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ATO 4 NOS BASTIDORES

QUADRILHA CORAL

Após um noite de muita cantoria no Jazz Blue Bar no ano de 1994,

vínhamos, Aluísio Gurgel e eu, descendo a Avenida da Universidade em

direção a Faculdade de Direito da UFC. Nosso destino final era a casa de

Aluísio onde eu deveria deixa-lo aos cuidados de Dona Zelinda, sua mãe,

antes de dirigir-me, já sob a luz do sol, para a minha casa.

Naquela noite, o amigo violonista bebera um pouco além da conta e andava em estado de embriaguez e desordem sem perceber direito por onde estava indo. Eis que, “de repente, não mais que de repente” (REGINA, 1974) “Alu”, bate com a cabeça num orelhão que havia em frente ao conservatório de música, cai sentado na calçada e, sonolentamente, num esforço quase extremo, abre os olhos e me pergunta: “como foi que eu cheguei aqui?” Andando, ora! Foi a minha resposta.

A parada forçada, ali naquele local, deu-me a oportunidade de dar uma olhada se o resultado da seleção para o Coral da UFC já estava afixado em frente ao Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno. Lembro-me claramente o que meu nome era o segundo na lista de nove aprovados. Naquele ano o número de inscrições para o Coral havia passado a barreira dos cem inscritos.

A procura pelo Coral da UFC aumentava vertiginosamente desde 1981, quando Izaíra Silvino assumiu a regência do grupo. O grande atrativo estava no repertório que a maestrina escolhia para trabalhar, totalmente constituído de música brasileira e na forma como este era executado.

O repertório desenvolvido pelo Coral da UFC era composto em sua grande maioria de música folclórica nordestina e popular brasileira, executando também, em alguns momentos, peças do folclore latino americano. A proposta do grupo era atingir um canto universal, partindo do regional. Ao trabalhar com esse repertório, Izaíra Silvino percebeu que a impostação vocal fechada e escura, utilizada na

execução do repertório europeu, não iria satisfazer plenamente as sutilezas de articulação e timbre exigidas pelas canções nordestinas e brasileiras, sendo necessário descobrir um novo “jeito” de cantar (Schrader, 2002, p.161).

O novo jeito de cantar do Coral da UFC consolidar-se-ia não apenas através da opção pela música brasileira e pelo jeito brasileiro de cantar buscado na preparação vocal dos cantores do Coral da UFC. A exploração do espaço cênico, da movimentação do coral no palco em espetáculos que cumpriam temporada, trazia também novos elementos estéticos para a cena coral de Fortaleza.

Os recitais apresentados pelo Coral da UFC não seguiam os modelos convencionais até então vistos na cidade, onde apenas se cantava um conjunto de canções previamente selecionadas e ordenadas. Eram, na verdade, espetáculos musicais com um nome próprio sobre um tema elaborado na maioria das vezes a partir de questões sociais e regionais (...)A síntese de todo o trabalho vocal, corporal, cênico e de pesquisa e renovação de repertório desenvolvido pelo Coral da UFC, podia ser encontrado no espetáculo “Nordestinos Somos”, que permaneceu em cartaz em Fortaleza durante vários anos, fazendo temporadas no Teatro Universitário, Teatro da EMCETUR, ou em auditórios de qualquer outro estabelecimento do qual recebesse um convite para ser encenado (Schrader, 2002, p.163).

Toda essa agitação coral ocorria exatamente quando o Brasil passava pelo processo de abertura democrática, e o Coral da UFC rapidamente aliou-se aos movimentos sociais organizados, cantando em bairros da periferia e em favelas ou mesmo sonorizando passeatas nas ruas de Fortaleza.

As pessoas juntavam-se para lutar, definir novos espaços de vida livre, digna e, nesse cenário, grupos de pessoas participavam dessa ‘efervescente efervescência’ cantando: estetizava-se a luta e a música era, para muitos, a própria luta (MATOS, 2006, p. 246).

Fortemente vinculada com a Cultura Popular do nordeste brasileiro, Izaíra Silvino Moraes construiu espetáculos nos quais nossa cultura estava presente de forma intensa. Antes de “Nordestinos Somos”, Izaíra montou “Os Três Tempos do Homem”, espetáculo dividido em três partes: Homem-Nordeste; Homem-Místico;

Homem-Nação. Nordestinos Somos foi, na verdade, uma reflexão sobre o tema Homem-Nordeste: ampliada reflexão estética e social, na qual as questões da religiosidade e da integração nacional também se faziam presentes.

Por ser amiga de Patativa do Assaré, Izaíra pode pedir ao amigo, a quem ela tinha como ídolo-irmão, um poema que conduzisse o espetáculo que estava pensando para 1984. Patativa escreveu “Nordestino Sim, Nordestinado Não”.

No espetáculo, a primeira estrofe do poema surgia após o grupo entrar no teatro e subir o palco. O espetáculo se iniciava fora do teatro quando, em meio a platéia que chegava, um dos integrantes proferia, como um discurso político, trechos de um texto de Celso Furtado

E que amadureça a idéia de que a solução para os nossos problemas estão na própria região, deixaremos de ser vistos com complacência, como dependes incômodos ou como reserva de caça para aventureiros políticos. E aí recuperaremos o papel que já nos coube na condução dos

destinos deste país e não será por falta de fé no futuro do país que nós, nordestinos, deixaremos de cumpriu a nossa obra na reconstrução

histórica que teremos pela frente. Tenho dito!137.

Numa tarde de sábado de 1984 Izaíra Silvino Moraes reuniu os cantores do Coral da UFC no auditório da Rádio Universitária para duas atividades: ouvir uma entrevista do teatrólogo B. de Paiva e discutir um texto sobre política econômica para a região nordeste. Àquela época, a Rádio Universitária funcionava no prédio da reitoria da UFC, onde hoje funciona a Pró-Reitoria de Planejamento e dispunha de um amplo auditório provido de um piano de um quarto de cauda.

A razão pela qual aquele encontro se deu no auditório da rádio foi o fato de que a entrevista de B. de Paiva, concedida ao Professor Ricardo Guilherme,

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Trecho transcrito a partir de documento áudio-visual (DVD), tal como interpretado pelo ator e coralista Gil Granjeiro Pereira em apresentação do espetáculo, “Nordestinos Somos”, no Teatro Universitário.

estava registrada em “fita de rolo” 138 e para ouvi-la era necessário o uso do

gravador que só era comum em estúdios de rádio e de gravação.

O encontro objetivava discutir, com base na entrevista e na leitura do texto de Celso Furtado, a temática que seria abordada em “Nordestinos Somos”, de maneira que o grupo pudesse apropriar-se melhor das questões enfocadas conferindo, ao espetáculo um maior sentido de pertencimento, oriundo da compreensão dos problemas econômicos e das possibilidades estéticas do nordeste brasileiro.

Não bastava apenas cantar bem, mover-se em cena e dizer o texto poético de Patativa do Assaré, mais que tudo era necessário que o coralista tivesse a possibilidade de entender a realidade abordada no espetáculo, a partir de estratégias de estudos: debates e reflexões.

Atualmente os corais, mesmo o próprio Coral da UFC, grupo que nos dias atuais acompanho de perto como regente-assistente, não discutem com mais vagar as questões inerentes ao repertório que está sendo montado e transformado em espetáculos e recitais. Nos anos oitenta, havia a necessidade de discussão e debates reprimida por mais de vinte anos de ditadura militar e Izaíra Silvino, como esclarece Schrader (2002, p.157), “assumiu a regência do Coral da UFC e começou um trabalho de aproximação da atividade de canto coral com a cultura popular”.

É importante perceber, mais uma vez, que a abertura política e a luta pela redemocratização do país impuseram ao Coral da UFC o desafio de integrar-se aos movimentos sociais (MATOS, 2006) e, para tanto, era necessário que o coral funcionasse também como uma escola de democracia, tanto em termos práticos, através do exercício musical coletivo que impõe o respeito às diferenças e faz da

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Mídia analógica para gravações que permaneceu como padrão em estúdios profissionais até ser substituída por meios digitais.

diferença a força sonora, quanto em um âmbito teórico, através da realização de seminários sobre temáticas diversas para os integrantes do grupo.

Era condição indispensável que, na primeira semana de trabalho no Coral, o coralista tivesse disponibilidade para comparecer diariamente a aulas de técnica vocal e, depois destas que tinham duração de sessenta minutos, permanecer por duas horas na sala do coral cantando e debatendo questões de cunho social, econômico e político, sempre relacionando-as com a atividade musical que se pretendia desenvolver.

Para um jovem de dezessete anos, secundarista em uma escola pública de ensino profissionalizante, todo aquele clima era sedutor e, ao mesmo tempo, desafiador. Cantar não significa apenas explorar as possibilidades musicais da vida, cantar era, naquele coral, explorar a própria vida, entendê-la e vivê-la.

Mas a grande permissão concedida pelo Coral da UFC no Coral da UFC dos anos 80, foi a permissão do fazer(-se), do experimentar(- se) e descobrir(-se). O trabalho então desenvolvido não se restringiu às experiências estéticas, mas enfrentou o desafio de democratizar o conhecimento musical numa bem sucedida tentativa de disseminação da consciência coletiva, da alegria e da disciplina inerentes ao canto coral (MATOS, 2006, p.247).

O jovem de 17 anos, office-boy da Caixa Econômica Federal, estudante de contabilidade, aspirante a cantor em todas as horas de sono e vigília, procurou o Coral, procurou-se no Coral e encontrou o Coral da UFC, para 22 anos depois deparar-se consigo próprio coordenando um Curso de Licenciatura em Educação Musical, enquanto, nas horas vagas das divagações, escrevia uma tese, esta uma, de doutorado.

Um outro exercício de busca da própria identidade no processo educativo- musical do Coral da UFC para a Montagem de “Nordestinos Somos”, foi a solicitação de que cada cantor compusesse seu personagem a partir dos tipos típicos que vivem nas “cidades inchadas”, nos “litorais poéticos” e nos “sertões

beduínicos” do nordeste. Imediatamente lembrei que um dia havia quase morrido de sarampo.

Dona Raimunda me obrigou a ir até Canindé numa roupa marrom para pagar uma promessa que, até o momento de redação deste trabalho, eu pensava que fora feita por causa do sarampo que realmente foi muito forte e me atacou quando eu tinha três ou quatro anos de idade. Porém, em conversa telefônica ocorrida às dezesseis horas e trinco cinco minutos do dia 29 de agosto de 2006, Dona Raimundinha, na véspera de seu aniversário, esclareceu-me que a promessa havia sido feita por causa da asma que me acometia fortemente e sempre.

Minha mãe lembrou-me, durante a conversa telefônica, que no dia de ir para Canindé com um grupo de romeiros em um ônibus especialmente fretado para isso, eu estava com muita raiva por não querer ir e que por isso, por ter ido a contragosto, eu não havia me curado da asma. Mas a cura para a asma viria através dos exercícios vocais orientados por Dona Leilah Carvalho Costa, quando abandonei a respiração alta, apical, e aprendi a respirar usando o apoio diafragmático para cantar. De súbito minhas crises sumiram e a voz não continuou a mesma.

Quando me foi solicitado que escolhesse um típico personagem do nordeste do Brasil para incorporar em cena, lembrei logo dos romeiros de Canindé e com o mais sincero júbilo, cantando no palco do Teatro Universitário, paguei a promessa que minha mãe fizera vestindo a mesma “mortalha marrom” que, talvez por determinação franciscana, tenha sido feita em tamanho muito grande para meu mirrado corpo de romeiro-infante, quando da primeira tentativa raivosa de ir a Canindé.

Os colegas foram também pensando em seus personagens. Havia a freira – Giselle Castro; o louco esmoler – Wagner; o mirim139 – Lili Sousa; a prostituta –

Maruça; a retirante – Lúcia Menezes; Muitos urbanóides; Penitentes: feirantes que feiravam enquanto a radiadora tocava Asa-Branca ou Xaxado.

Schrader (2002) ressalta que a contribuição de Paulo Freire para a Educação Brasileira foi uma marca sensível do trabalho do Coral da UFC anos oitenta e refletindo sobre a prática musical educativa implantada por Izaíra Silvino Moraes, chama a atenção para a sintonia dessa prática com os ideais freireanos:

Com o fim da repressão ideológica e a abertura política no início da década de 80, o pensamento de Paulo Freire seria referência para os processos de educação do país, impulsionando ações formadoras que buscavam uma consciência crítica no educando (...)Todo um gigantesco projeto de abrir fronteiras que constituiu o movimento educacional, artístico e coralístico brasileiro dos anos 70 teve uma ressonância mais profunda no cenário coral de Fortaleza a partir da década de 80 (p.156).

A ação estética e educacional do Coral da UFC acabou preparando o terreno para a idéia da ópera. Se era possível colocar os cantores amadores do

Coral da UFC, uma universidade que não tinha um curso de graduação na área de música, em cima do palco fazendo, com competência, espetáculos que uniam música e teatro, também era possível tentar implantar um projeto mais ousado do ponto de vista estético: uma ópera, que operasse em sua realização a criação de um espaço institucional de ensino, uma escola livre de música, ou mesmo uma graduação, enfim, algo que garantisse um processo de formação constante e consistente.