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O controle de constitucionalidade da materialidade do direito regulatório

É de meridiana clareza que a racionalidade material definidora dos atos administrativos de regulação como expressão do direito regulatório, deve ser apreciada e protegida pelo Poder Judiciário.

Vale dizer, o controle jurisdicional deve incidir sobre a apreciação da consonância do agir das agências reguladoras (mediante a edição de atos administrativos de regulação), portanto, da adequação da racionalidade material do direito regulatório que expressa essa atividade normativa com o sistema constitucional.

Aliás, essa maior abrangência do controle jurisdicional aqui defendida já foi reconhecida pelos tribunais norte-americanos ao exercerem o controle de suas agências reguladoras. O exemplo norte-americano é de sumo interesse, pois aquele direito se consubstanciou na fonte inspiradora da regulamentação no Brasil das agências reguladoras.

Relata Maria Sylvia Zanella Di Pietro22 que naquele país “o Judiciário passou a examinar não apenas o procedimento, como também a razoabilidade das decisões diante dos fatos e a proporcionalidade da medida em relação aos fins contidos na lei. Para possibilitar esse controle jurisdicional, passou-se a entender como necessária a ampla motivação dos atos das agências, a transparência, que não era exigida anteriormente, por respeito e confiança na especialização das agências. Esse tipo de controle de razoabilidade, inicialmente feito apenas em relação à adjucation, passou-se a fazer também em relação ao rulemaking.”

Aliás, é de se lembrar que mesmo a jurisprudência brasileira reconhece uma tendência de ampliação do controle jurisdicional dos atos administrativos, como evidencia trecho de voto proferido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, há mais de uma década:

“É preciso evoluir cada vez mais no sentido da completa justiciabilidade da atividade estatal e fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar como expressivo efeito consequencial, a interdição de seu exercício abusivo.” ( MS n. 20.999, julgado em 21.03.1990, RDA 179-180/117, jan-jul / 1990).

Com efeito, em que pesem as manifestações contrárias23, o Poder Judiciário está credenciado a adentrar a apreciação da atividade-fim das agências reguladoras para que se restabeleça o equilíbrio democrático. Explica-se.

22 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Parcerias na Administração Pública, Atlas, 1999, 3ª edição, p.137. 23 Assevera Marcos Juruena Villela Souto em seu Desestatização, Privatização, Concessões,

Terceirizações e Regulação (Ed. Lumen Juris, 2001, 4ª edição, página 463) que “é claro que, como dito, o princípio é da Separação de Poderes, não podendo o Judiciário interferir em juízos privativos da entidade legalmente competente para fiscalização e regulação dos setores da economia. Afinal, a lei que cria tais entidades assegura-lhes autonomia administrativa, técnica e financeira”. Por sua vez, Floriano

Azevedo Marques Neto, em seu texto “A Nova Regulação Estatal e as Agências Independentes” inserto na obra Direito Administrativo Econômico, Ed. Malheiros, 2000, p. 97, parece excluir o Poder Judiciário do controle da atividade–fim das agências, ao afirmar que “mais complexo se mostra o controle da

atividade-fim das agências, ou seja, o controle da própria atividade regulatória. Cremos que o controle, aqui, deve ser triplo. O cumprimento de sua função de implementar os objetivos e metas da política pública para o setor deve ser controlado pelo Poder Executivo, pelo Poder Legislativo e por instâncias da Sociedade especificamente criadas para isso (por exemplo, conselhos de usuários, conselhos

Como anteriormente exposto, as agências reguladoras foram instituídas em um contexto de reforma estatal, em que o Estado deixou de explorar diretamente a atividade econômica e a prestação de serviços públicos, para assumir um papel regulador e gerenciador.

Por óbvio, a finalidade de instituição dessas agências reguladoras foi a de diminuir o aparato estatal em prol da melhoria da qualidade dos serviços públicos ofertados aos administrados. Há aqui inequívocos contornos de políticas públicas por detrás da materialização do direito regulatório de que é expressão o poder normativo das agências reguladoras.

Por essa razão, as agências reguladoras detêm o poder normativo para a edição de atos administrativos de regulação, fundamentalmente veículos de políticas públicas.

Ao baixarem seus atos administrativos de regulação, as agências reguladoras devem respeitar os princípios da legalidade, igualdade, moralidade, publicidade e eficiência consagrados pelo artigo 37, “caput” da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como os princípios da finalidade, da motivação, da razoabilidade e da proporcionalidade expressamente previstos no artigo 2º , “caput” da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1.999.

Portanto, reitere-se, as agências reguladoras estão adstritas também ao dever de motivação de seus atos, bem como a obediência à finalidade para a qual foram instituídas.

Assim, desde que provocado (princípio da inércia jurisdicional), o Poder Judiciário poderá examinar todos estes aspectos dos atos administrativos de regulação, apreciando desde os elementos formais como competência, forma e procedimento, como também a subsunção aos princípios constitucionais e legais e sobretudo, a correlação do ato praticado com a atividade-fim da agência reguladora.

Não se cuida, no entanto, como poderia parecer aos mais desavisados, de apenas e tão-somente ampliar os limites do controle jurisdicional, para submeter por completo à revisão judicial apenas os atos do Poder Público que materializam a atividade normativa de que vem se ocupando este artigo.

O que se pretende é reconhecer a imprescindibilidade do juízo de constitucionalidade do próprio conteúdo dessa atividade normativa, das políticas públicas a que no limite corresponde a racionalidade material dessa função normativa. Como estatuiu Fábio Konder Comparato24, “o juízo de validade de uma política – seja ela empresarial ou governamental – não se confunde nunca com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem. Uma lei, editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstitucional, sem que esta última o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão da finalidade por ela perseguida, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que vinculam a ação do Estado, sem que nenhum dos atos administrativos, ou nenhuma das normas que a regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais.”25

Admitido o controle judicial dos atos políticos, o que é aceito por Fábio Konder Comparato26 como fato, impõe-se como derivação necessária o controle judicial

consultivos, organizações sociais)”.

24 Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade das políticas públicas, in Revista dos Tribunais, volume

737, páginas 11 e seguintes.

25 Op. cit., página 18.

26 Consulte-se a esse propósito Cristina M. M. Queiroz, Os actos Políticos no Estado de Direito – o

do conteúdo do poder normativo das agências reguladoras para averiguação de sua constitucionalidade à luz do conteúdo programático da Constituição dirigente de 1988.

Desse modo, será possível ao Poder Judiciário investigar se as metas e diretrizes das agências reguladoras e protetivas dos direitos dos administrados estão sendo implementadas com a edição desses atos administrativos de regulação. Caberá, então, ao juiz determinar a imediata correção dos desvios daqueles atos que tiverem se desbordado da atividade-fim da regulação.

Mais uma vez, como assevera Fábio Konder Comparato,

“o juízo de constitucionalidade, nessa matéria, tem por objeto o confronto de tais políticas, não só com os objetivos constitucionalmente vinculantes da atividade de governo, mas também com as regras que estruturam o desenvolvimento dessa atividade. Na primeira hipótese, por exemplo, uma política econômica voltada exclusivamente para a estabilidade monetária, interna e externa, pode se revelar incompatível com várias normas-objetivo da Constituição, notadamente com a de busca do pleno emprego, inscrita no art. 170, VIII. Na segunda hipótese, o exemplo é, sem dúvida, o de uma política municipal de saúde pública, desligada do sistema nacional único, imposto pelo art. 198 da Constituição”.27

O que se observa, pois, é que a revisão judicial dos atos administrativos de regulação está a exigir a sistematização de uma nova compreensão da própria teoria dos atos administrativos, de um lado, à luz da emergência do paradigma do direito regulatório, e, de outra banda, requer ela, também, um esforço jurisprudencial que, reconhecendo a minimização da discricionariedade administrativa em matérias como tais28, avance por sobre os limites do controle de constitucionalidade da lei e dos atos do Poder Público para alcançar o conteúdo desses mesmos dispositivos, sempre reconhecendo que a única inteligência do artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, capaz de não jogá-lo no plano da retórica, é reconhecer que a única fonte primária de deveres e obrigações é a capacidade normativa do Estado, venha ela veiculada exclusivamente por lei, no seu sentido formal, ou na forma de um direito regulatório, que não tem na lei seu exclusivo veículo de revelação.

13. Advertência final

De tudo quanto se discutiu a propósito do Direito Sanitário neste artigo dessume-se que a discussão a propósito de sua natureza, sua autonomia científica, sua aplicação pelos atores jurídicos trazem uma dimensão que não é meramente formal. Ao revés, a evidência de um novo paradigma que significa o Direito Sanitário tem implicações absolutamente fundamentais porque tratam de tornar efetivos os mandamentos constitucionais de uma nova ordem econômica e social.

Este é o ponto: é preciso pensar e operar o Direito Sanitário no sentido de concretizar a Constituição Federal, que antes de representar um dado da realidade, vislumbra uma nova ordem que precisa ser construída. Para tanto, ou bem se renovam

27 Op. cit., página 20.

28 Sobre a discricionariedade mínima da Administração na implementação das políticas públicas

constitucionais, consulte-se Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Políticas Públicas – A responsabilidade do administrador e o Ministério Público, Max Limonad, 2.000.

as categorias, exigência da qual é portadora a própria Constituição, ou se frustarão todos os objetivos constitucionais.

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