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“Estrela brasileira no céu azul...”86

Voando “Varig, Varig, Varig” fizemos nosso cruzeiro por sobre o atlântico espelho do céu (PESSOA, 1977)87: Voltamos. Trinta dias de acolhimento

europeu, germânico, restaram indeléveis em nossas memórias nos dias que seguimos em nosso natural habitat: ambiente periférico no qual não se sedimenta o velho, o tradicional e onde podem surgir cintilantes novidades.

Em Fortaleza habitam esperanças. Aqui, esperançosos, esperamos a ruptura dos grilhões de uma tradição subnutrida que tenta ser nova cultuando o velho, aquilo que se pensa ser “a sagrada herança” e da qual escorrega e escapa o novo: desde Colombo, um ovo.

É longa a lista de “altares” em que podemos investir fisicamente ou na fantasia. E, como um eco, encontramos alguma coisa parecida em todos os pequenos “altares” que vêm aninhar-se no seio das grandes megalópoles, como outros tantos abrigos matriciais em que posso viver, locomover-me e passar tempo com os outros. Cada um desses pequenos “altares” torna-se substantivado, cada um torna-se um “ponto de referência” de nome conhecido por um número maior ou menor de iniciados (MAFFESOLI, 2004, p. 64).

No entanto, no pequeno local, oval, os ecos da sagrada alquimia tradicional se fazem presentes nas tentativas de sedimentação do novo, daquilo que escorrega e escapa, que quebra a casca do ovo – eu, ovo: o novo. Estando situado no movediço terreno que se ressente e se beneficia da ausência da velhice gorda e sábia, a esperança dança, de sombrinha, na corda bamba. As

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Zamma, Caetano (1960) – jingle da campanha de natal da Varig.

novidades são, assim, sempre novas idades na cidade. E houve, aqui, “a idade da ópera”.

A questão inicial da presente é reflexão é, pois, saber onde nascem e como se desenvolvem determinadas práticas tidas como tradicionais. HOBSBAWN (2002) adverte que aquilo que parece tradicional é muitas vezes uma “tradição inventada”.

Muitas vezes, “tradições” que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas (...) Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado (p. 9).

Ao que parece, a invenção de uma tradição tem por objetivo sedimentar valores numa tentativa de regular comportamentos e legitimar espaços que, tradicionalizados, argúem reverência e impõem um certo tipo de receio nos não iniciados, mantendo estes ao longe para a segurança da própria “tradição”.

A tradição, por sua característica essencial de repetição, não adere ao novo e a ele tenta resistir. Ocorre que numa sociedade existem os portadores da tradição um dia inventada e a tais portadores interessa a manutenção da tradição, uma vez que, como representantes dos espaços e símbolos tradicionais, sua legitimidade depende da imutabilidade da tradição. Imutabilidade que não é uma característica daquilo que se pode entender como “costume”.

O objetivo e a característica das “tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que se deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história (HOBSBAWN, 2002, p. 10).

Quando os espaços tradicionais são reivindicados por bárbaros, ou quando os excluídos vencem o medo e tentam se apossar das “jóias do conhecimento”, sem quererem cumprir os rituais estruturantes da tradição, há a possibilidade de mudança nos costumes e nos usos do saber que, manipulado pelos bárbaros excluídos , renova-se. Dessa luta parece nascer o novo.

Atualmente, há uma tendência a discutir o problema estigmatização social como se ela fosse uma simples questão de pessoas que demonstram, individualmente, um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos. Um modo conhecido de conceituar esse tipo de observação é classificá-la como preconceito. Entretanto, isso equivale a discernir apenas no plano individual algo que não pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do grupo (ELIAS, 2000, p.23).

Viver o duelo entre novo e antigo, depois que o novo já não é tão novo e ainda novíssimo, parece apontar para a necessidade de superação do duelo, da dicotomia entre velho e novo que, em última análise, são recorrências de um jogo eterno, mas nesse histórico duelo entre velho e novo (tradição e novidade) o novo inspira-se no velho e o velho transpira no novo.

Ao mesmo tempo é preciso que a compreensão de tal embate supere as disputas individuais por um ensolarado lugar social. A questão dual entre velho e novo não pode reduzir-se a maniqueísmos que a simplificam e embotam a sua compreensão.

Novíssima idéia, a reinvenção de uma antiga forma musical e dramática, a ópera, com o intuito, ainda, de ser uma escola moderna com base no fazer: escola-ação.

Mais de quatrocentos anos após Dafne – a primeira ópera da história da música ocidental, encenada na casa de Jacopo Corsi em Florença, em fevereiro de 1598 e de cuja partitura muito pouco sobreviveu até os dias atuais – quiseram, num remoto e periférico ambiente das Américas, fazer nascer uma alteração, uma ópera que contasse a não tradicional história de sua própria

tradição, que sempre está a se transfigurar e que, ao mesmo tempo formasse intrinsecamente músicos (instrumentistas e cantores) e técnicos para sua autofágica encenação.

Seria a montagem de uma ópera nova, brasileira, nordestina, um jeito de mudar a cena da formação musical no Ceará?