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ATO 4 NOS BASTIDORES

CRESCEI-VOS E MULTIPLICAI-VOS

A gente não queria bolsas pra cantar. Nós abolimos essa idéia, nós não queríamos coralistas que viessem cantar por causa da bolsa. Nós queríamos coralistas que viessem cantar porque gostavam e queriam cantar, porque era uma atividade gostosa. (...) E esse "Projeto de Multiplicação de Corais", também foi um projeto espetacular. O aluno que era do coral, fazia seleção pra ter bolsas, através da apresentação de um Projeto de Trabalho, e ir para as escolas criar coral. Eles se reuniam comigo duas vezes por semana pra receber orientações sobre como fazer coral. Eles faziam o coral que eles queriam, porque eu não tinha tempo. Não era uma escola. Eu não estava formando regentes. Eu queria que eles tivessem a experiência e a alegria de botar o povo pra cantar, a partir da experiência que eles tinham no Coral da UFC. Então o método era deles, o repertório era deles, o jeito de ensinar era deles, agora eu mostrava como eles deveriam planejar a atividade. As dificuldades a gente ia superando através de conversas. Eu ia assistir as aulas deles pra eu aprender e eu ensinar pra eles também. (...) E foi uma atividade tão interessante que quase todos os bolsistas dessa atividade viraram regentes depois. Então eu posso dizer que no Coral da Universidade eu nunca ensinei nada. Nunca dei aula para ensinar como era que se regia. Nunca dei aula para ensinar o que era teoria. Não! Nunca dei! Mas todo mundo estudou. Foi interessante140!

Minha integração ao Projeto de Multiplicação de Corais que em 1984, ano de minha entrada no grupo, já estava funcionando plenamente, não se deu, obviamente, de imediato e o percurso até o posto de multiplicador de corais foi bem interessante.

No primeiro semestre como coralista do Coral da UFC, eu ainda estava cursando o terceiro ano do segundo grau: fazia o curso profissionalizante de Técnico em Contabilidade. Todas as manhãs eu ia para a escola, gostava de estudar e do meu rendimento escolar dependia a minha permanência no emprego de office-boy na Caixa Econômica Federal. Minhas tardes eram de perambulações pelas ruas do centro de Fortaleza, como dizia minha mãe, “fazendo mandados”. De noite eu estava no Coral.

O ambiente do Coral era “ambiente universitário”. A grande maioria dos coralistas era de estudantes universitários, as discussões eram sobre assuntos do cotidiano da universidade e dos movimentos sociais. Havia também a inserção do Coral nos movimentos artísticos daquela época na qual, dentre outros eventos se destacavam os festivais de música.

O Banco do Nordeste do Brasil, no ano de 84, promoveu um festival e duas das composições concorrentes tiveram a participação do Coral da UFC: “Meu Padim” (de Amaro Pena) e “Cheia” de Eugênio Leandro, ambos ex integrantes do Coral da UFC. Foi neste momento, nos ensaios para o festival, que conheci um dos autores do libreto da ópera. “Cheia”, a música de Eugênio Leandro, recebeu um luxuoso arranjo para orquestra de cordas e coral elaborado por aquele que seria o autor da partitura da ópera, Tarcísio Lima .

Para a execução da parte instrumental do arranjo foi convocada a Camerata da UFC. Ensaiar com a Camerata da UFC, sob a regência de Izaíra Silvino Moares, foi o meu primeiro momento com uma orquestra.

Em “Meu Padim” a interferência do coral era apenas no refrão141 fazendo

uma espécie de backin vocal à quatro vozes. Normalmente as interferências dos cantores e/ou cantoras que apóiam um solista de música popular são realizadas em uníssono, ou seja, todos cantam juntos sem harmonizações vocais. A partir da vivência no Coral da UFC, alguns compositores jovens sentiram o desejo de vestir suas músicas com elaborações vocais não tão simples.

Anos depois, em 1996, o Sesc-Ceará142 comemorando seus cinqüenta

anos de existência, promoveu uma mostra competitiva de música. Já estabelecido na cidade como regente e arranjador, escrevi uma série de arranjos vocais para o acompanhamento das composições finalistas que se apresentaram

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“meu padim milagreiro és primeiro em minha oração.”

em duas noites no palco do BNB Clube143, no mesmo local onde cantamos

“Cheia” e “Meu Padim”, doze anos antes. Seis, das doze composições que chegaram à final da mostra, trazem meus arranjos escritos para um trio vocal formado, então, por Vídia Cristina (Soprano), Giselle Castro (Contralto) e Luis Carlos Prata (Baixo).

A estrutura dos arranjos para o trio era quase óbvia. Considerava o solista como uma voz a mais no coro e construía o acompanhamento do trio de forma que a voz do solista não ficasse escondida dentro da harmonização vocal. Um bom exemplo dessa arquitetura está na marcha rancho “Boizinho”, de Gigi Castro e Ângela Linhares. Gigi Castro, que também fora integrante do Coral da UFC, interpretou a composição e cantava o refrão com o trio fazendo as vezes de soprano, enquanto o trio apenas completava a formação que seria de um quarteto vocal clássico.144 Há, porém, dois aspectos relevantes: a voz de tenor foi

substituída por um contralto (Giselle) e o baixo (Luis Carlos Prata) canta imitando um surdo.145 Colocar o baixo para reforçar o caráter de marcha foi mais uma lição

aprendida com Tarcísio José de Lima, não em uma aula sobre criação de arranjos, mas cantando uma marcha por ele arranjada: “Noite dos Mascarados””, de Chico Buarque de Holanda.

Izaíra afirma que nunca deu aulas para os multiplicadores de corais. Por certo, ela nunca deu aulas formais, mas o ambiente de convivência musical, as experimentações musicais em forma de arranjos brasileiros para música brasileira, as atuações no palco do Teatro Universitário, o engajamento do grupo nos movimentos estéticos-sociais eram, sem sombra de dúvidas, as melhores aulas que um graduando Educação Musical (de hoje, ontem e sempre) em poderia ter.

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Clube dos funcionários do Banco do Nordeste do Brasil.

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Soprano, contralto tenor e baixo.

É como se toda a privação de uma formação musical sólida (estabelecida em termos da pedagogia musical que se baseia no repertório europeu) a qual, por limitações financeiras e questões sociais eu não pude ter acesso na idade correta, me fosse dada, compensada, em forma de uma Educação Musical Viva e vívida, vivida a partir do momento em que entrei no Coral da UFC. Minha postura diante da Educação Musical se delineou ali. Eu tinha-tenho consciência plena do que era querer estudar música e só poder alcançar isso pouco antes de completar dezoito anos, pouco antes de fazer o vestibular, dentro de um grupo cuja a maior riqueza, talvez, fosse a de não ter “aulas”, mas sim MERGULHOS.

Mergulhávamos em sons e sonhos. Mergulhávamos na realidade real, vislumbrando uma realidade sonhada. Mergulhávamos em nós mesmos, em nossas individualidades, possibilidades de ser música. Éramos afoitos. Não queríamos escafandros. Queríamos sentir a música que, no fundo, era o oxigênio que nos alimentava.

Nos exercícios de mergulho do Coral da UFC, tudo era intenso e sincero. Desta forma havia, certamente, momentos de muitos atritos quando as sinceridades todas emergiam. Izaíra é uma mulher forte, leonina, de gênio e voz tonitruantes. Muita gente abandonou os mergulhos porque teve medo de enfrentá-la. Outros, talvez os mesmos, por terem medo de enfrentar a força que residia dentro deles, o vulcão adormecido, a “vontade de potência”, também preferiram ficar na praia a molhar os pés: “os mergulhos retidos causam, por vezes, estranhas câimbras” (CAMUS, 1997)

No ano em que este brasileiro completou dezoito anos, ele se apresentou para o Serviço Militar. Naquele 1984 vi muitos jovens na mesma fila de exame médico no exército desejando a aprovação para terem um soldo. Eu, mesmo sem emprego por ter alcançado a idade em que já não podia ser “menor trabalhador”

na Caixa Econômica Federal, queria continuar com a música e tive que discutir seriamente com o médico que queria me aprovar.

Penso que tal médico se chamava Sidney e este, alguns anos antes, numa manhã, dentro da brasília 73146 que meu irmão Dico comprara com seu primeiro

salário de dentista do hospital Exército, combinou com ele, à revelia da minha presença no banco de trás, que me aprovaria no tal exame físico.

Havia uma certa tendência para a carreia militar dentro de minha casa que, na verdade, não foi realizada por nenhum dos filhos. Um dos sonhos de meu pai era colocar-me no Colégio Militar e aí, vale a máxima: “Deus escreve certo por linhas tortas”. A falta de dinheiro para uma educação musical mais rigorosa também foi a falta de dinheiro que me proporcionou uma educação mais livre, não militar que, no tempo certo, tornou-se musical por ter sido música desde seu princípio nos acalantos cantados por Seu Matos e Dona Raimundinha.

Lá naquela manhã, naquela brasília encardida, cujo branco já era um pálido amarelo, eu pensei comigo mesmo que demoraria muito tempo até o ano do brasileiro completar dezoito anos, mas o tempo não existe ... hoje entendo Santo Agostinho.