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ATO 3 ÓPERA NO BRASIL

ÓPERA À VISTA

Com a chegada da Família Real portuguesa, em 1808, a vida musical da corte (e da colônia como um todo) se diversifica, com a entrada da música clássica germânica (sobretudo a partir da de Haydn) e da ópera napolitana (NAPOLITANO, 2005, p. 42).

A chegada da Real Família alavancou o processo de “civilização sonora” da bárbara colônia musical brasileira. A construção de teatros e conservatórios de música visava semear no solo local uma cultura da qual, hoje, pretendemo- nos herdeiros, mas que nos herdou, aprisionando significativa parte de nosso terreno simbólico, nossas aspirações e transpirações estéticas.

É importante notar que uma intensa produção musical de caráter “erudito” já existia no Brasil mesmo antes da chegada da Família Real. Tal produção, predominantemente sacra, desenvolvia-se principalmente nas Minas Gerais, contudo os empreendimentos artísticos da corte redefiniram a cena musical brasileira.

Todos ignoravam que, antes do Padre José Maurício Nunes Garcia, já teriam atuado no Brasil outros compositores mulatos de grande valor, os quais haviam elaborado peças musicais de caráter erudito, em estilo semelhante ao de autores europeus da primeira metade do século XVIII. Este fato ficou desconhecido até 1940, e as primeiras descobertas devemos ao musicólogo alemão Francisco Curt Lange (REIS, 1993, p. 253).

Gêneros musicais populares do Brasil colônia, a modinha e o lundu, consubstanciavam o dilema entre o erudito e o popular: a modinha sofria profunda influência da ária de ópera italiana, e o lundu, por sua vez, era uma manifestação africana que se tornou urbana após a abolição da escravatura. Miranda (2006) falando sobre o lundu esclarece:

Como todas as práticas musicais afro, o lundu era uma dança coletiva, de origem bantu de Angola. Continha dois elementos básicos: os estalidos dos dedos e a umbigada, coreografia encontrada em vários tipos de batuque praticados pelas comunidades afro no Brasil (MIRANDA, 2006, p. 4)

Napolitano (2005), por sua vez, alerta para o fato de que o trabalho musical profissional nos tempos da colônia era um trabalho considerado artesanal, o que talvez justifique o grande número de negros e mestiços atuando como músicos naquela época. Dentre esses se destacou o Padre, mulato, José Maurício Nunes Garcia, que atuou como mestre de capela115 na corte de Dom

João VI.

Somente com o advento do Romantismo no século XIX, a música acendeu socialmente passando de trabalho artesanal para atividade espiritual, culta. Neste período, surge o primeiro grande herói da “música erudita” nacional: Carlos Gomes.

Depois de sua estréia retumbante no templo mundial da ópera, o Scala de Milão, com “Il Guarani”, em 1870, o Império Brasileiro já podia se orgulhar do seu maior compositor. Gomes compunha

como se fosse um italiano [grifo meu], para júbilo de nossa elite

imperial (NAPOLITANO, 2005, p. 43).

Carlos Gomes nasceu em campinas em 1836. Filho de um mestre de bandas de música conhecido como Maneco músico (Manoel José Gomes), foi registrado como filho de pai desconhecido, pois seus pais ainda não eram casados quando o grande compositor nasceu. De acordo com Mammi (2001) o auto de batismo de Carlos Gomes foi alterado quando este se tornou famoso de forma a parecer que ele fosse “filho legítimo” de Maneco Músico e Fabiana Maria Jaguary.

Carlos Gomes era mulato, mas nunca assumiu-se como tal. Conforme analisa Mammi:

A questão racial teve certo peso na psicologia de Carlos Gomes e também, provavelmente, em suas escolhas estéticas. De tez escura, sempre se considerou descendente de índios, e não mulato (2001, p.17).

115

De acordo com Mário de Andrade (1989, p. 332): Mestre-de-Capela (s.m.) – Músico encarregado de organizar a orquestra e o coro durante as funções religiosas, podendo ser organista e compositor.

Apesar de ser “música de brancos”, a ópera nacional, assim como os oratórios e missas do chamado “barroco brasileiro” nasceram de mentes mestiças que, por muito tempo tentavam, imitar o “jeito branco” de compor música.

O “jeito branco”, sinônimo de jeito europeu, tornou-se a partir da chegada da família real a maneira “simbolicamente correta” de se fazer música, mas essa “maneira culta”, dita erudita, de manipular os sons esteve e está ao encargo de mentes não aristocráticas.

De Carlos Gomes à recentíssima Thati Quebra Barraco, a moda musical é economicamente ditada tanto pelo desejo de acumulação e dominação do colonizador, do dono do dinheiro, quanto pelo anseio por ascensão econômica e social daqueles mamelucos caipiras e mulatos urbanos que executam suas óperas, funks e baladas em teatros, praças, bailes e, principalmente, estações de televisão do Brasil. “A inserção do compositor num determinado espaço público é inseparável da formação de um determinado público musical” (CAHANAN, apud NAPOLITANO, 1999, p. 82).

A questão da ascensão social do músico que talvez tenha em Carlos Gomes o seu maior exemplo no campo da música erudita, é fato comum no terreno da música popular. Com o início das gravações fonomecânicas e da atuação profissional de músicos (cantores, compositores e instrumentistas) nas emissoras de rádio, iniciou-se para a música popular brasileira uma nova fase na qual havia espaço para o estrelato. De acordo com MIRANDA (2006),

(...) A Casa Edison realiza as primeiras gravações fonomecânicas. Tudo isso repercute no novo mundo da cultura e das artes populares (...) Dá fim à arte como valor-de-uso; inicia-a como valor-de-troca (p. 3).

No campo da “música erudita” os processos de profissionalização não se deram da mesma maneira como no da música popular. O campo de trabalho

mais restrito em função de um consumo mínimo, destinado às classes mais abastadas que viam e vêm na música não apenas uma via de entretenimento ou elevação do espírito mas também uma forma de legitimação social, fizeram e fazem com que um músico que se dedique à interpretação ou criação desse tipo de repertório tenha mais dificuldades para estabelecer-se profissionalmente e, em virtude do caráter elitista que o conhecimento musical adquiriu ao longo de nossa história, tais músicos acabam se dedicando ao exercício da docência, mesmo sabendo que seus alunos raramente seguirão a carreira musical.

No Brasil o estudo de música é uma espécie de requinte na educação das moças e moços de classe média. Tais jovens, mesmo demonstrando talento e vontade de seguir a carreira musical, acabam optando por profissões socialmente mais reconhecidas, enquanto a música que se distribui através dos meios de comunicação de massa é realizada por músicos leigos, que normalmente não têm a oportunidade de estudar em uma escola de música.

Está estabelecido assim o grande dilema da formação musical no Brasil. O acesso aos elementos constitutivos da organização gramatical, histórica e filosófica da música encontra-se restrito a uma elite que é educada com subserviência por músicos que não conseguiram espaço como executantes profissionais. A difusão profissional, comercial, de obras musicais está quase que totalmente entregue àquela parcela da população que viu na arte um meio de ascensão social.

Muitos dos nomes mais consagrados da chamada MPB – que também é vista como música de elite – tiveram opções profissionais outras antes de se decidirem definitivamente pela música. O grande compositor, o compositor dos compositores, Francisco Buarque de Holanda, estudou arquitetura. O Ministro Gilberto Passos Gil Moreira formou-se em administração de empresas.

Este mesmo fluxo ocorre no âmbito da música popular e acadêmica de Fortaleza. O grupo conhecido como “Pessoal do Ceará” era um grupo de jovens universitários. O maestro Erwin Schrader, atual regente do Coral da UFC, tornou- se engenheiro de pesca antes de formar-se em música.

Quando há a possibilidade do jovem seguir uma carreira mais segura, mais legítima, a pressão familiar que subsidia os estudos destes jovens acaba impondo a escolha de profissões que não são artísticas e nos casos onde a vocação fala mais alto, a opção é pelo caminho da música que se diz “erudita”. Porém, o espaço para o repertório europeu se restringe cada vez mais, em função da descartabilidade, da obsolescência programada dos produtos culturais. Para aqueles que, mesmo de oriundos de famílias de doutores, buscam o caminho da música, surgiu, mais recentemente, o Jazz como gênero culto e, portanto, legítimo.

Forró, samba e carimbó, neste cenário, são manifestações que se mantém vivas graças ao trabalho de pessoas das camadas mais populares que produzem música para seus iguais, em princípio.