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a Ética e Moral: Aristóteles, Kant e o Moralismo

São muitas as noções de “Ética”, fixadas pelos estudiosos do assunto em diferentes épocas, todas assinalando a origem grega da expressão mas com várias divergências quanto ao seu significado preciso, sobretudo por tomarem como base o sentido encontrado em textos diversos, de diferentes autores gregos ou até do mesmo autor mas com diferença de sentido. É o mesmo fenômeno que ocorre com línguas modernas, como, por exemplo, o português, onde se encontram muitas palavras com vários sentidos, às vezes bem diferentes. Tome-se, por exemplo, a palavra “campo”, que poderá ser usada para significar a zona rural, em oposição à cidade, ou, diferentemente, o campo cirúrgico, ou o campo de visão, ou o campo de trabalho, ou o lugar onde se praticam alguns esportes, como o campo de futebol, ou ainda um tipo de atividade intelectual, que é a pesquisa de campo, além de outros sentidos. Apesar das divergências entre os estudiosos, existe predominância quanto à aceitação de que “ética” tem a ver com os comportamentos humanos ou com valores que informam esses comportamentos.

Um dos autores gregos que mais se referiram à ética é Aristóteles, em cuja obra os estudiosos do tema sempre buscaram apoio para suas reflexões e conclusões. Em minucioso estudo sobre a Ética a Nicômaco, publicado como introdução a uma das mais recentes edições francesas dessa obra de Aristóteles, J. F. Balandé chama a atenção para a existência de dois termos gregos muito semelhantes:

“ethos”, significando “o costume”, e “éthos”, que se refere ao “caráter”. Observa, também, que Aristóteles dá grande importância à aproximação entre o caráter e o costume, considerando que a virtude do caráter, que é virtude ética, não se adquire por meio de lições, mas pela prática e repetição, ou seja, pelo costume117.

Ainda segundo Aristóteles, o ser humano tem duas características que o fazem diferente dos outros animais: uma delas é a noção do bem e do mal, do justo e do injusto; outra é a natureza associativa, ou seja, a caracterização do ser humano como “animal político”, um ente que por natureza necessita da convivência com os semelhantes. Essas características são fundamentais para que se defina uma ética, que sempre será, ao mesmo tempo, individual, por decorrer das práticas reiteradas de cada um, mas também social, pois essas práticas só podem ocorrer na convivência, no meio social. Assim, portanto, a ética implica uma seleção de comportamentos, informados por valores, ligados à busca do bom e do justo. Tal seleção não se faz arbitrariamente ou por um processo meramente intelectual, mas ocorre a partir da prática reiterada, ou seja, é resultante do costume.

Retomando essa temática no século dezoito, mas já influenciado pelas circunstâncias ligadas às revoluções burguesas, de que foi contemporâneo, Emmanuel Kant irá fixar algumas idéias que se tornarão fundamentais para a noção moderna de ética. Evidenciando, sobretudo, a importância dada à liberdade da pessoa , sem perder de vista o conjunto de características do ser humano, mas também a preocupação como o sentido prático e utilitarista que se procurava imprimir às relações sociais, Kant retoma algumas conclusões de Aristóteles e adiciona elementos inspirados nos conhecimentos e nas reflexões de sua época. Assim é que reconhece como uma das características do ser humano a natureza associativa, que define como socialidade e que seria decorrente da percepção de que cada um necessita do outro, mas acrescenta que existe, na realidade, uma “insociável socialidade”, pois o ser humano tem também um egoísmo essencial, tendendo sempre a colocar seus interesses acima dos interesses dos demais, o que provoca conflitos e tem efeito desagregador.

Em duas de suas obras fundamentais, Crítica da Razão Pura, aparecida em 1781, e Crítica da Razão Prática, publicada em 1788, foi desenvolvida a idéia de uma moral do dever, o “imperativo categórico”, fundada na autonomia da vontade humana e no respeito pela lei universal. É oportuno lembrar aqui as idéias de Kant, porque elas tiveram influência especial na área da Saúde, como assinala Axel Kahn, eminente geneticista francês, em obra notável sobre os problemas do humanismo, recentemente publicada: “A referência principal do discurso ético aplicado à biologia e à medicina é, pelo menos na Europa Continental, Emmanuel Kant, para quem a ética consiste na livre aceitação de um dever que a razão representa à vontade como necessário. Assim emerge a idéia de uma lei moral, que encontra suas fontes na própria razão pura, a priori, e que se exprime em imperativos categóricos, ou seja, incondicionais”. Em seguida, Kahn enuncia um preceito derivado desse imperativo, deixando bem claro o efeito prático dessas idéias: “Aja de tal modo que tu trates a humanidade, tanto em tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre, ao mesmo tempo, como um fim e jamais como um simples meio”118.

Há duas decorrências importantes das idéias kantianas que é oportuno ressaltar. Uma delas é o requisito da livre aceitação de um dever, o que exclui a possibilidade de imposição de uma ética à consciência individual. Outra decorrência é o reconhecimento de que, assim como existe liberdade para que o indivíduo aceite o dever

117 J. F. BALANDÉ, Éthique à Nicomaque (Introdução), Paris, Les Livres de Poche, 2001,pags.13, 17, 28

e 29.

que a razão representa à vontade como necessário, o indivíduo é livre para não aceitar esse dever. A consciência do bom e do justo pode influir sobre as decisões individuais, mas não determina tais decisões, o que significa que um indivíduo pode optar, conscientemente e espontaneamente, por um comportamento anti-ético. Assim, pois, a transmissão de ensinamentos sobre a ética pode não ter qualquer significado prático, sendo irrelevante falar de ética, escrever sobre ética, simular respeito à ética, se não houver um comportamento ético.

Uma questão que se coloca freqüentemente é o relacionamento entre ética e moral. Em parte, pode-se dizer que se trata de um falso problema, pois o que ocorreu foi que do grego “ethos”, costume, derivou a palavra “ética”, tendo derivado do latim “mores”, costumes, a palavra “moral”. Entretanto, por circunstâncias históricas, sobretudo pelo predomínio político romano, prevaleceu a forma latina e depois, a partir do século quinto, a Igreja Católica, institucionalizando o cristianismo e estabelecendo sua sede em Roma, criou também o que denominou “moral cristã”, abrindo caminho para que a partir daí muitos grupos humanos proclamassem “a sua moral” respectiva.

Disso resultou a ambigüidade da expressão “moral”, que pode significar um conjunto de preceitos, informado por valores consagrados pelo costume, podendo-se dizer que nesse caso ética e moral seriam sinônimos. Entretanto, o que predominou foi a moral como expressão de parâmetros fixados por comandos radicais e opressores, geralmente estabelecendo limitações e restrições rigorosas, identificando-se a moral com determinados agrupamentos humanos, mais ou menos numerosos, constituídos em torno de objetivos religiosos, políticos, econômicos ou sociais. Foi isso que se caracterizou como “moralismo”, significando a exigência de obediência à moral formalmente imposta, institucional, sem considerar a exigência de livre adesão das consciências. Essa ambigüidade e o uso malicioso que se tem feito da palavra “moral”, para justificar a imposição de regras inspiradas no fundamentalismo religioso, político, econômico, ecológico ou de outra espécie, todas essas distorções levaram alguns teóricos, preocupados com a ética, à conclusão de que a moral é “formal, instituída”, como afirma Henrique Dusserl, não sendo a expressão de decisões livres tomadas no plano da consciência, razão pela qual deve ser evitada.

Por tudo o que foi exposto, verifica-se que, dependendo do sentido que se dê a cada uma delas, ética e moral podem ser tratadas como expressões sinônimas, refletindo a preocupação de buscar o bom e o justo, em benefício da pessoa humana e da humanidade em seu conjunto. Entretanto, como reação aos excessos do moralismo criou-se uma resistência à exigência de respeito à moral, enquanto, ao contrário, ganhou prestígio e se generalizou a busca da ética, expressão que também já vem sofrendo distorções, que deverão ser percebidas e evitadas para que não se caia novamente no mero formalismo.

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