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c O Código de Nuremberg, a Bioética e a manipulação da Genética: progresso e retrocesso

Durante a segunda guerra mundial, cientistas ligados ao nazismo fizeram experiências científicas, inclusive no campo da genética, utilizando como cobaias prisioneiros indefesos colocados em campos de concentração. Informações precisas e minuciosas sobre muitas dessas experiências foram reveladas durante os julgamentos de criminosos de guerra, efetuados pelo tribunal militar instalado em Nuremberg nos anos de 1945 e 1946. O conhecimento das barbaridades cometidas, que afrontavam gravemente a dignidade humana, horrorizou os julgadores e para que não se perdesse a memória das atrocidades, bem como para servir de alerta contra o risco de repetição daqueles fatos, foi publicado em 1947 um extrato dos julgamentos, que ficou conhecido como Código de Nuremberg.

Esse documento é extremamente importante para a ética na área da Saúde, porque a partir das informações sobre as violências cometidas contra seres humanos, por cientistas e pesquisadores que, colocando a busca de novos conhecimentos e o avanço da Ciência como prioridade absoluta, promoveram a degradação de seres humanos, que foram tratados como coisas ou como simples meio para a busca de resultados. Foi justamente para alertar quanto ao risco desse gravíssimo desvio ético, que muitos são tentados a cometer para satisfazer sua vaidade ou seus interesses, usando o pretexto de progresso da Ciência e benefício para a humanidade, foi para prevenir esse risco que se publicou o Código de Nuremberg. Reconhecido como documento fundamental para a ética da pesquisa com seres humanos, o Código de Nuremberg estabelece diretrizes e aponta as exigências básicas que devem ser observadas na promoção de pesquisas.

A primeira exigência colocada pelo Código é o consentimento voluntário da pessoa que vai ser submetida à pesquisa. Mas além de se verificar se essa pessoa tem capacidade legal para consentir, é fundamental que o consentimento seja livre e esclarecido. Obviamente, não se pode dizer que o consentimento é livre quando obtido em circunstâncias em que a pessoa está fragilizada, como acontece com o presidiário condenado a uma pena muito longa, ou com alguém que esteja sofrendo graves privações por seu estado de pobreza, ou então por uma pessoa acometida de moléstia que provoque grande sofrimento ou esteja traumatizada por alguma ocorrência recente, ou, ainda, por alguém que, por sua situação de dependência hierárquica, econômica ou afetiva, teria extrema dificuldade para negar o consentimento. A par disso, a pessoa que consente deve estar plenamente esclarecida quanto aos objetivos, peculiaridades e riscos da pesquisa, sem o que o consentimento não pode ser considerado voluntário.

Além desse, vários outros requisitos foram estabelecidos pelo Código de Nuremberg, visando impedir que por conveniência ou leviandade sejam utilizadas pessoas humanas em pesquisas que poderiam ser realizadas de outra forma, ou que não tenham sólido embasamento em conhecimentos já obtidos por outros meios, bem como em pesquisas de duvidosa necessidade ou de discutível proveito para a humanidade. A par dessas e de outras exigências, o Código ressalta a necessidade de se evitar que a pesquisa acarrete qualquer sofrimento ou dano físico ou moral à pessoa a ela submetida. Em síntese, pode-se dizer que o Código de Nuremberg afirma enfaticamente a exigência ética de se dar absoluta prioridade à pessoa humana e sua dignidade. Ele não proíbe nem impede a realização de pesquisas com pessoas humanas, para provável futuro benefício da saúde da humanidade, mas impõe o respeito aos valores éticos.

Apesar dessa advertência, graves agressões à dignidade humana continuaram a ocorrer nessa área, pelas ações de cientistas e pesquisadores limitados ao círculo estreito de seus conhecimentos técnicos e científicos, incapazes de atingir a dimensão do humanismo. Desprovidos de consciência ética e, por isso mesmo, incapazes de compreender que seus conhecimentos são apenas um dos meios que se podem utilizar para buscar benefícios para a pessoa humana, continuaram a cometer barbaridades, tratando a pessoa humana como coisa, utilizada para simples satisfação de sua curiosidade de pesquisadores ou, na melhor das hipóteses, achando que isso poderia ter alguma utilidade para a ampliação de conhecimentos.

Um dos casos mais brutais, bastante conhecido por ter sido muitas vezes referido em trabalhos sobre ética em pesquisa, ocorreu nos Estados Unidos da América e vale a pena ser lembrado aqui. Entre os anos de 1932 e 1972, sob patrocínio do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos da América (USPHS) foi feita a observação constante e minuciosa da evolução da sífilis em 399 negros norte- americanos pobres, originários de Tuskegee, no Estado e Alabama. A finalidade desse estudo era a ampliação dos conhecimentos sobre a evolução da sífilis, moléstia crônica sexualmente transmissível, que se sabia que após alguns anos de evolução acarretava males de extrema gravidade, sobretudo de natureza neurológica. A partir de 1940, com o aparecimento da penicilina e sua utilização em muitos casos, sob estrita observação médica, verificou-se que esse novo medicamento era de grande eficiência no tratamento da sífilis, obtendo-se com ele a completa cura dos doentes. Com isso, nos países mais desenvolvidos a sífilis foi praticamente eliminada. Entretanto, as autoridades sanitárias dos Estados Unidos, bem como os cientistas e pesquisadores envolvidos na observação do grupo de Tuskegee, não quiseram perder a oportunidade de chegar ao fim de sua experiência, que era inédita. Por isso aqueles negros não foram tratados com penicilina e, obviamente, acabaram morrendo, muitos deles após terem apresentado os mais terríveis sintomas da moléstia. Aí está um caso de brutal agressão à ética, que nenhuma busca de progresso da Ciência e nenhum pretexto de crença num futuro benefício para a humanidade poderiam justificar.

Casos como os anteriores e a continuação dos abusos “em nome da Ciência” levaram a Organização das Nações Unidas a aprovar, em 10 de Novembro de 1975, uma “Declaração sobre a utilização do progresso científico e tecnológico no interesse da paz e em benefício da humanidade”. Nesse documento é reiterada a advertência, no sentido de que existem barreiras éticas que nem os cientistas, nem os governos, nem as instituições públicas ou privadas empenhadas no desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia podem ultrapassar. Isso tem aplicação às experiências com seres humanos e também à produção e ao uso de substâncias ou instrumentos que possibilitam interferências graves na natureza ou nas relações sociais, afetando seriamente a pessoa humana, pondo em riso ou prejudicando sua integridade física e psíquica e sua dignidade, ou mesmo a integridade e o patrimônio ético de toda a humanidade.

Outro risco que merece advertência é a utilização, distorcida por despreparo ou malicia, dos conceitos da Bioética. Na realidade, a expressão “bioética” sugere a consideração com a ética em toda intervenção nos fenômenos ligados ã vida, especialmente a vida humana, desde sua origem até seu fim. Em nome do benefício à pessoa humana, muitos “bioéticos” (expressão que alguns já utilizam como especialidade profissional) vêm utilizando, distorcidamente, argumentos de conotação ética, para defesa de posições extremamente antiéticas, como a defesa do direito de matar, que muitas vezes permeia as discussões sobre a eutanásia.

A respeito desse risco são muito expressivas e merecem especial atenção, pela riqueza do conteúdo, bem como por refletirem uma longa experiência sempre pautada pela ética, as observações feita pelo eminente sanitarista italiano Giovanni Berlinguer, na obra Ética da Saúde. Entre os temas, todos de grande atualidade, enfocados em seu livro, encontram-se muitas observações críticas sobre o uso de conhecimentos da genética e das possibilidades de interferência do médico no início e no fim da vida humana. Tratando da eutanásia, Berlinguer fala da coação, que é a imposição de uma vontade, disfarçada em consentimento de quem na realidade está sendo coagido, e faz a seguinte ponderação : “Temo, sobretudo, que na prática e nas leis ocorra um lento desvio da vontade própria para a coação, que é uma grande tentação, uma vez superado o limiar do primum non nocere - antes de tudo, não causar dano- que é um princípio ético tradicional (e espero eterno) para os médicos; e também o limiar do “não matar”, que é válido para qualquer um”122.

Esse temor do notável sanitarista não é infundado, podendo-se mencionar como exemplo desse desvio ético o fato de existirem no Brasil professores de Medicina que argumentam com a Bioética para sustentar que o médico deve ter o direito, mais do que isso, deve ter mesmo o dever, de matar um doente terminal que esteja sofrendo, a fim de lhe proporcionar uma morte digna. E consideram que assim estará sendo atendido o princípio do benefício, por ser mais benéfico para o doente morrer sem a perda da dignidade que poderá decorrer do excessivo sofrimento. Simulando o cuidado com a ética ressaltam que o médico só deve matar naquela circunstância se o paciente pedir para morrer, enquadrando-se aí, rigorosamente, a hipótese do desvio da vontade própria, livremente formulada, para a coação, pois o médico desejoso de apressar a morte do doente terminal não se esforçará para reduzir seu sofrimento e lhe dar alívio físico e conforto psicológico ou espiritual, resguardando assim sua dignidade.

Outro caso de ofensa à ética, disfarçada em benefício, ocorre com a manipulação da genética, seja para satisfazer a vaidade do médico, que se apresenta como um cientista de vanguarda, seja para a obtenção de vantagens econômicas ou de outra natureza. Não se pode negar que em muitos casos existe realmente o benefício para quem se vale do auxílio dos médicos para objetivos ligados à reprodução, mas a par disso existe intensa exploração econômica desses recursos, com evidente desvio dos rumos admitidos pela ética. Exemplo muito eloqüente desse desvio é a comercialização da pessoa humana, através da fabricação de crianças, como vem ocorrendo em larga escala, sob pretexto do benefício aos casais que não conseguem procriar e sem nenhuma consideração pelos aspectos éticos envolvidos na produção de um ser humano mediante artifícios e nas condições de vida que terá essa criança. Um exemplo trágico dessa manipulação foi registrado por Axel Kahn, que é um eminente geneticista e que, justamente pelo que tem visto e sabido através de sua experiência profissional, mostra- se alarmado com os abusos da engenharia genética e com as tremendas agressões à ética levadas a efeito graças à colaboração de geneticistas. Trata-se do registro de um fato real, ocorrido nos Estados Unidos e relatado pela imprensa em 1997, e cujos dados são muito claros:

Um homem e uma mulher, casados, eram ambos estéreis, mas queriam um filho, o que, em princípio, é legítimo e eticamente inatacável. Em lugar de procurarem o caminho da adoção preferiram recorrer à assistência médica à procriação, iniciando-se aí um processo com toques surrealistas, com forte conotação de tragédia e com absoluto desprezo pela ética. Como os interessados eram muito ricos e o especialista procurado tinha capacidade técnica e uma clínica de reprodução assistida

bem organizada, além de nenhum escrúpulo ético, a clínica providenciou a compra de óvulos e espermatozóides no mercado e um especialista efetuou a fecundação in vitro. Em seguida, como era necessário um ventre feminino para o desenvolvimento do embrião, foi alugado o útero de outra mulher, que hospedou o nascituro até o fim da gravidez, em 1995, quando nasceu uma menina perfeitamente sadia.

Pouco depois do nascimento da criança o casal que havia encomendado sua fabricação se desfez pelo divórcio e o marido não quis reconhecer a criança como seu filho, que efetivamente não era, nem concordava em destinar qualquer pensão para sua manutenção. A mulher, que não era a mãe biológica da criança e nem a tinha abrigado em seu útero, chegou a pensar na hipótese de adotá-la, o que acabou não fazendo porque o marido, de quem se estava separando, disse que não lhe daria qualquer pensão se ela ficasse com a criança. E assim, com todos os requintes dos avanços científicos e da mais avançada tecnologia a ética foi para o lixo, sobrando um ser humano absolutamente desprovido de meios materiais, de apoio psicológico e afetivo, de um ambiente familiar e de tudo o mais necessário para garantia de sua sobrevivência, seu desenvolvimento e sua dignidade123.

Como se vê, a obtenção de novos conhecimentos científicos e a invenção de tecnologias mais sofisticadas podem ser úteis à humanidade, mas é indispensável afirmar e reafirmar as exigências da ética, para que os benefícios teóricos e potenciais não sejam substituídos por uma degradação prática. Não se pode admitir que sob pretexto de busca do progresso sejam abandonados os padrões éticos, pois mesmo os avanços científicos e o aperfeiçoamento tecnológico formalmente inegáveis não poderão ser considerados fatores de progresso, mas de retrocesso, se forem utilizados para degradar a pessoa humana, para aumentar as discriminações entre pessoas, grupos sociais e povos. Não se pode falar com propriedade em progresso da humanidade quando só um pequeno número de pessoas recebe os benefícios das inovações, que, na realidade, só se tornam possíveis graças aos meios que, direta ou indiretamente, são fornecidos por muitos. E haverá evidente agressão à ética se tais progressos forem obtidos à custa da sonegação dos recursos indispensáveis para que uma grande parcela da humanidade possa sobreviver de maneira digna.

IV. Ética e Saúde

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