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A NOVIDADE DO EDUCAR

Em 1985, após sete anos de estudos e trabalho na Europa, o sopranista88

cearense Paulo Abel do Nascimento iniciou um período de visitas constantes a Fortaleza. Seus objetivos eram basicamente dois: contribuir para com o desenvolvimento da Educação Musical no Ceará e tornar-se conhecido e reconhecido em sua própria terra natal.

Paulo Abel voltava vitorioso. Na França estava gravando um conjunto de cantatas originalmente escritas para castrato por Alessandro e Domenico Scarlatti e em Hollywood logo faria uma significativa participação no filme “ligações perigosas”89 do cineasta Stephen Frears, atuando ao lado de nomes

como Glenn Close e John Malkovich.

De volta a Fortaleza, tentando atingir seus objetivos, Paulo Abel procurou alguns artistas para discutir a possibilidade de criação e encenação de uma ópera com “temática nordestina” na qual ele faria o papel principal, um papel que deveria ser escrito para ele e sua voz rara. Dentre os artistas com os quais se encontrou estava a professora Izaíra Silvino Moraes que, àquela época, coordenava a Casa de Cultura Artística da UFC.90 Diante da idéia de Abel, Izaíra

argumentou:

Mas, Paulo Abel, como vamos fazer uma ópera aqui, nordestina, se não temos nem escola de música? Só se a gente aproveitar este projeto para criar a escola de música da nossa gente, uma escola como nunca dantes existiu(MATOS, 2003, p. 59).

88

Cantor (do sexo masculino) que, por questões de caráter hormonal, é capaz de emitir sons que ordinariamente só são conseguidos por cantoras, sopranos. Foram muito conhecidos e cultuados durante o período barroco, período no qual eram conhecidos como castrati devido ao processo utilizado para a obtenção da voz aguda.

89Dangerous Liaisons – Warner Brothers, 1988. 90

Coordenadoria ligada à Pró-Reitoria de Extensão divida em 5 setores: dança (Grupo de Tradições Cearense); Música (coral e camerata); cinema (Casa Amarela) artes plásticas (Museu de Arte da UFC) e teatro (Curso de Arte Dramática).

É importante perceber que a fala da musicista não recai sobre a “possibilidade de absurdo”: uma ópera nordestina. Ela pondera sobre a viabilidade, sugere a criação de uma escola, mas não questiona a idéia. Ao contrário, a história mostrou que Izaíra encantou-se com esse desafio e fez o encantamento disseminar-se na Universidade Federal do Ceará, onde, desde 1985, existe o Projeto Ópera Nordestina, existência agora silenciosa, pois, como dizem, “'antes' da tempestade vem sempre a calmaria”.

Paulo Abel do Nascimento vivera até seus vinte anos em Fortaleza. Menino muito pobre, dotado de uma voz rara que talvez tenha sido um dos reveses da desnutrição (MATOS, 2003), pelejou muito para tornar-se músico e, dando o troco na deficiência hormonal que impediu sua voz de mudar, acabou mudando-se para a Europa e tornando-se famoso.

A ópera nordestina já nascia, desta forma, com duas grandes novidades. A primeira destas é que necessariamente ela teria que ter um papel de destaque para um sopranista, voz para a qual já não se escrevia música desde o século XVIII, (BARBIER, 1989). Era, assim, o velho feito novo: novo de novo. A outra novidade era a própria presença de Paulo Abel em Fortaleza, novidade que se revestiu da aura dos acertos de contas.

As contas que foram se acertando também eram dicotômicas. Por um lado, havia o franco revanchismo do cantor para com a elite detentora do parco conhecimento musical de sua cidade, conhecimento musical esse baseado nos estudos pianísticos que compunham o currículo das moças de boa família, moças essas que se tornaram as senhoras do Alberto Nepomuceno, o conservatório que, por muito tempo, foi a única escola de música de Fortaleza, refletindo as tendências do elitismo musical burguês brasileiro do início do século vinte, pois:

Nos anos que sucederam a proclamação da República e nas duas primeiras décadas do século XX, a realidade musical brasileira, especificamente nos grandes centros como Rio e São Paulo, encontrava-se sob os modelos do que se chamava romantismo tardio europeu. Uma cultura européia importada era contemplada pela burguesia que se tornava cada vez mais culta exigindo um repertório erudito. Com o desenvolvimento comercial a instrução começa a expandir-se. O uso de instrumentos musicais, como o piano, torna-se típico na educação feminina da classe superior (Sodré apud Kiefer, 1977, p. 67).

A outra face do acerto de contas de Paulo Abel calcava-se na profunda impressão que a pobreza lhe deixara. Durante os anos que marcam seu retorno a Fortaleza o cantor não foi, como talvez fosse de se esperar, assediado pelos órgãos locais de imprensa, mas em 1988 Paulo Abel teve a oportunidade de explicitar seu sentimento de indignação para com a miséria local em uma programa televisivo91. Disse na ocasião:

Olhe, eu com treze anos vi criança, vizinho à minha casa, “vizim”! uma bichinha de quatro anos, Liduína, dizia: “Palo, Fome!” Eu ia buscar uma banana, mamãe fazia metade do prato e dava pra ela. Ela não tinha o que comer, fazia buraco na parede da casa de taipa e comia areia. Um dia teve uma bronquite muito grande, o médico da Assistência Municipal tacou-lhe a injeção bem forte. A mãe voltou com ela pra casa chorando, bateu na criança pra dormir porque de manhã tinha que lavar roupa nas casa alheias e no outro dia a bichinha estava de olho estatalado, com as vermes saindo pelo nariz e pela boca. E isso não é só quando eu tinha treze anos não, isso ainda é agora. Isso é o que a gente tem que endireitar e a gente só endireita isso sabe com quê? Com cultura, com música! Essas crianças abandonadas, com creche, educar ela, educar ela com música, com musica. Acabar a “semvergonheza” desse país (...) Eu admito toda semvrgonheza desse país mas não adimito que as pessoas passem fome. Por que que tem que ter isso: sofrimento, fome? (MATOS, 2003, p. 21).

A longa transcrição acima mostra não apenas o sentimento de indignação de Paulo Abel do Nascimento, mas, ao final, o cantor faz a sua “profissão de fé”: fé na sua profissão de músico e fé na Educação Musical como alternativa de educação para crianças que, nos dizeres mais recentes, encontram-se “em situação de risco social”... (risco social?) O risco social é o risco humano!

Educar e formar músico através do fazer vivo, quase emergencial da música própria e apropriada, foi o pressuposto fundante da ópera nordestina “Moacir das sete mortes ou a vida desinfeliz de um cabra da peste”.

A formação seria para os jovens descamisados musicais que ansiavam por aprender algo que lhes era necessário, a música, mas que, diante das imposições financeiras para o custeio de estudos nessa área, tinham que “escapar” aprendendo “de ouvido” em esquinas e bares de Fortaleza.