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II – Saúde pública: aspectos relevantes para o presente estudo

O primeiro contato que mantive com o tema saúde pública, a fim de conhecê-lo minimamente, conforme mencionei acima, ocorreu a partir de uma abordagem exclusivamente histórica, em que Carlos Bertolli Filho o estuda em várias de nossas fases políticas, apresentando de forma crítica, como convém ao estudioso de história, os problemas existentes desde a colonização, chegando aos aspectos que podem ser esperados para o milênio recém-iniciado, como o programa denominado “saúde para todos no ano 2000”, que mais tarde vi mencionado em outros trabalhos, como nos estudos de Jairnilson S. Paim e Naomar de Almeida Filho, adiante referidos.

Carlos Bertolli Filho dedica-se ao estudo de problemas médico- sanitários. Seu enfoque, tal como o meu, não é o de um estudioso da área de saúde, portanto. Contudo, dentre os vários méritos que podem ser destacados de sua obra, que muito se aplicará às minhas investigações, está a abordagem do tema sob um enfoque político, aqui considerado como as opções que são e foram feitas pelos governantes em relação aos temas que envolvem a saúde pública entre nós.

Destaco, do capítulo dedicado ao estudo do nascimento da política brasileira de saúde, o seguinte trecho:

“A idéia de que a população constituía capital humano e a incorporação dos novos conhecimentos clínicos e epidemiológicos às práticas de proteção da saúde coletiva levaram os governantes republicanos, pela primeira vez na história do país, a elaborar minuciosos planos de combate às enfermidades que reduziam a vida produtiva, ou “útil”, da população. Diferentemente dos períodos anteriores, a participação do Estado na área tornou-se global: não se limitava às épocas de surto epidêmico, mas estendia-se por todo o tempo e a todos os setores da sociedade. A contínua intervenção estatal nas questões relativas à saúde individual e coletiva revela a criação de uma “política de saúde”. Esta, por sua vez, não pode existir isolada, devendo articular-se com os projetos e as diretrizes governamentais voltados para outros setores da sociedade, tais como educação, alimentação, habitação, transporte e trabalho. No conjunto, a presença e a atuação do Estado nessas áreas recebe o nome de política social”.

Mais adiante, conclui num tom melancólico e absolutamente real, que marca o seu enfoque pessoal da revelação da eterna luta entre os menos favorecidos e os que acabam controlando as políticas estatais:

“O compromisso governamental com as necessidades básicas da população tem sido relegado sempre a segundo plano, perpetuando um círculo tristemente vicioso: desamparado e sem participação decisiva nas decisões do governo, o trabalhador recebe salários baixos e vive mal, adoecendo com facilidade. Doente e mal alimentado, ele tem a sua vida produtiva abreviada, tornando muito mais difícil a superação da pobreza nacional” (cfr. História da saúde pública no Brasil. 4a

edição, 2a impressão. São Paulo: Ática, 2001, pp. 14-15).

Saúde pública, ensina-nos o autor é, preponderantemente, uma questão política. A história nos revela, agora sob um enfoque científico, na forma versada pelo citado autor, vez que todos guardamos a certeza empírica de que há falta de políticas no setor de saúde, que os problemas nesse campo da administração pública sempre foram delicados e indelicadamente mal tratados.

O autor mostra-se completamente sintonizado com outros profissionais (estes sim da área de saúde) ao tratar a saúde não como um problema exclusivamente biológico. Afirma que os mais importantes fatores são de natureza sociológica e histórica da sociedade, incluindo-se aí as organizações sociais e as relações entre os indivíduos no processo de produção (idem, p. 67).

Obviamente, o estudo que ora realizo não pretenderá apontar e questionar as opções políticas em espécie, para cada um dos problemas envolvendo a saúde pública no Brasil. Muito menos que este importante debate, busco revelar as conseqüências jurídicas dessas opções, que sempre são realizadas, exclusivamente no campo do combate a improbidade administrativa.

Para reforçar a idéia de Carlos Bertolli Filho, então, deveríamos nos socorrer do conceito, chamemos assim, oficial de saúde para verificarmos, ainda uma vez, a estreita ligação entre a atividade da administração e os problemas de saúde pública.

Com efeito, a Organização Mundial de Saúde (OMS), na declaração de um de seus basilares princípios, assim sentencia: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental, social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.

Entendem os estudiosos que a saúde não depende exclusivamente da perfeição do funcionamento físico do corpo. Antes, a saúde do indivíduo engloba aspectos mais extensos que a idéia primária e absolutamente incompleta de que ela constitua apenas a momentânea ausência de uma doença.

Da definição oficial de saúde, conforme a OMS, há que se concluir não existir saúde, v.g., na ausência do trato dos rios, que recebem grandiosa carga de esgoto doméstico e resíduos industriais sem tratamento; ainda, na ausência de um correto tratamento da água que abastecerá as residências; onde não se verifiquem as condições mínimas para que se desfrute de uma saúde social e mental, além daquela mais destacada que é a saúde física.

Mais que isso: não haverá saúde, segundo nos ensinam os biólogos Marcelo Nunes Mestriner e Antônio Gusman, onde a Administração local não proporcione aos indivíduos a existência de oferta de empregos e salários suficientes para a moradia, a alimentação, a assistência médica e o lazer. (cfr. Saúde – Coleção temas transversais. São Paulo: Ícone, 2000, p. 27 – coordenação Maria Aparecida Baccega).

Assim, ensinam-nos os estudiosos, agora sim da área de saúde, que à Administração cumpre um papel bem mais complexo que o simples (se é que tal

atividade pode ser assim adjetivada) desempenho eficaz da prevenção de doenças físicas, embora já me pareça um verdadeiro passo de gigante proporcionar a prevenção de doenças. Nem mesmo desse ideal – que é apenas uma das parcelas da saúde – estamos próximos. O conceito de saúde,como vimos, vai muito além.

Há uma íntima relação com outras atividades desempenhadas pela Administração. Naturalmente surge uma dúvida, que não esconde um certo reducionismo de quem vier a verbalizá-la: o tema saúde seria o tema síntese que deveria ocupar as atividades dos administradores públicos? Em outros termos: a saúde pública, diante do seu conceito tão abrangente, representa o verdadeiro problema a ser enfrentado pelo gestor da coisa pública?

Sem pretender associar-me aos reducionistas, vejo que, a partir da própria formação do profissional de saúde, há uma clara preocupação em dotar-lhes da excelência de conhecimentos para que liderem não só as políticas de saúde, como as demais que a elas se relacionem. A OPS (Organización Panamericana de la Salud), na I Conferência Pan-americana sobre Educação em Saúde Pública, que ocorreu em 1994, na forma destacada no indispensável ensaio, que foi publicado na Revista de Saúde Pública, de Jarinilson S. Paim e Naomar de Almeida Filho (cfr. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? In: Revista de Saúde Pública, v. 32, n.4, 1998 - www.fsp.usp.br/rsp), conclui haver a necessidade de se fortalecer o contínuo processo de independência da própria estrutura organizacional das escolas de saúde pública, em relação às faculdades de medicina, pois aquelas, na formação do profissional de saúde, devem fomentar a formação que objetive o que denominam de “lideranças setoriais”, que possam liderar os compromissos públicos na área de saúde coletiva.

Se não devemos reduzir os problemas da Administração à gestão da saúde pública, há que se, ao menos, reconhecer a sua crescente importância e exigir do Administrador o mínimo, que seria o respeito aos ditames constitucionais e legais da disciplina da saúde.

Certamente, os reflexos de uma má administração refletirão na saúde da população. Assim, mais uma vez, convoco o magistério de Jarinilson S. Paim e Naomar de Almeida Filho, ambos do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia que, no citado artigo, ensinam, a propósito de apresentarem a evolução da saúde pública no Brasil:

“A área de saúde, inevitavelmente referida ao âmbito coletivo- público-social, tem passado historicamente por sucessivos movimentos de recomposição das práticas sanitárias decorrentes das distintas articulações entre sociedade e Estado que definem, em cada conjuntura, as respostas sociais às necessidades e aos problemas de saúde. As bases doutrinárias dos discursos sociais sobre a saúde emergem na segunda metade do século XVIII, na Europa Ocidental, em um processo histórico de disciplinamento dos corpos e constituição das intervenções sobre os sujeitos. Por um lado, a higiene enquanto conjunto de normatizações e preceitos a serem seguidos e aplicados em âmbito individual, produz um discurso sobre a boa saúde francamente circunscrito à esfera moral. Por outro lado, as propostas de uma política (ou polícia) médica estabelecem a responsabilidade do Estado como definidor de políticas, leis e regulamentos referentes à saúde no coletivo e como agente fiscalizador da sua aplicação social, desta forma remetendo os discursos e as práticas de saúde à instância jurídico-política”.

Apenas para concluir esta minha curta pesquisa, mas que se mostrou reveladora, principalmente se considerarmos o quanto pude apreender da estreita relação existente entre os temas saúde pública e o princípio da probidade administrativa, e que, conforme confessei no início, objetivava apenas aproximar a saúde pública dos atos de Administração, posso verificar ainda que, v.g., a gestão de recursos públicos para a saúde pública, o cumprimento de normas voltadas a disciplinar o funcionamento de programas públicos de saúde, a necessidade de se ofertar, na forma legislada, o competente e eficaz serviço público de saúde, a não omissão das políticas públicas em relação a epidemias e outros eventos que colocam a população em risco, sobretudo dos programas de educação para a saúde, a necessidade de se proporcionar igualdade entre os cidadãos também no que tange a saúde que o Estado deve ofertar, são temas afetos ao campo prestigiado pela Lei 8.429/92.

Antes de abordar a referida lei, destinada a preservar a probidade administrativa, cumpre uma breve análise acerca da proteção da saúde em nosso ordenamento, verificar quais valores são tutelados com a proteção jurídica e verificar a forma de defesa, em juízo, desses valores.

III – Saúde pública e sua proteção jurídica contra a prática de atos de

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