim, apenas os traumatismos envolvendo a mão como parte específica do corpo atingida se fizeram presentes em 70,2% dos acidentes de trabalho levantados junto às indústrias de calçados nas áreas selecionadas”. Já no caso

das indústrias de confecção, “[...] a parte do corpo mais atingida em acidentes típicos foi membro superior com

70,7% das ocorrências, dos quais 74,5% atingiram o dedo da mão.” (RELATÓRIO TÉCNICO 1 - Indústria de

Calçados, 2007; RELATÓRIO TÉCNICO 3 - Indústria de Confecções, 2007). (FUNDACENTRO; SESI;

PRODAT, 2007a, 2007b).

98 Ao impor processos de capacitação ao homem trabalhador como (meros) aferidores do trabalhador para que

permaneçam ajustados ou calibrados como se fossem equipamentos, máquinas, instrumentos ou ferramentas para a

produção, anulam a racionalidade e a formação humana. “É este o ponto crítico no problema da capacitação: a

4.6.3 Da (des)consciência (alienação) à coisa (reificação) – a neutralidade do mal à classe