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MOVIMENTO TERCEIRO (BAIÃO)

ÓPERA PRA QUE TE QUERO?

Doidice! Loucura! Foram as palavras que soaram nos quatro cantos de Fortaleza quando os “operários nordestinos” lançaram-se no “navegar é preciso” para fazer a ópera. Era como construir a embarcação em alto mar no meio de uma tempestade. A nau era, na verdade, um coral e dele saiam solistas para os papéis principais e secundários que iam recebendo texto musical de Tarcísio Lima.

Tarcísio vinha de uma constante colaboração com Izaíra e, mesmo hesitante no início, aceitou o desafio de traçar o mapa-partitura para a viagem da nau que ela e Abel haveriam de comandar em busca de um caminho das índias para as índias e índios.

No primeiro semestre de 1985, nosso caro amigo Paulo Abel me procurou e fez sua irrecusável proposta de uma obra operística, sem definição de tema, de libreto, etc... Falei pra ele de minhas limitações, mas ele não teve dificuldade em me demover da hesitação, porque, afinal de contas, eu de pronto me apaixonei pela idéia de um trabalho assim. Bem, depois da aquiescência do futuro compositor, o primeiro passo foi convidar-contratar aqueles que iriam nos dar o argumento e um libreto propriamente dito, respectivamente Eugênio Leandro e Oswald Barroso. Os dois trabalharam em meados de 85, de maneira que recebi o libreto no final do ano (MATOS, 2003, p. 67).

A colaboração intensa de Tarcísio Lima com Izaíra nos anos oitenta traduziu-se em vários arranjos musicais escritos para o coral da UFC. Provavelmente por estar habituado à escrita para quatro vozes mistas (soprano, contralto, tenor e baixo), Tarcísio, juntamente com os autores do texto, acabou conferindo mais um quê de modernidade para a ópera: a presença constante do coro dialogando com os demais personagens.

Na perspectiva da exeqüibilidade da peça, manter o coro em atitude cênica, ativa, por quase todo o decorrer de uma obra, como uma ópera em dois atos, como é o caso de Moacir das Sete Mortes, é um risco, pois quanto maior o número de pessoas em cena, maiores são as complicações para se definir a distribuição e movimentação dessas mesmas pessoas no palco.

A moderna ópera nordestina acaba, pela presença constante do coro, aproximando-se de outra antiga forma musical vocal: a cantata94 é, nesse

aspecto, a modernidade nascida pela aglutinação e justaposição de duas formas antigas. Será isto possível?

“A modernidade é essencialmente uma ordem pós-tradicional” (GIDDENS, 2002, p. 25). A ópera-cantata, operando a subversão, justaposta aglutinação de velhas heranças musicais com suas “formas dicotômicas” - solo e coro -, funcionava bem no sentido metodológico da formação da tripulação da nau navegar é preciso: nela todos cantavam e cantavam muito.

A insistência em manter o coro em cena, estabelecendo uma relação intensa dos solos com o coro que, como já dissemos, não se observa muito comumente no repertório operístico, alimentava o trabalho do grupo que digeria coletivamente a ambrosia que até então estava restrita às bocas do Olimpo local com seus Ganimedes e Hebes de cá: amargo paladar.

É possível afirmar que esta presença constante do coro em cena tenha ocorrido em conseqüência dos espetáculos que o Coral da UFC passou a montar a partir do momento que Izaíra Silvino Moraes assumiu sua regência. Tal estrutura de espetáculo coral permanece sendo aprofundada pelo Coral da UFC, que continua buscando e realizando “espetáculos dinâmicos”, vivos, nos quais a música coral é amparada pela expressão corporal dos cantores que, nos últimos

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Trecho para uma ou mais vozes, com acompanhamento instrumental, às vezes com coro também. O texto, em vez de históriado, descrevendo um fato dramático qualquer, é lírico, descrevendo uma situação

anos alcançou a dança. Além disso todo o aparato cênico e de iluminação conferem às montagens de espetáculo do Coral da UFC algo de novo, inédito: “quase uma ópera”95.

Não penso que que seja verdade que, como sugerem alguns, a era moderna seja uma era marcada por alta ansiedade em contraste com épocas anteriores. Ansiedades e inseguranças afetaram outras épocas além da nossa, e é provavelmente pouco justificável supor que a vida em culturas menores e mais tradicionais tenha um teor mais equilibrado que o de hoje. Mas o conteúdo e a forma das ansiedades predominantes certamente mudaram (GIDDENS, 2002, p. 37).

O desejo ansioso que gerava a ópera nordestina era multifacetado. Desejava Paulo Abel, ansiosamente, reconhecer-se, voltar a si mesmo, ao seu torrão natal como um ícone do canto lírico mundial e, ao mesmo tempo, entrando em consonância com a ânsia do desejo de Izaíra Silvino Moraes, ansiavam, juntos e em conjuntos, erradicar a pobreza estético musical fortalecendo o som das plagas fortalezenses.

Nós, navegante-operários, desejávamos nos tornar músicos tocantes e cantantes e buscávamos ali aprender o que nos fosse oferecido. Antes de querer colocar o Ceará no seleto mundo da música lírica, queríamos nos colocar no mundo: buscávamos, asilados96, espaço jovem no asilo-ancião.

Para alguns aquela ópera era sinônimo de erudição, de status. Outros já pensavam aquela nordestina obra para além das futilidades narcisistas e exibicionistas (falso virtuosismo)97. Na confluências dos desejos, das ânsias,

operava a escola Moacir das Sete Mortes e querer sete vezes morrer era pleitear sete vidas para viver: sete personagens para interpretar, sete notas para cantar.

A maioria dos integrantes do elenco era de jovens. Jovens que não haviam tido educação musical antes de surgir a proposta ópera-escola, e nestes jovens,

95Expressão utilizada por um espectador após uma récita do espetáculo “Gonzagas” em outubro de 2006. 96

No Ceará “asilado” pode ser um indivíduo que tem intenso desejo por algo.

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Falso virtuosismo é prática de exibir, por exemplo, timbre e técnica vocal sem que a voz seja colocada a serviço da realização musical.

dentre os quais me incluo, estava o desejo de escapar da pobreza cultural e encontrar um espaço de realização subjetiva, sonora: um espaço que nos legitimasse como “artistas da vida, equilibristas da fé” (GONZAGUINHA,

A ansiedade desencadeada pelo Projeto Ópera Nordestina não tinha precedentes até o momento do início de sua implantação. Ali foi concedido o direito, aberto o espaço para que muitos ansiosos por pouco pudessem ansiar por mais um pouco, um pouco mais além do que os seus próprios referenciais estéticos permitiam ansiar. Ali Não estava posta apenas a ansiedade ancestral por ascensão social ou o desejo atávico pelo estrelato. A Ansiedade era, essencialmente, de ordem ética e estética. Buscava-se trazer para o “Hades cotidiano” o vinho musical do canto, da ação: o éter do sonho. Um sonho que antes daquele momento não podia ser imaginado como algo realizável e que foi se tornando real e modernamente ansiado, na medida em que os doze trabalhos operísticos foram sendo realizados pelo Hércules adormecido em cada pequeno David cantante que, ao acordar, descobria: Golias dormia.

Nasce, no último momento da cena 1 da ópera, seu protagonista: Moacir. Filho de Iracema e Martin, filho do ódio, filho da dor.

Se num momento histórico era a cantata que inspiraria, de algum modo, a ópera, surge aqui, com o nascimento de Moacir, o aspecto mais “barroco” e, por isso mesmo, moderno de toda esta “epopéia”: Moacir, o personagem, foi escrito para Paulo Abel e Paulo Abel era, como se costumava dizer, um “castrato natural”, ou seja: doidice! loucura! Ou, como diria Eleazar de Carvalho98, “uma

voz imoral, uma aberração” (MATOS, 2003, p. 11).

O nascimento de Moacir é anunciado pelo coro nos últimos compassos da cena um. A música apóia-se em fragmentos do Hino do Ceará, retomando a moderna ansiedade pela identidade que se faz buscar, neste aspecto, na obra de

um autor do século XIX: Alberto Nepomuceno, autor do hino do Ceará. Assim, dialeticamente Moacir é o “anjo barroco” que se inspira em Alencar e Nepomuceno, românticos e nacionalistas, para contar contemporaneamente, no apagar das luzes do século XX, e no acender das candeias do século XXI, a história do Ceará.