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Banalização ou reificação de uma realidade?

4.6 Ética, reificação humana e trabalho:

4.6.1 Banalização ou reificação de uma realidade?

Quando a sociedade põe centenas de proletários numa situação tal que ficam obrigatoriamente expostos à morte prematura, antinatural, morte tão

violenta quanto a provocada por uma espada ou um projétil; (…) quando

ela os constrange, pela força da lei, a permanecer nessa situação até que a morte (sua consequência inevitável) sobrevenha; quando ela sabe, e está farta de saber, que os indivíduos haverão de sucumbir nessa situação e, apesar disso, a mantém, então o que ela comete é assassinato. Assassinato idêntico ao perpetrado por um indivíduo, apenas mais dissimulado e pérfido, um assassinato contra o qual ninguém pode defender-se, porque não parece um assassinato: o assassino é todo mundo e ninguém, a morte da vítima parece natural, o crime não se processa por ação, mas por omissão – entretanto não deixa de ser um assassinato. (ENGELS, 2010, p. 135-136, grifo nosso).

Situados esses breves esclarecimentos, passamos a refletir, inicialmente com Reich (2001, p. 295), ao referir-se à “[...] responsabilidade ao trabalho vitalmente necessário”,

para observar e, inclusive, concordar que “[...] a pulsação da sociedade humana cessaria de

uma vez por todas se parassem, por um só dia que fosse, as funções naturais do amor, do trabalho e do conhecimento.” Trata-se da situação que implica a desconstituição da natureza humana à coletividade. As capacidades e as virtudes que revelam os sentimentos e a

racionalidade não seriam encontradas no homem. A vida não seria realizada e sentida pela e para a humanidade, mas para a animalidade (irracional) e às demais espécies vivas, naturais ou artificiais.

Implica ainda, e inclusive, em desconstituir a razão e o sentimento enquanto imanentes à natureza humana. Sequer poderíamos ver realizada as possibilidades do desenvolvimento social como expressão da racionalidade, levando-nos a afirmar, assim como Lukács (2003, p. 27), que:

[…] quando as formas objetificadas – consolidada enquanto práxis na

objetificação da liberdade ou da escravidão na realização do trabalho – assumem tais funções na sociedade, [afirmando-se que são formas de expressão do pensamento e do sentimento humano, negá-las, mesmo latentemente], colocam a essência do homem em oposição ao seu ser, subjugam, deturpam e desfiguram a essência humana pelo seu ser social, surgem a relação objetivamente social da alienação e, como consequência necessária, todos os sinais subjetivos de alienação interna.

Sendo o que, em parte, discorreremos adiante para melhor corroborar à ideia central proposta nessa reflexão, a reificação humana89.

Reich, na reflexão enunciada, vincula a humanidade à vitalidade que assiste cada pessoa. Imaginar essa vitalidade como qualidade da vida é uma das possibilidades para incorporarmos o pulso e a mente do trabalhador como presença viva e racional no mundo do trabalho. Nesse sentido, o ambiente e a sanidade de quem transforma a natureza em produtos (necessários ou não à sobrevivência humana), contrastam com as possibilidades de que esse mesmo sujeito (o trabalhador) nessa transição transformadora permaneça com suas

89 Queremos trazer para essa reflexão duas outras referências (de Aristóteles e Kant) não muito situadas na

discussão da reificação, mas que, entretanto, ocupa uma dimensão na discussão ética e ganha sustentação argumentativa como elemento definidor para o cálculo de decisões com as quais as classes dominantes tomam e impõem à sociedade como uma reserva moral a garantir seus valores. Destacamos que, mesmo assim, e, sobretudo por isso, merecem ser consideradas como valores teóricos em nosso debate pelo que representam no conjunto da filosofia e pelas ilações distorcidas para sentidos que não coadunam com a ética, mas sim com sua negação. Vejamos primeiro Aristóteles (2009, p. 19-20): “O escravo é em si, e o que pode ser. Aquele que não se pertence mas pertence a outro, e, no entanto, é um homem, esse é escravo por natureza. Ora, se um homem pertence a outro, é uma coisa possuída, mesmo sendo homem. E uma coisa possuída é um instrumento de uso, separado do corpo ao qual pertence. Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem; são os homens nos quais o emprego da força física é o melhor que deles se obtém. Partindo dos nossos princípios, tais indivíduos são destinados, por natureza, à escravidão; porque, para eles, nada é mais fácil que obedecer.” Já com Kant (2003b, p. 66) temos que: “Uma pessoa é um sujeito cujas ações lhe podem ser imputadas. A personalidade moral não é, portanto, mais do que a liberdade de um ser racional submetido a leis morais (enquanto a personalidade psicológica é meramente a faculdade de estar consciente da própria identidade em distintas condições da própria existência). Disto resulta que uma pessoa não está sujeita a outras leis senão àquelas que atribui a si mesma (ou isoladamente ou, ao menos, juntamente com outros). Uma coisa é aquilo ao que nada pode ser imputado. Dá-se, portanto, o nome de coisa (res corporalis) a qualquer objeto do livre arbítrio que seja ele próprio carente de liberdade.”

condições essenciais de trabalho vivo90, com a integridade da sua força de trabalho91, fazendo com que situemos essa questão sob a penumbra funesta das estatísticas de acidentes e doenças profissionais92.

Há, o que se demonstra e confirma, uma acintosa banalização das ocorrências envolvendo acidentes e doenças do trabalho, levando-nos a considerar, conforme diz Bauman93 (1998, p. 199), que:

Assim banalizada, a morte torna-se demasiado habitual para ser notada e excessivamente habitual para despertar emoções intensas. […] E, enquanto a morte se desvanece e posteriormente se desaparece pela banalização, assim também o investimento emocional e volitivo no anseio por sua derrota […]

90 Transição que precisa ser considerada com sua dramaticidade incorporada (também) pelas considerações de Michel

Chossudovsky (1999, p. 64) em seu relevante estudo acerca dos “impactos das reformas do FMI e do Banco

Mundial” nos países do considerado Terceiro Mundo e do Leste europeu. Ao analisar o “reaparecimento das moléstias contagiosas” na África subsaariana e na América Latina, oferece-nos a real (ou única) medida da flexibilidade aceita pelos capitalistas. “[…] a metodologia do FMI-Banco Mundial considera os ‘setores sociais’ e as ‘dimensões sociais dos ajustes’ coisas ‘separadas’, isto é, de acordo com o dogma econômico dominante, esses ‘efeitos colaterais indesejáveis’ não fazem parte dos resultados de um modelo econômico. Eles pertencem a um ‘setor’ separado: o setor social”.

91 Consideraremos, assim como Marx (2002, p. 197), que: “Por força de trabalho ou capacidade de trabalho

compreendemos o conjunto das faculdades humanas físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie.” Daí se deduz que a ausência dessa força para a realização do trabalho, estando o trabalhador em ação profissional, também refletirá na ausência da condição humana.

92 Busca-se nas estatísticas um instrumento (perfeito) definidor e objetivo às análises relativas a saúde e segurança.

Nelas, apesar das implicações por vezes indeterminantes à origem, revelam-se dados ou números incômodos aos

padrões de um mundo (dito) civilizado. “Os dados da OIT indicam que a cada dia cerca de 6.300 pessoas morrem

como resultado de lesões ou doenças relacionadas ao trabalho, o que corresponde a mais de 2,3 milhões de mortes

por ano. […] ‘O custo humano que representa essa tragédia diária é incalculável’, disse [Diretor geral da OIT] Juan

Somavia. No entanto, estima-se que os custos econômicos da perda de dias de trabalho, o tratamento médico e as pensões pagas a cada ano equivalem a 4 por cento do PIB mundial. Isso excede o valor total das medidas de estímulo tomadas para responder à crise econômica de 2008-09.” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2010).

93 Destacamos que, ao incorporar algumas reflexões de Bauman, especificamente as alusivas ao contexto refletido,

deixamos evidente a preocupação com distinções teóricas da atualidade cuja prevalência crítica às adversidades impostas pelo capitalismo na sociedade estão presentes. Não fizemos com isso outra coisa senão colocar em evidência nossas posições dialéticas em que, ao admitirmos o conflito ideológico, admitimos junto a distinção de pensamentos que convergem para denunciar um estado de coisas onde à condição humana se degrada e as causas dessa degradação são observadas como originárias num sistema comum, porém, sua sustentação e ascendência são preservadas sob olhares bastante contraditórios. No caso de Bauman, em que pese sua insistência em infantilizar o comunismo e impor ao socialismo uma ambivalência extrema, chegando ao ponto de admiti-lo como instrumento purificador e orientador ao amadurecimento do capitalismo ao citá-los como contracultura importante em relação à modernidade, ideia da qual discordamos frontalmente, pois nega o papel histórico que exercem – sobretudo as ações que impuseram e impõem como valores numa sociedade carente, com uma flagrante e real necessidade de um processo contínuo de emancipação, por meio da resistência dos movimentos populares e sindical, aos quais, inclusive, é devido destacar, são atribuídas as grandes mudanças sociais, conquistas e direitos das classes que vivem do trabalho; e são e devem ser considerados e mantidos ativos, afinal de contas, tratam-se dos principais polos de resistência organizados existentes e presentes no mundo civilizado. São suas críticas e análises das perniciosas implicações capitalistas à sociedade, em especial aos trabalhadores, que nos levam a incluí-lo como um pensador também preocupado com as drásticas condições atuais da humanidade.

… haja vista haver uma catálise no caráter definidor do capitalismo (o lucro)

neutralizando a condição humana, o que impede que sentimentos e intenções sejam expressos como manifestação da consciência em contradição a este estado.

O valor (da vida) do trabalhador é demonstrado como muito inferior às especulações do mercado de capital. O produto e quem o produz sequer se equivalem. Se o produto sozinho não satisfaz a sanha do sistema (especulativo) capitalista é transformado em outro produto ou retirado de mercado, pois é a expectativa do lucro que dá enorme sentido e vida ao mercado financeiro, inclusive concedendo-lhe valores, atributos, faculdades e sensações humanas

(sente frio e calor, fica nervoso…). Com isso, dá-se a ele prioridade estranhada de

sobrevivência em relação às concepções mantenedoras da vida e da humanidade. Gastar com as consequências das mortes e das doenças do trabalho é mais prodigioso a um sistema que não pretende preservar o humano trabalhador. A razão é explícita pela própria estatística, uma vez que a prioridade do lucro tem se sustentado na prioridade da desvalorização ou da eliminação do trabalho vivo nos ambientes de produção. O gasto com as consequências deletérias da classe que ainda vive do trabalho também é tido como justificativa de sua extinção ou rebaixamento social.

A quantidade de ocorrências envolvendo a morte ou a incapacidade (mutilação e doença) do trabalhador, inclusive para além dos ambientes do trabalho, demonstra que a identidade humana se deteriora, equivalendo-se às matérias perecíveis cuja obsolescência dá lugar a coisas/mercadorias/produtos ou máquinas/equipamentos/instrumentos mais adaptáveis às exigências do capital e se somam aos refugos, resíduos ou rejeitos da sociedade (civilizada) colocados (amontoados ou jogados) em depósitos de sucatas, aterros sanitários e em lixões.

Ainda que haja busca frequente de dados estatísticos confiáveis, não tem sido possível precisar a realidade dos fatos e ocorrências das doenças e mortes no ambiente de trabalho. Há, apesar das limitações e omissões impostas pelo próprio sistema (dominante), em órgãos estatais, profissionais e técnicos que ainda conseguem dissecar, nessa estrutura blindada muitas vezes por gestores de governo sob indicações políticas da classe dominante, informações relevantes a serem consideradas ao se tratar desse problema. Nesse sentido, em que pese a dificuldade e limitação quanto aos dados inexistentes da informalidade do trabalho no Brasil, destacamos uma análise criteriosa de dados oficiais do mercado formal de trabalho disponibilizada por diversos órgãos. Mesmo diante dessa limitação, os números apresentam o quadro da degradação em que se encontra o ambiente de trabalho no país, como é o caso das informações contidas em tabela relativa a acidentes do trabalho e óbitos segundo diversos

registros, com dados aferidos entre 2000 – 2008, e demonstrados por Celso Amorim Salim, em palestra apresentada em 28

de abril de 2010.

A Tabela 194, ao revelar e contribuir para a consciência dessa situação ou desse estado – em virtude das circunstâncias, quantidade e gravidade, mesmo que aparentemente nos apoiemos no excesso daquilo que um conceito pode oferecer ou limitar, apresenta-nos um

ambiente que sofreu uma espécie de ruptura com o estado de direito. Ainda que consignados em lei, foram suspensos (na prática) os direitos fundamentais e as garantias mínimas à saúde e à vida de quem trabalha, vivenciando, assim, consequências peculiares a um estado de

exceção; essas estatísticas também revelam o quanto é recorrente e perene a materialidade da

doença, do mal e da morte do homem trabalhador, seja como espécie viva ou na qualidade de

ser racional da classe que (ainda) vive (ou viveu) do trabalho, destituindo-lhe a humanidade

sugerida por Reich, além do sentido, pois aí já se pode observar cessadas “as funções naturais do amor, do trabalho e do conhecimento”.

4.6.2 Ética – breves recortes evolutivos dos ciclos (des)construtores do valor humano no