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ATO 3 ÓPERA NO BRASIL

COMO OPERA A ÓPERA

Talvez neste protético ponto tético não seja tétrico, nem, tampouco, trágico, elucidar o funcionamento de um espetáculo operístico, afinal, em nossa realidade, tais espetáculos são raros o que faz com que sua arquitetura dramático-musical seja algo estranho aos não iniciados. De acordo com Andrade (1989), ópera é um

Drama cantado com acompanhamento feito por instrumentos. Combina música, poesia, teatro e arte visual (...) Os primeiros melodramas, como eram então conhecidas as óperas, eram dirigidas exclusivamente às cortes, espetáculos para os príncipes, sempre representados dentro dos palácios (p. 370).

Andrade (1989) ainda alerta para o fato de que na estrutura musical da ópera se distinguem dois tipos de canto: o da ação, relacionado aos recitativos e o da meditação, que se relacionaria com a ária. Para melhor explicitar esta “dualidade cantante-operante”, recorremos a Somerset-Ward (1998). Em sua História da Ópera, este autor esclarece pormenorizadamente o surgimento do drama cantado, esclarecendo que a semente geradora do gênero operístico foi o recitativo. De acordo com Somerset-Ward,

Uma das manifestações artísticas que intrigava os membros da

Accademia degli Alterati120 era a representação das peças da Grécia

Antiga. Eles haviam lido os trabalhos, na época, recentes, de Girolamo Mei, um estudioso da cultura clássica que viveu em Roma e tomaram como fato a suposição de que as grandes tragédias da antiguidade haviam sido escritas para serem cantadas e não faladas. Era, o drama clássico, a forma de arte que tais homens tentavam redescobrir (...) Porém não há evidências de que as tragédias fossem inteiramente cantadas. De qualquer maneira, os cavaleiros florentinos estavam discutindo tal questão desde 1576 em um grupo (uma espécie de subgrupo dos alterati), presidido pelo conde Giovani de Bardi (...)A maior preocupação desse grupo de florentinos era o drama (teatro). Desejavam fazer uso da música de maneira a criar o dramma per musica, pois acreditavam que mesmo um bom texto e uma boa atuação dramática, a correta declamação das palavras, não era capaz de suscitar todas as emoções inerentes

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“Academia dos alteradores”: Agremiação criada em Florença, cuja função era promover a alteração, a renovação, o crescimento de seus próprios membros “através do cultivo do falar elegante, da boa conduta e do estudo das artes e das ciências.” (TURNER, 1983).

ao grande drama. Todavia havia um problema: O estilo musical que prevalecia no final do século XVI era polifônico121 (...) Geralmente se credita a solução desse impasse gerado pela primazia da polifonia a Vicenzo Galilei122, teórico da música e compositor de peças para alaúde. Galilei era, dos membros da camerata123, o que estava mais

familiarizado com a música grega e latina e com os estudos de Girolamo Mei. De acordo com Pietro de Berdi, Vicenzo Galilei foi o primeiro a articular o novo estilo de música a partir do qual nasceria a ópera. Este era tanto monódico quanto polifônico, consistindo de uma única linha – uma série de notas que o ator-cantor usava para declamar o texto com um acompanhamento improvisado, acompanhamento este que consistia de nada mais do que ocasionais acordes realizados ao cravo ou alaúde. Numa única palavra: recitativo. – Uma linha recitada elaborada de modo a dar ao texto um impacto extra, criando um grande drama (1998, p. 15-16).

Portanto, antes de ser música, a ópera era um drama teatral que recorria ao canto para conferir mais densidade interpretativa ao texto. Neste sentido surge uma semelhança do recitativo dramático dos primeiros momentos da ópera com o estilo recitativo religioso da Idade Média: o Canto Gregoriano. Tal como na ópera, o canto-oração não pretendia ser música tal como a compreendemos hoje, mas, acima de tudo, um recurso de elevação espiritual e, para tanto, não podia ser melodicamente muito rebuscado.

A simplicidade monótona, circular, do canto religioso da idade média buscava um estado de silêncio interior no qual a palavra rezada fosse evidenciada pela entoação dos sons musicais. Nos primórdios da ópera, quando esta ainda era essencialmente teatro com música, a palavra deveria vir em primeiro plano, inclusive imprimindo seu próprio ritmo de execução, daí o termo “recitativo”, que quer significar a execução musical, livre de um ritmo cronométrico-musical, no qual o texto ganha em clareza, eloqüência e dramaticidade.

121 A polifonia consiste na superposição de várias linhas melódicas o que dificultava, sobremaneira, a

compreensão do texto que se buscava sublinhar, reforçar, através de uma ação musical.

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Pai de Galileu Galilei.

123. Termo derivado da palavra camera que significa aposento ou sala privada, na qual os membros do grupo

se encontravam. (KATZ, 1986) levanta a possibilidade de que o termo, no contexto da época, pudesse ser traduzido como “academia invisível”. A Camerata Fiorentina foi um grupo ou agremiação criada nos moldes dos Alteratti.

Rapidamente surgiu ao lado do recitativo a ária. Em contraste com a intenção de evidenciar o texto, a ária surge como uma maneira de evidenciar a música, o canto, o virtuosismo do executante-cantante. Assim, na estrutura da ópera barroca, definiu-se que a ação, a fala do personagem que proporciona o entendimento do enredo é realizada primordialmente através de recitativos, enquanto o raciocínio do personagem, suas divagações psicológicas que justificam sua ação são expostas ao público através da ária, entendendo-se que tal “subtexto” é secundário para a compreensão da trama operística, podendo assim ser usado para a exibição virtuosística do cantor.

Um típico exemplo da articulação recitativo-ária é aquele que encontramos em Carmem124, de Geroges Bizet125. No primeiro ato, ao ser alvo do assédio de

vários soldados que rondam a fábrica de cigarros na qual trabalha, a personagem recita:

Quando os amarei?Na verdade não sei Talvez nunca, talvez amanhã...

Mas hoje não.. isto é certo.!126

E logo após o recitativo ela explica, como que falando para si mesma, numa ária em ritmo de habanera127 suas razões:

O Amor é um pássaro rebelde Que ninguém pode aprisionar É inteiramente vão chamá-lo,

Se lhe convém recusar.128

Em nosso Moacir das Sete Mortes também encontramos esta mesma articulação entre recitativo e ária. Por exemplo, na cena quatro, durante um sarau

124 Ópera em três atos que conta a trágica história da bela cigana Carmem que envolvida com dois homens

acaba assasinada por um destes.

125

Compositor francês nascido em Paris em 1838. A ópera Carmem é considerada a sua obra prima.

126 No original: Quand je vous aimerai? ma foi, je ne sais pas./ Peut-être jamais, peut-être demain!/ Mais pas

aujourd’hui... c’est certain.

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Canção e dança introduzidas em Cuba, pelo negros africanos que se tornou muito popular na Espanha e América Latina. Compasso binário, 2/4, primeiro tempo especialmente acentuado, andamento lento, em fragmentos de quatro, oito ou dezesseis compassos (ANDRADE, 1989 p.253)

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No original: L’ amour est un oiseau rebelle/ Que nul ne peut apprivoiser/ Et c’est bien en vain qu’on l’apelle,/S’il lui convient de refuser.

no qual estão presentes Bárbara de Alencar e seus Filhos, uma “sinhazinha” entoa um fado, o que faz com que Dona Bárbara dirija-se ao Coronel, proprietário da casa na qual se realiza o sarau, sugerindo: “que tal Coronel taverneiro de um cantar mais brasileiro?”

Respondendo à sugestão da convidada, o “Coronel Taverneiro” também recita:

“que belo o seu brado Dona Bárbara, espero ser do agrado do Capitão-mor.

Dando prosseguimento ao desenrolar da trama, sem esperar a anuência

do Capitão-mor, Dona Bárbara canta uma ária, na verdade, um choro de duas partes (A e B com repetição da parte A: A-B-A), que lhe serve muito bem para falar de um personagem que vive a saborear os encantos de sua pátria129.

A primeira parte da composição (A) está no tom de lá maior e a segunda (B) em sua tonalidade relativa: fá sustenido menor. Este choro funciona principalmente para demonstrar as qualidades vocais de quem o interpreta, uma vez que exige muita agilidade na execução da linha melódica que contém cromatismos130, arpejos131 e passagens com notas muito agudas. Tarcísio Lima

faz da ária européia um choro e opera a brasilidade brejeira sem se afastar da

129 (Bárbara): Nem a saudade, nem a solidão, nem a dor do abandono o abatiam. Dele era o nativo sol de sua

pátria, a loira espiga e o verde canavial

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Passagens melódicas compostas por intervalos de meio-tom.

função desta: mostrar o talento do cantante e a competência do compositor. Dona Bárbara canta:

(A) - Nem a saudade nem a solidão Nem a dor do abandono o abatiam

Dele era o nativo sol de sua pátria A loira espiga e o verde canavial

(B) - Nem a saudade nem a nostalgia do amor perdido Sua alegria desbotava

Dele era a terra, o gado e a branca luz Da branca lua que da serra aparecia

(A) - Nem a saudade nem a solidão Nem a dor do abandono o abatiam

Dele era o nativo sol de sua pátria A loira espiga e o verde canavial

Como prova da afirmação, de que a ária pode ser um choro – o chorinho de um chorão – inserimos a íntegra chorosa operada por Tarcísio Lima e ei-la aqui: