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O BAILE DA MODERNIDADE NO RECIFE No Brasil, as cidades eram as cabeças-

DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO DO RECIFE POR FREGUESIA (1843-1913)

6.7. ÍCONES DA MODERNIDADE

Para melhor sintetizar e retratar o clima e a atmosfera então vigentes destacar-se-ão três ícones emblemáticos do período. O primeiro, já foi de certo modo antecipado, vez que é o porto e seu entorno, o bairro reformulado do mesmo nome. O segundo é a Praia de Boa Viagem, e o último é o grande marco, a imagem inconteste do período, o Café Lafayette.

Para exemplificar sua importância, observe-se o seguinte: no acervo do Museu da Cidade do Recife, há seis registros fotográficos desse

Café, também denominado de Esquina Lafayette; no acervo da Fundação Joaquim Nabuco, existem, também duas fotos e a foto estampada neste trabalho provém do livro Obra de Propaganda Geral de Pernambuco editado por José Coelho. Ora, não se documenta um prédio privado à toa! Ele representou muito para a cidade, obviamente.

A praia de Boa Viagem foi uma obra ousada do Governador Sérgio Loreto106, considerado por muitos como conservador na política, mas moderno nas intervenções urbanas, que visou dotar a cidade de um balneário digno da terceira cidade mais importante da República.

Relata Araújo o objetivo era dotar:

A área litorânea, ao sul do Recife, dos mais modernos equipamentos e serviços urbanos, como água encanada, rede de esgoto, luz e bondes elétricos, telefone, saneamento e canalização do rio Jordão e córregos, e dessecação dos pântanos.

(2007, p.475).

Posteriormente, no ano de 1959, a praia já consolidada, obtém do Professor Rocha a seguinte caracterização:

A bela e extensa avenida litorânea, que aqui começa, foi inaugurada, ainda em obras, em 20 de outubro de 1924, no governo de Sérgio Loreto (1922-1926), que integrou na paisagem urbana desta capital as bonitas praias, então ocupadas por sítios de coqueiros. Construindo esta longa via radial, favoreceu o aparecimento de modernas habitações à beira-mar e criou um importante respiradouro para a cidade, que atrai ricos e pobres em busca de descanso e distração, nos domingos e feriados. (1959, p.94).

Já quanto ao Lafayette, que durou de 1939 a 1969, seu prestígio é o maior de todos, no modernismo da cidade do Recife. Desde o renomado economista Souza Barros, ao poeta Joaquim Cardoso, os escritores Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, passando pelos cronistas da época Flávio Guerra e Danilo Fragoso, cronistas recentes como Lima, Menezes e Paraíso, até aos acadêmicos Sylvia Couceiro e Carlos Romeiro - este último autor de

106 O governo de Sergio Loreto, em Pernambuco, na década de 20, caracterizou-se pelo

investimento na modernização do Recife. (...) A ordem era urbanizar, civilizar, modernizar. Paris era o modelo. (Rezende, 1996, p.24).

dissertação de mestrado sobre o estabelecimento - todos são unânimes em por em destaque o ambiente, a clientela e o clima lá encontrados. Fragoso, Romeiro e Couceiro assim o descrevem.

Nunca talvez em nenhuma outra cidade do mundo, um depósito de cigarro teve sobre a vida da população implicâncias que a do Lafayette, da firma Moreira & Cia teve sobre o Recife. Ponto não de todos, mas de muitos encontros, ponto histórico de referência. (FRAGOSO, 1971, p.58-59).

A Rua do Imperador era a nossa Rua do Ouvidor. Para o arquiteto Hélvio Polito, professor da Universidade Federal de Pernambuco o Café Lafayette era a nossa confeitaria Colombo. (ROMEIRO, 2000, p.73).

Território quase exclusivamente masculino, o Lafayette tinha como clientes, intelectuais, políticos, comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais, estudantes,(...) O grupo composto pelos intelectuais era das mais diversas tendências, tanto literárias quanto políticas e religiosas. Apelidado por Souza Barros de ―Cenáculo da Lafayette‖, o grupo tinha, segundo ele, uma característica comum: a vontade de rediscutir os padrões estabelecidos, a curiosidade pelo novo, um anseio de renovação, numa época em que as polêmicas culturais e políticas fervilhavam. (COUCEIRO, 2007, p.4).

Exagero sem dúvida, mas indisfarçável anelo de imitação, inspirou José Emídio de Lima a compará-lo ao Café Pigalle, na expressão de George Ulmer:

―Na sua época ela (a esquina) fazia lembrar Pigalle :Cést une rue, c´est une place, c´est même tout um quartier. Car le reflet l´ame, la doucer et le esprit de Paris. Assim foi a Esquina Lafayette: refletiu a alma, a doçura e o espírito do Recife‖ (LIMA: s/data, p.114).

Com efeito, o Recife era uma festa. Conta a lenda que Hemingway cunhou a frase ―Paris é uma festa‖ ao viver lá, nessa mesma década. Ora, mutatis mutandi, Recife almejava ir à festa, nos anos 20 do século que passou.

A partir de uma visão da elite, da classe dominante, dos altos funcionários públicos, comerciantes do grande comércio e mesmo

segmentos da classe média, em especial jornalistas e intelectuais, o Recife seria uma cidade aprazível, organizada e moderna.

Outro evento marcante no âmbito cultural foi, ainda, o lançamento chamado do Livro do Nordeste, coordenado por Gilberto Freyre, a convite do intelectual Aníbal Fernandes, diretor do Jornal Diário de Pernambuco, que, no ano de 1925, comemorara 100 anos de existência. Trata-se de uma publicação em forma de álbum que reuniu colaborações dos mais diferentes escritores, de diversos Estados do Nordeste e do Brasil como um todo, versando, fundamentalmente, sobre aspectos e dimensões múltiplas da cultura, da economia e dos costumes da região nordestina. Dentre outros trabalhos lá publicados, há o festejado poema de Manuel Bandeira, intitulado ”Evocação do Recife”, que atendeu pedido do coordenador geral da publicação. Dentre os poemas de louvação ao Recife, é considerado o maior de todos. Algumas estrofes abaixo:

EVOCAÇÃO DO RECIFE107

Recife

Não a Veneza americana

A Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates

Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois Recife das revoluções libertárias

Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada

Recife da minha infância (....)

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo

Língua certa do povo

Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada (...) Rua da União... A casa de meu avô...

107 Manuel Bandeira (1886-1968) é pernambucano, natural da cidade do Recife. Na

juventude, mudou-se para o Rio de Janeiro. Viveu um longo período na Suíça para tratar-se de pneumonia. No Rio, conviveu com escritores e poetas, como Carlos Drumonnd de Andrade, Mário de Andrade, Vinícius de Moraes, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. É considerado um dos pais do Modernismo no Brasil.

Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade

Recife... Meu avô morto.

Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro

como a casa de meu avô. (BANDEIRA apud COUTINHO, 1983, p.42).

A transcrição acima não é despropositada. Remete para o dilema fundamental que essa época vivenciou, vale dizer TRADIÇÃO e MODERNIDADE. Em outras palavras, Pernambuco, mais particularmente o Recife, precisava preservar suas tradições, expressas no saudosismo de Bandeira, mas, ao mesmo tempo, sentia-se seduzido pelo novo, pela magia do moderno. O poema, produzido por um dos maiores modernistas do país, ao falar das tradições, da casa do avô e das ruas antigas, funcionou como um contraponto à ansiedade pelo futuro. Posição esta, de que Freyre compartilhava, como informa Rezende.

De fato, não se pode olvidar que a vertigem da mudança, que tomara conta de grande parte da cultura predominante, não era uma tendência sem contrapontos. Havia vozes discordantes, sendo uma delas, nada mais nada menos, do que a do então jovem sociólogo Gilberto Freyre, que como assinala Rezende (1996, p.23-24) “fez vários escritos contra a devastação

cultural provocada pelas mudanças modernistas desenfreadas‖. Assim, entende-

se que Freyre não era contra a modernização, mas defendia um equilíbrio entre o moderno e o tradicional.

Independentemente das visões de Bandeira e Freyre, o BAILE DA MODERNIDADE prosseguia. Daí porque, ninguém melhor do que outro poeta, que, por meio de um poema-síntese do Recife dos anos 20 e 30 documentou a época. Observe-se a “voz colorida das bandeiras‖, “os vapores‖, a “Tagarelice dos bondes e dos automóveis‖ e a oportuníssima expressão “beleza

católica do rio‖. É do mestre Joaquim Cardozo108:

108 Joaquim Cardozo (1897-1978) é do Recife, formado em engenharia. Foi

calculista de obras notáveis no país, dentre outras das obras de engenharia de Brasília. Seus poemas sobre o Recife são importantíssimos para se conhecer a cidade. Era frequentador assíduo do Cenáculo do Café Lafayette, a tal ponto que a, também,