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Família, escola e trabalho como ambientes fundantes da ética:

Em relação à percepção da ética nos diferentes ambientes que estruturam a sociedade, destacamos, ainda, no Gráfico 3, codificando as categorias de “Inexistente” a “Muito Percebida”, como de 0 a 3,

também foi possível calcular a média ponderada, com a qual ficou mais nítida a visão da

ética, sobretudo ao observar a

diferença entre os ambientes familiar e político.

A percepção da ética, ao longo da história, tem sido influenciada por diversos

aspectos, mas são nos ambientes (familiar, escolar e de trabalho) onde a presença humana se denota, por tendência quase natural, como elemento constitutivo integral (no tempo de duração e de exposição no ambiente) para que as relações existentes se caracterizem como fim no qual a humanidade se identifica dando sentido às mudanças e transformações da natureza em que o homem se percebe e dá valor para si e no outro.

Todavia, antes de avançarmos para os valores com os quais temos com a subjetividade certo adensamento à reflexão ética, é importante não ser esquecido o papel exercido pela

Fonte: elaborado por José Reginaldo Inácio, 2012.

Gráfico 3 – Média das notas da percepção ética em cada ambiente.

família, desde sua origem, ao nos referirmos à preservação (em si) enquanto subsistência. Temos que atentar, primeiramente, no caso da família que:

Não há apenas neste caso a necessidade de exercitar os instintos até o pleno desenvolvimento, como na instrução animal para a coleta do alimento e os movimentos específicos, mas há também a necessidade de criar um certo número de hábitos culturais tão indispensáveis ao homem quanto os instintos para os animais. O homem tem de ensinar a seus filhos habilidades manuais e o conhecimento de artes e ofícios, a linguagem e as tradições da cultura moral, as maneiras e costumes que constituem a organização social.

Em tudo isto há a necessidade de uma especial cooperação entre as duas gerações, a mais velha que transmite a tradição e a mais moça que a recebe. Vemos aqui, ainda uma vez, a família formando a verdadeira oficina do desenvolvimento cultural, pois a continuidade da tradição, especialmente nos mais baixos níveis de desenvolvimento, é a condição mais vital da cultura humana e esta continuidade depende da organização da família. É importante insistir no fato de que, com relação à família humana, esta função, a manutenção da continuidade da tradição, é tão importante quanto a propagação da raça. Pois o homem não podia sobreviver se fosse privado da cultura, nem esta sobreviveria sem a raça humana para transportá-la (MALINOWSKI, 2000, p. 183-184).

Já, com Aristóteles (2009, p. 15), podemos destacar que: “[...] a sociedade constituída para prover as necessidades é a família, formada daqueles que Carondas38 chama homos pyens

(tirando o pão da mesma arca), e que Epimenides, de Creta, denomina homocapiens (comendo na mesma manjedoura).” Citação que, ao ser anunciada, nos induz a demonstrar que as necessidades vitais às espécies vivas, a alimentação (nutrição) figura-se como fonte originária e principal a sobrevivência (do nascimento a morte), em especial a dos animais, sobretudo os racionais e se origina e se sustenta prioritariamente no ambiente familiar. Trata- se de condição, primeira, vista por Aristóteles como vital à plenitude da existência humana; uma das capacidades das espécies vivas, que no caso da humana, reflete diretamente em sua

percepção, podendo, assim, comprometer as escolhas e deliberações em que o sentido (a

razão) orienta às demais necessidades e aos valores humanos.

O valor da família na história da civilização, “a família, berço da cultura nascente”, no sentido em que Malinowski (2000, p. 157) busca direcionar, corrobora o pensamento aristotélico em curso, uma vez que “[...] a família deve ser considerada a célula da sociedade, o ponto de partida de toda organização humana.” No entanto, assim como Marx e Engels (1988, p. 92), é relevante perguntarmos: “Sobre que fundamento repousa a família atual, a família burguesa?” Para, também da mesma forma, respondermos: “No capital, no ganho

38 “Os sicilianos, entre os quais nascera Carondas, chamavam sipye à arca em que se guarda pão, e os cretenses

individual.” (MARX; ENGELS, 1988, p. 92). Devemos atentar para o fato de que se trata, nesse caso, da concepção burguesa de família e se encontra totalmente imbrincada na atualidade, levando-nos a afirmar com Marx e Engels que: “A família, na sua plenitude, só existe para a burguesia, mas encontra seu complemento39 na supressão forçada da família para o proletário e na prostituição pública.” (MARX; ENGELS, 1988, p. 92).

Iasi (2011, p. 15), em sua reflexão acerca de “consciência” e “emancipação” nos adverte, de que:

Se a consciência é a interiorização das relações vividas pelos indivíduos, devemos buscar as primeiras relações que alguém vive ao ser inserido numa sociedade. A primeira instituição que coloca o indivíduo diante de relações sociais é a família. Ao nascer, o novo ser está dependente de outros seres humanos, no caso do estágio cultural de nossa sociedade: seus pais biológicos.

Quando falamos da família como determinação das relações primeiras a serem vivenciadas pelo indivíduo em formação, não podemos nos esquecer de que essa mesma família é por sua vez determinada pelo estágio histórico em que se encontra, sendo, portanto, uma subjetividade já educada.

Podemos dar sequência com Iasi e inteirar a relação estabelecida para além do ambiente familiar. Nela fundamenta aspectos relevantes para a formação da personalidade a partir da interação necessária que o homem tem com os demais ambientes, distinguindo-o das demais espécies como animal racional. Dotação que pode ser adiante partilhada noutros sentidos também por outros pensadores. Porém, no sentido até aqui posto, a intencionalidade do que propomos fica mais bem caracterizada, ou seja:

As relações familiares, por maior importância que tenham na formação da personalidade, não têm o monopólio das relações humanas. As relações lançadas a partir da família são complementadas, reforçadas e mesmo revertidas pela inserção nas demais relações sociais, pelas quais o indivíduo passa no decorrer de sua vida: na escola, no trabalho, na militância, etc. Parece-nos que na escola, por exemplo, ao nos inserirmos em relações preestabelecidas, não conseguimos ter a crítica de que é apenas uma forma

de escola, mas a vivemos como “a escola”. Passamos a acreditar ser essa a forma “natural” e acabamos por nos submeter. Na escola, as regras são

determinadas por outros que não nós, outros que têm o poder de determinar o que pode e o que não pode ser feito e nosso desejo submete-se diante da

39 Ou, por que não, o seu suprimento, uma vez que a sustentação do Estado burguês tem sistematicamente se pautado

no aniquilamento de qualquer organização proletária. Sendo a família o ponto originário dessa organização, onde são sentido e pressentido os movimentos que afetam e mortificam as classes trabalhadoras, desestruturá-la, dividi-la em fragmentos ainda mais frágeis (em que não se é possível ver, tocar, interagir), dos quais potencializam a

superexploração do trabalhador, findando por ser consumida (no tempo e no espaço, isso quando ainda possui ou

consegue sub-existir sob condições de miserabilidade e morbidade) as suas capacidades, valores e sentimentos que são a expressão da condição e das virtudes que consagram os seres humanos como animais dotados de racionalidade.

sobrevivência imediata. As normas internas interiorizam-se: a disciplina convertes-nos em cidadãos disciplinados.

O mesmo ocorre no trabalho. Aqui, de modo ainda mais claro, as relações já se encontravam predeterminadas, outros determinam o que se pode e o que não se pode fazer, o capital determina o como, o quando e o que fazer.

[…]

Assim, formada essa primeira manifestação da consciência, o indivíduo passa a compreender o mundo a partir de seu vínculo imediato e particularizado, generalizando-o. (IASI, 2011, p. 19-20).

Com isso, podemos dizer tratar-se de um processo em que as possibilidades reais de reprodução social reflete nos valores (ético ou moral), ou pior, funciona como uma espécie de aferidor para a aceitação ou não das virtudes ou vícios40 que pode corromper ainda mais as relações sociais, afinal: “Tomando a parte pelo todo, a consciência expressa-se como alienação.” (IASI, 2011, p. 20).

A essa altura, é relevante atermo-nos no que foi dito por Marx e Engels (1988, p. 79):

“A burguesia rasgou o véu do sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-

as a simples relações monetárias.” Portanto, se tivermos como atual essa citação, cabe-nos concordar, nesse sentido, que se a família é a célula primeira da sociedade, a interação de seus membros nos demais ambientes contém em si a consumação de uma relação que pode ir para além da alienação, sendo (dessa forma) consumo e coisas objetos primordiais das relações; as virtudes e os valores do gênero humano se reificam.

É fundamental também considerarmos que a virtude, enquanto valor ético ou moral, nesses ambientes (familiar, escolar e de trabalho) pode ser mais bem percebida que em outros, pois são espaços da relação humana onde a proximidade para a ação e o comportamento têm contornos de maior intimidade e a reciprocidade se distingue como referência relacional importante, além de extremamente necessária. Ou ela é recorrente, consequentemente, relação que se repete, ou melhor, hábitos e costumes aceitos como comuns entre iguais; com isso, podemos dizer que é relação cujas contradições são quase nulas pela similitude das atitudes e condutas, com significados “considerados importantes” para a reprodução do status quo, da garantia do equilíbrio e da “paz social” vigente em conformidade com a ordem estabelecida. Ou, então, significa necessariamente mudança.

Não sem sentido, teremos que considerar certa antítese social ao tratar dessa mudança, porque ela está comprometida com as exigências do modo de produção capitalista

40 Barroco (2008b, p. 35) nos adverte que: “Todas as atividades humanas contêm uma relação de valor; são orientadas,

às vezes, por mais de uma, mas, dada a centralidade da produção material efetuada pela práxis produtiva, o valor econômico tende a influenciar todas as esferas. Na sociedade capitalista, os valores éticos, estéticos, tendem a se expressar como valores de posse, de consumo, reproduzindo sentimentos, comportamentos e representações individualistas, negadoras da alteridade e da sociabilidade livre.”.

em todos os estratos sociais e sofre forte distorção já bastante anunciada por Marx e Engels (1998, p. 79), e, nessa análise, mais uma vez se considerarmos que no capitalismo:

Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e ideias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de terem um esqueleto que as sustente. Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.

Se a referência relacional citada for necessariamente mudança, nesse caso, inevitavelmente, uma aporia se revela. A percepção de condutas diferentes entre iguais só é bem recebida se seu valor não representar ameaça ao ambiente. Ameaças que podem significar mudanças decisivas (de hábitos, costumes, princípios), por vezes, necessárias ou importantes, das quais, pelo significado do que representam, se efetivadas, contestam valores (éticos ou moral) de um grupo (desde o familiar), comunidade, ou coletividade social; portanto, impõem comportamentos distintos, novos. Fator decisivo, às vezes, para sua rejeição. Pode ser que as mudanças não sejam aceitas e o comportamento ou a atitude de quem as incorpora sejam questionáveis a ponto de reprovação ou discriminação, fazendo com que o valor ou o bem manifesto por uma pessoa, ou grupo de pessoas, isoladamente, seja algo censurável ou desprezível.

A distinção de valores e de identidades a quem os percebe estando de fora desses ambientes (social/lazer e político) faz parte do senso comum de censura a comportamentos que, normalmente, são tidos como desvirtuados e censuráveis, dos quais, em se tratando de ambientes onde a externalidade é concreta, a subjetividade singular do outro, não daquele próximo ou íntimo do convívio cotidiano ou do espaço comum, junto à família, à escola durante o período letivo ou ao trabalho em sua jornada diária, não são recriminados, tampouco considerados como desvalor, já que também podem ser cometidos; mas, nesse caso, em espaço onde a proximidade aliada à reciprocidade não deixa deslocar o cometimento para fora, por conseguinte não colocando ninguém em circunstâncias indignas; por vezes, o acontecido (com ou sem julgamento de valor) fica entre quatro paredes.

Na família, pressupõe-se, a identidade, o respeito, a cumplicidade para com os valores tidos como princípios norteados pela forma de tradição são preservados entre seus entes. A formação ou educação é comum e sustenta esses valores que, em alguns casos, até mesmo são considerados honraria legada pela hereditariedade, fazendo que as virtudes que os consagram sejam referência para o ideal ético. Nesse sentido, a prática ou ação, independentemente do

comportamento ou do meio, quando vista sob essa ótica (dos valores morais), sofre censura e é condenável se cometida por quem não tem cumplicidade, mesmo que as virtudes sejam a excelência para o acometimento do que foi observado; afinal, o observador quase sempre está do lado de fora.

Seguindo nossa dedução, podemos afirmar que os ambientes da escola e do trabalho se aproximam dos da família. Porque é nesses ambientes, juntamente com a família que podemos perceber os objetos de estudo da ética sendo constituídos em conformidade com o que diz Sánchez Vázquez (1993, p. 12): “A ética estuda uma forma de comportamento humano que os homens julgam valiosos e, além disto, obrigatório e inescapável.” No caso do primeiro, deve-se diretamente ao papel extensivo do que escola representa e se ocupa na formação ou na educação ao longo história. A família aporta seus valores, quase sempre de forma natural, porém latente, a seus membros quando encaminhados para a escola, ou enquanto seus frequentadores, a fim de que (esses valores) sejam fortalecidos e adquiram outros com os quais possam melhorar suas condições de vida e de sobrevivência socialmente. Nesse momento, é oportuno retornar à citação de Sánchez Vázquez e inteirá-la para dizer que,

“[...] nada disto altera minimamente a verdade de que a ética deve fornecer a compreensão

racional de um aspecto real, efetivo, do comportamento dos homens.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 1993, p. 12). No entanto, por conta da tendência social vigente e recorrente nas relações sociais, isso não se dá dessa maneira.

Em alguns casos, isso se dá tacitamente, em outros, mais explicitamente quando as pessoas (alunos ou educandos) passam a defender como seus valores contrários àqueles que, até então, defendiam enquanto princípios comuns em si e para si e entre seus próximos no círculo de sua convivência (família e trabalho, por exemplo). A aquisição do conhecimento, via de regra, é ato passivo. Seria como se, efetivamente, tivéssemos assumindo o que Iasi (2011) disse acerca dos valores e considerássemos como válido ao nos referirmos ao conhecimento. Ademais, o que é o conhecimento, senão o principal meio para a validação, condução, reprodução e manutenção dos valores em uma sociedade, seja em qual ambiente for? Todavia, sabemos que é no lar, na escola e no trabalho os locais em que sua realização se materializa e é direcionada para os demais espaços sociais. De modo objetivo, o fato é que:

Os valores são mediatizados por pessoas que servem de veículo de valores,

são modelos. Não se trata da identificação com “a sociedade”, “as relações

capitalistas” ou as ideias; são as relações de identidade com os outros seres humanos, seus modelos, que a pessoa em formação assume valores dos outros como sendo os seus. (IASI, 2011, p. 24).

A submissão ao agente que oferece ou detém o conhecimento, com raras exceções, é gesto ou ação voluntária. Ao deter o conhecimento, a capacidade de quem o adquire ou oferece é reconhecida quase que naturalmente, ou melhor, automaticamente. Nessa ação de busca do conhecimento, supõe-se ampliar o poder, simultaneamente, tanto daquele que não o possui quanto de quem o detém.

Com o conhecimento, há possibilidade de se revelar outras virtudes e fortalecer as existentes. O espaço do conhecimento promove a interação dos valores e das virtudes que são comuns entre diferentes, porém, pela tendência quase continuada na sociedade, anula a distinção de qualquer valor ou virtude que possa distinguir do até ali defendido ideologicamente pelo sistema (burguês/capitalista). Essa interação faz que aqueles atributos e comportamentos, que também são revelados e firmados como os valores do sistema, sejam automaticamente reforçados por quem tem o poder de direcionar melhor como vamos incorporar ou lidar com eles. Ressaltamos que, mesmo o desvalor, até então inaceitável – como de outra forma já dissemos, passa a ser (atributo comportamental) aceito como meio condutor ao bem comum, portanto, um valor a ser compreendido e assimilado como exercício vigoroso da virtude de quem o revela em sua ação.