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V – O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária

Nos artigos 196 e 200 da Constituição Federal, a Vigilância Sanitária é definida como obrigação do Estado, não pairando dúvidas sobre a posição que desfruta o conjunto de ações desse campo como componente do conceito atual de saúde.

A Constituição reconheceu a saúde como direito fundamental do ser humano e vinculou sua obtenção às políticas sociais e econômicas para redução do risco de agravos e ao acesso às ações e serviços destinados, não só, à sua recuperação, mas também, à sua promoção e proteção. A legislação vigente confere um destaque às ações de Vigilância, que integram, em grande parte, o conteúdo do atual conceito jurídico de saúde, conforme discutido por DALLARI (1995),222 podendo-se constatar sua abrangência no elenco das atribuições do SUS, definidas na Carta Constitucional.223

A Lei n.° 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Lei Orgânica da Saúde – regula, para todo o Território Nacional, as ações e serviços de saúde executados pelos Poderes Públicos e pela iniciativa privada. Ao dispor sobre o Sistema Único de Saúde este diploma legal traz uma definição para a Vigilância Sanitária que confere um caráter abrangente ao conjunto de ações: além da natureza restritiva de eliminar, diminuir ou prevenir riscos, há também uma dimensão mais ampla de intervenção do Estado no espectro da concepção atual de saúde/doença. A definição reporta-se aos objetivos finalísticos das ações de Vigilância Sanitária, situando-a num marco referencial da esfera produtiva. De noção restritiva e imprecisa quanto à função protetora da saúde, a Vigilância Sanitária passa a compor o elenco dos direitos fundamentais das pessoas, no seu amplo espectro de ação.224

222DALLARI acompanha o conceito de direito à saúde expresso por FORGES (1986, apud DALLARI,

1995): “o conjunto de regras aplicáveis às atividades cujo objeto seja restaurar a saúde humana, protegê- la e prevenir sua degradação”. Ademais, “O caráter atual do direito à saúde resulta das aspirações individuais combinadas à convicção de que o Estado é responsável pela saúde, seja para atender àqueles desejos, seja para cumprir sua finalidade” (DALLARI, 1995, p. 20).

223Das oito atribuições, seis são do campo de atuação da Vigilância Sanitária: ações de controle e

fiscalização de procedimentos, produtos e substâncias de interesse sanitário; participação na

produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos de saúde; ações de Vigilância Sanitária e epidemiológica e de saúde do trabalhador; de ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde; participação na formulação da política e na

execução das ações de saneamento básico; de incremento do desenvolvimento científico e tecnológico na área da saúde; colaboração na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho; ações de fiscalização e inspeção de alimentos e de controle de seu teor nutricional, bebidas e águas para consumo humano; de participação no controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos.

224 Art. 6º (...)

§1.°. Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo:

I – o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relaciona, com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo: e

II – o controle da prestação de serviços que se relaciona, direta ou indiretamente com a saúde.

§ 2.°. Entende-se por vigilância epidemiológica um conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes

Simultaneamente, a defesa do consumidor foi incluída na Constituição Federal por necessidades de ordem econômica e social da vida contemporânea. Com grande atraso em relação a outros países, em 1990 foi promulgada a Lei n.º 8.078 – Código do Consumidor – coroando um processo que teve início no final dos anos setenta quando as contradições nas relações entre produtores-comerciantes e consumidores chegavam ao auge de conflitos de interesse e obrigavam o Estado a iniciar a instalação de estruturas de defesa do consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor tem, no conceito de vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, o cerne dos princípios que dão sustentação aos direitos do consumidor de onde emana o fundamento da regulação das relações produção-consumo para assegurar proteção ao elo mais frágil e vulnerável da cadeia (ALVIM e cols., 1995).

O Código do Consumidor reforça a legislação de Vigilância Sanitária, reafirmando a responsabilidade do produtor pela qualidade dos produtos e serviços ofertados no mercado de consumo, como também a responsabilidade institucional da Vigilância Sanitária em desenvolver atividades de informação ao consumidor e de controle da informação e publicidade no mercado de consumo. Em termos conceituais e doutrinários, os órgãos de Vigilância Sanitária integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, mas, na prática, existe pouca articulação.

A Lei 8.078/90 e a Lei 8.080/90 conformam novo marco jurídico-político e doutrinário, reiterando o dever do Estado quanto às necessidades de defesa e proteção da saúde individual e coletiva. As duas leis, produtos de avanço no processo de reforma democrática da sociedade brasileira, inserem a Vigilância Sanitária na doutrina de defesa e proteção do consumidor contra riscos no consumo de serviços e mercadorias relacionadas com a saúde, e, simultaneamente, confirmam sua especificidade para além da defesa do consumidor. Com efeito, segundo o Código, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, equiparando-se a consumidor a coletividade de pessoas, mesmo que indetermináveis, desde que intervenha nas relações de consumo. A Vigilância Sanitária é muito mais que esse aspecto, engloba-o e vai além, porque visa proteger a saúde da coletividade inteira, sem que necessariamente exista relação de consumo direta segundo esse conceito (COSTA, 1999).

O sistema nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) vem sendo referido em normas jurídicas desde a década de setenta. Formalmente o SNVS foi instituído com a Lei n.º 9.782/99 que criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, nova estrutura organizacional que substituiu a antiga Secretaria de Vigilância Sanitária integrante do Ministério da Saúde. Contudo, tal sistema ainda não existe de fato como um conjunto articulado de componentes das três esferas de governo visando um fim comum, com clara definição de competências, estruturação legal, administrativa e doutrinária, ressentindo-se este campo de uma ação coordenada entre os vários níveis de gestão da saúde.

Os órgãos de Vigilância Sanitária das esferas federal, estadual e municipal estruturam-se com base em uma multiplicidade de formas organizativas: no plano federal existe uma autarquia especial, dita agência regulatória, que detém de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças e agravos.

§ 3.°. Entende-se por saúde do trabalhador, para fins desta Lei, um conjunto de atividades que se destina, através das ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, assim como visa à recuperação e reabilitação da saúde dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho (...).

autonomia administrativa e financeira com estabilidade de seus dirigentes, submetendo- se ao poder de tutela do Ministério da Saúde com o qual é firmado um Contrato de Gestão.

Os órgãos estaduais de Vigilância Sanitária têm organização diferenciada em relação à esfera federal: raros têm estruturas com maior autonomia administrativa e financeira; predomina a forma organizacional de administração direta, no geral com extrema dependência administrativa dos níveis centrais das Secretarias Estaduais de Saúde, reduzida autonomia para gerir recursos orçamentários-financeiros e tomar certas decisões, havendo pouca articulação no âmbito setorial e com órgãos de outros setores com os quais há interface nas ações. Devido à precariedade na organização de serviços de vigilância em grande parte dos municípios, os órgãos estaduais de vigilância sanitária muitas vezes têm que realizar, além das ações que lhes seriam próprias, também aquelas que deveriam ser executadas pelos órgãos municipais.

As formas e o grau de organização da Vigilância nos Municípios são bem diversificados. À heterogeneidade dos quase seis mil municípios brasileiros, somam-se, entre outros aspectos relevantes, as limitações estruturais em grande parte deles, que têm menos de 10 mil habitantes, as distintas concepções sobre a Vigilância Sanitária e escassa percepção da importância dessas ações, inclusive do seu potencial preventivo de problemas de saúde. Nos dois maiores municípios brasileiros em termos populacionais – São Paulo e Rio de Janeiro – a situação da Vigilância Sanitária é ainda incipiente e seus órgãos nem estão vinculados ao setor saúde.

Ante o clamor por assistência médica e inexistente tradição de práticas do campo da Vigilância Sanitária na maioria dos municípios, no processo de mudança pretendido, o desafio será sensibilizá-los para práticas além da noção de fiscalização com vistas à concessão de licenças aos estabelecimentos.

Em termos de competências institucionais não há uniformidade. Conquanto a legislação constitucional e infra-constitucional da saúde estabeleça atuação da Vigilância Sanitária em matéria de ambiente e saúde do trabalhador, essa matéria foi excluída das competências do órgão federal, enquanto alguns poucos órgãos estaduais atuam nessas áreas, raramente órgãos municipais, exceto em algumas questões ambientais locais.

No momento atual, no curso do processo de descentralização político- administrativa dos serviços e ações de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde a construção do SNVS ganha força e tem sido de alguma forma estimulada com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Também porque o cumprimento do Contrato de Gestão impõe ao órgão federal desenvolver estratégias de articulação com os Estados de modo a possibilitar o cumprimento das metas estabelecidas, respeitando os postulados do SUS que estabelecem, entre outras diretrizes, a descentralização como instrumento de democratização do poder público no âmbito do sistema de saúde.

Nos termos da Lei n.º 9.782/99, cabe à União, por intermédio do Ministério da Saúde, formular, acompanhar e avaliar a Política Nacional de Vigilância Sanitária e as diretrizes do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, postulado que se reafirma no Contrato de Gestão. Por seu lado, a Lei n.º 8.080/90, no artigo 16, inciso III, alínea “d”, determina como uma das competências da direção nacional do Sistema Único de Saúde definir e coordenar o sistema de vigilância sanitária. Contudo, ao longo da trajetória da Vigilância Sanitária no país e até o presente momento, ainda não foi formulada uma política nacional de vigilância sanitária e dada a conhecer à sociedade brasileira em documento emanado do Ministério da Saúde ou do órgão federal de Vigilância Sanitária, o que denota que essas políticas vêm sendo implementadas sob forte peso das circunstâncias relevantes de cada conjuntura, sem uma articulação mais

orgânica com as demais políticas de saúde e com políticas públicas de outros âmbitos setoriais com os quais esta área está intimamente relacionada.

Para melhor pensar as complexidades da área, a seguir são abordadas ações de Vigilância Sanitária, didaticamente esquematizadas por áreas de produtos, serviços, portos, aeroportos e fronteiras e meio ambiente.

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