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O SANGUE LUSO QUE CORRE NA CULTURA EMPRESARIAL DO RECIFE

5.1. RAÍZES LUSAS DO NORDESTE PROFUNDO

Trata-se de uma tarefa, simultaneamente fácil e difícil, em virtude de que muito do que corre no nosso sangue é português, logo seria muito simples afirmar que tudo vem de nossa tradição ibérica. Já, por outro lado, a tarefa torna-se difícil exatamente pelo fato de que distanciar-se e fazer uma análise crítica do dia a dia e por trás do aparente não é fácil.

Com efeito, difícil é trazer sinais consistentes de convencimento da afirmativa especialmente quando se sabe que nenhum interprete da formação do Brasil ousaria negar essas raízes do país, tanto que Buarque de Holanda (1970), transcrito na epígrafe, atribui a essa origem os fundamentos de nossa identidade.

Mas tanto esse autor, como Freyre (1996), Ribeiro (1995), Damatta (1979) e outros que enveredam por esse veio de investigação, não aprofundaram a discussão da influência nas questões de negócio ou de gestão e de administração.

A grande maioria dos estudos de administração, na questão cultural, baseia-se nas idéias básicas dos traços da personalidade do brasileiro extraídas de leitura das contribuições desses autores acima. Recentemente, há, porém, uma corrente de investigação na área de administração (TANURE, 2003) que explora o enquadramento desses traços da cultura brasileira ao modelo desenvolvido por Gerzt Hofstede. Vê-se, portanto, que coletar evidências na área empresarial não é uma tarefa fácil. É, porém, o que se fará a seguir.

Preliminarmente, cabe destacar que, diferentemente de outras regiões do país, o Recife, até meados do século XIX e mesmo em menor escala depois, foi uma cidade que recebeu poucos imigrantes78 e desses, mais da metade eram de origem portuguesa.

Para reforçar a afirmativa, pode-se perceber que, para o recifense qualquer estrangeiro de origem européia - alemão, francês, inglês, português - é tratado como Galego. Na verdade seria uma memória ancestral incorporada à linguagem cotidiana da forma como o imigrante português daquela região de Portugal foi tratado nos séculos passados79.

A acepção Galego no dicionário de Buarque de Holanda (1969) ratifica a presente interpretação quando se refere a um uso da expressão Galego no Nordeste pra tratar estrangeiro, sem distinção de

nacionalidade ou ainda qualquer indivíduo louro. E, esta identificação não é à

toa. Revela, sim, que o único estrangeiro com que o pernambucano conviveu foi mesmo o português. Certamente, como informa Rezende (2005) no capítulo anterior, nos anos da colonização, foram muitos os imigrantes provenientes dessa região.

Curiosa e coincidentemente, o dicionário de Candido de Figueiredo (1949) registra, também, um provérbio alentejano em Portugal para referir Galego como Aquele que é natural do Norte do país. Não há estatísticas, mas não existe, também, outra explicação para tal modo de o nordestino reconhecer o estrangeiro. Os dicionaristas acima dão as pistas 80.

78 A presença do africano, como já mencionada anteriormente, foi decisiva para

nossa miscigenação. No plano dos negócios, todavia, não há evidências de que essa raça tenha trazido contribuição relevante.

79 Outra memória ancestral local refere-se à presença dos judeus na cidade.

Estudos recentes têm evidenciado, por exemplo, que a primeira sinagoga das Américas foi instalada no Recife e daqui os judeus mudaram-se para Nova York. Diz a Revista MORASHA de abril 2000: “a descoberta de uma Mike em meio às escavações de uma

antiga sinagoga em Recife, datada do século XVII, é mais uma prova da forte presença judaica na cidade, à época. Com o objetivo de eternizar um dos capítulos mais fascinantes da história do povo judeu, inclui a restauração da Sinagoga Karl Zr Israel, a construção de uma réplica do templo e a implantação de um centro de documentação judaica‖. O restauro foi concluído e hoje a obra está aberta à visitação publica.

Disponível em htpp://www.morasha.com.br. Acesso em 24.03.2009.

80 A bem da verdade em ambos os dicionários há, ainda, o registro de uma

variação de acepção depreciativa feita pelos brasileiros em relação aos portugueses. Essa não é, todavia, uma conotação típica do Nordeste. (HOLANDA, 1984, p.773),

Daí ser importante que se situem as raízes profundas do Nordeste, para se perceber a secular penetração dessas raízes, como o substrato essencial de grande parte da cultura regional.

5.1.1. NORDESTE PROFUNDO, NORDESTE GALEGO

O Nordeste profundo é galego, é português. Se aqui foi a região do ciclo do açúcar, se aqui foi o lócus privilegiado onde a economia criou raízes e prosperou, foi aqui, no Norte Agrário, além da Bahia e do Rio de Janeiro, que a cultura portuguesa lançou suas primeiras e definitivas bases. Para reforçar mais ainda esses antecedentes e sua interdependência com o que se chama de Nordeste profundo, é bom lembrar que no período das grandes migrações, o Norte agrário não foi procurado pelas demais etnias que demandaram o Brasil.

Muito recentemente, um jornalista americano - invocado nessa oportunidade exatamente por ser estrangeiro e ser capaz de se distanciar melhor - fez observação convergente com a posição ora defendida, nos seguintes termos81:

Foi no Nordeste que as três principais correntes de identidade nacional brasileira- europeus, africanos e ameríndios se encontraram pela primeira vez e formaram a mistura que faz do Brasil o que ele é hoje em dia. E como o Nordeste é mais pobre do que outras regiões do país e foi historicamente mais isolada dos grandes centros cosmopolitas de cultura do Sul, mais urbanizado, a cultura da região tem sofrido menos intervenções de influência de fora, ou seja, o Nordeste é, ao mesmo tempo, o berço da cultura brasileira e seu melhor laboratório. (ROTHER, 2007, p.34).

Já, pelo vocativo que compõe o gentílico da cidade Olinda, não por acaso cercada de sete colinas como Lisboa, já por um dos primeiros

81 Deu no New York Times é fruto das experiências vividas pelo correspondente

norte-americano Larry Rohter durante quase quatro décadas passadas no Brasil.

Enviado do New York Times ao país, entre 1999 e 2007, o jornalista já havia desempenhado a mesma função no final da década de 70, e no começo dos anos

80 na revista Newsweek e no jornal The Washington Post. Ao longo desses anos, cruzou o Brasil e entrevistou de presidentes a pessoas anônimas. Só pelo jornal nova-iorquino, publicou mais de quinhentas reportagens. Disponível internet htpp//www.objetiva.com.br. Acesso em 23.03.2009.

poemas produzidos no Brasil na língua portuguesa que a rebatizou de Nova Lusitânia, já pela escolha do sítio para criar a vila, já pelo traçado de suas ruas, vielas, becos, ladeiras e travessas e já pelos nichos, conventos, oratórios e igrejas, os sinais do engenho e da arte da presença galega falam muito alto. Fé, devoção e associativismo, que prosperaram à sombra das suas igrejas, conventos e irmandades, não permitem a ninguém ignorar o grosso cabedal de tradição social que aos olindenses foi repassado. Em visita a Olinda, no ano de 1954, o Reitor da Universidade de Coimbra, Professor Maximiano Correia teve sua atenção para esses mesmos fatores de identidade e comentou:

Toda a cidade de Olinda é de um pitoresco extraordinário, não foram os coqueiros e as bananeiras, julgaríamos numa terra portuguesa, pela arquitetura de suas casas e igrejas, pelo traçado das ruas, pela fisionomia das gentes. (1954, p.296).

No tangente ao Recife, a exceção da presença breve marcante dos batavos, a geografia e a toponímia da cidade são indisfarçavelmente lusitanas. Dois dos seus bairros mais importantes - Santo Antonio e São José - resultados da expansão da Ilha do Recife, rendem homenagem a dois santos da tradição religiosa lusitana.

Mas, as raízes são mais fundas e as conexões com o passado luso são fortíssimas. Tadeu Rocha, pesquisador recifense nos ensina no seu Guia da Cidade do Recife que esta imagem que dá nome ao bairro é nada mais nada menos do que o Santo Antônio de Lisboa padroeiro de Lisboa. Registra Rocha:

Com a demolição, em 1917, do Arco de Santo Antônio, que ficava junto à extremidade ocidental da ponte Mauricio de Nassau, a imagem de pedra do Santo de Lisboa foi recolhida a esta igreja - Igreja do Espírito Santo, no bairro do

mesmo nome. (1959, p.97, grifo nosso).

Um simples exercício mnemônico sobre as denominações das ruas e logradouros do Recife ainda hoje existentes indicará, sem sombra de dúvida, a presença lusitana. As Ruas da Baixa Verde, da Concórdia, da Saudade, da União, de Santa Rita, a Rua Direita, a Estreita e a Larga do Rosário, Rua das Hortas, das Florentinas e, da mesma maneira, os Pátios do

Livramento, do Terço, do Carmo, de São Pedro dos Clérigos e, do Mercado e da Penha estampam, de forma eloquente, fortes influências da cultura urbana portuguesa que quase passam despercebidas aos menos avisados.

Assim como em Olinda, na órbita e no entorno de muitas das igrejas, paróquias e ordens foram tecidas complexas relações sociais, culturais, políticas, e porque não dizer, econômicas, haja vista as irmandades do Rosário dos Pretos fundada na Igreja do Rosário dos Pretos e a Irmandade dos Pardos, criada na esfera da Igreja de Nossa Senhora do Livramento, sem esquecer a muito influente Santa Casa de Misericórdia. Por fim, convém lembrar que o Recife acolheu durante todo o período colonial e penetrou na nossa cultura, a trasladação, diretamente de Portugal, incólume no conteúdo e na forma, as Ordens Primeiras e Terceiras dos franciscanos, carmelitas e assemelhados. 82

A essas tradições somaram-se as festas e danças dos ciclos natalinos, de São João, Santo Antônio e São Pedro cujas cerimônias, ritos, procissões e danças refletem transplantação direta do Portugal rural e Nortenho. Como se percebe, nossa gastronomia, danças, designação dos sítios, o tecido e traçado da nossa formação urbana, provêem diretamente de Portugal e integram os arquétipos da cultura do Nordeste profundo.

Dessa forma, o Nordeste, Pernambuco e o Recife, são depositários de uma tradição portuguesa de séculos, tradição esta que se irradia sobre diversos aspectos da vida da sociedade, porque como disse Freyre:

O português se tem perpetuado, dissolvendo-se sempre noutros povos a ponto de parecer ir perder-se nos sangues e nas culturas extranhas (...) passados séculos os traços portugueses se conservam nas faces dos

82 O autor em visita recente à Ordem Terceira dos Franciscanos, na outrora, mais

do que importante Rua da Cadeia - hoje Rua Imperador Pedro II - conferiu a existência de manuscrito dos primeiros irmãos afilados à Ordem, em documento de 1695. Em setembro de 2007, o autor teve, por coincidência, a oportunidade de visitar em Guimarães, Portugal, a Ordem Terceira de lá e sua complexa rede de capelas e abrigos. Ouviu do Dr. Belmiro Jordão, Ministro da Ordem, que o recebeu, várias explicações inclusive acerca do mecanismo de colegiado das decisões da agremiação. Mais outra coincidência. Na visita que o pesquisador fez à Ordem do Recife, era véspera da reunião da diretoria e a mesa para o encontro estava toda arrumada, dentro de um cerimonial semelhante àquele que o Presidente da Ordem de Guimarães lhe transmitira, em setembro. Tudo igual. Aqui, copiou-se e reproduziu-se.

homens de côres diversas, na physionomia das casas, dos moveis, dos jardins, nas formas das embarcações, nas fôrmas dos bolos. (1940, p.4).

Ora, por que, nessa caudalosa transferência de cultura, a dimensão da cultura dos negócios ficaria ausente?

Ela foi, obviamente, também, objeto de transmissão. Logo convém que seja feita uma investigação para apontá-la.