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“Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção, está provado que só é possível filosofar em alemão” - (Caetano veloso)

Para Benjamim “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais”(1985, p.198). Josso (2004) sublinha que a reconstituição das experiências formativas são indispensáveis para que possamos alcançar, compreender como nossas idéias se formam e, consequentemente, deslindar como desempenhemos este ou aquele papel social.

O que se delineia nesta efusiva narrativa de mim mesmo é um percurso individual de formação de um músico realizado quase que totalmente à margem das instituições formais de ensino musical, num tempo que reservou e preservou dificuldades para os que desejam beber da água que jorra da fonte de Euterpe.

Josso (2004) relatando trabalhos coletivos com relatos de vida aponta o esforço necessário para que consigamos nos apropriar de narrativas que não são nossas. A autora afirma que para tal exercício é necessário um grande esforço de concentração. Aqui, no contexto desta narrativa, me impus a tarefa de mergulhar na minha própria história correndo, discorrendo e escorrendo entre palavras: alisando um passado de veludo e analisando-me na aspereza ansiosa de conquistar uma tese.

O indivíduo (a individualidade) contém tanto a particularidade quanto o humano-genérico que funciona consciente e inconscientemente no homem. Mas o indivíduo é um ser singular que se encontra em relação com sua própria individualidade particular e com sua própria genericidade humana; e nele tornam conscientes ambos os elementos (HELLER, 1989, p. 22).

O jogo proposto é a pesquisa acadêmica que estas páginas brancas encerram: deslindar-me ou desenredar-me do meu enredo? - “por toda terra que passo me espanta tudo que vejo a morte tece seu fio de vida feito ao avesso” (CAYMMI, 1980) - .

“O olhar que prende anda solto, o olhar que solta anda preso”(CAYMMI, 1980). Descortinadas as primeiras cenas do meu monólogo que para o qual busco teórica sustentação, percebo que as teorias que serão as vigas desta tese estão dispostas de duas maneiras ou em dois arsenais.

Um dos pilares deste trabalho é, pois, a reconstituição do passado e a possibilidade de reconhecimento de si mesmo que pode ser encontrada nas concepções de Paul Ricoeur.

Se há um ponto no qual o pensamento dos modernos marca um avanço em relação ao dos gregos no que diz respeito ao reconhecimento de si, não é principalmente no plano da temática, o do reconhecimento da responsabilidade, mas no plano da consciência reflexiva de si mesmo implicada nesse reconhecimento (RICOEUR, 2006, p.105).

Nesta busca reflexiva de mim mesmo através do dispositivo da narração que, de conformidade com (KAUFMANN, 1996, p. 722) “apodera-se das imagens e das lembranças, dos personagens e dos cenários, dos ritmos e das melodias, para representá-los numa cena imaginária (mimesis), transformá-los numa história ficcional (mythos) e deles fazer um relato”, estabeleço, como outro pilar de sustentação teórica a produção reflexiva sobre narrativas de si, ensaios de ego história, que também sustenta a argumentação polifônica destas páginas. Desta maneira finco a estaca no solo fecundo da produção de Josso (2004) que sentencia:

A originalidade da metodologia de pesquisa-formação em Histórias de Vida situa-se, em primeiro lugar, em nossa constante preocupação com que os autores de narrativas consigam atingir uma produção de conhecimentos que tenham sentido para eles e que eles próprios se inscrevam num projeto de conhecimento que os institua como sujeitos (Josso, 2004 p. 25).

Até este ponto do trabalho revivi, resignifiquei-me, através de memórias que se articulam reflexivamente com alguns autores que simbolicamente me autorizam a auto-orar, autorando a autoria de uma proposição autêntica: há, desde muito tempo, uma escola de música camuflada, estrategicamente disfarçada, nas cores e sons do cotidiano de Fortaleza. Seu alicerce pedagógico é a ação-doação coletiva: eu fui e sou um de seus alunos.

Sustentar tal afirmação não me é difícil, pois minha vida cuja partitura está aqui parcialmente exposta é o absoluto testemunho de como um outsider (ELIAS, 2000) roubou o fogo musical dos estabelecidos e, mesmo assim, não foi o Prometeu acorrentado da vez.

Josso (2004) alerta para a existência, mesmo que latente, de um pesquisador em cada ente humano-histórico. O Exercício da narrativa de si é, assim, ato de pesquisa possível a toda pessoa que se disponha a mergulhar, com atento e terno olhar, nos meandros do seu próprio percurso que, de vários modos e maneiras, demonstra como e o que ela foi, é e será em relação ao ambiente de encontros e desencontros que definem um currículo formativo social, histórico e poético.

Realçar a indispensável articulação entre pesquisa e formação constitui um outro dos grandes desafios da operatividade hermenêutica das nossas interações. Trata-se, antes de tudo, de admitir que há um pesquisador em cada um de nós e que este pesquisador só avança na medida em que é capaz de aprender ele mesmo, graças ou apesar das interações com os outros (...) Este reconhecimento de si e dos outros como aprendentes- pesquisadores e pesquisadores-aprendentes apresenta uma dificuldade real numa sociedade que tem por hábito separar estas duas atividades em lugares e tempos diferentes, até mesmo fazendo delas especializações profissionais (JOSSO, 2004, p. 166-167).

Por certo acorrentei-me à promessa de um projeto de educação musical germinado quando em mim fermentava o desejo de ser, de algum modo, músico. Este tempo narrado, dos anos 80 do século XX à primeira década do século XXI,

contém eco-ações recorrentes, instigantes e preocupantes. Tais ações ecoantes encontram, hoje, na narrativa desta tese – saga e sagacidade sagaz – o desejo de superar a aparente dicotomia entre o professor e o pesquisador. Ambos são o músico formador de músicos que busca em si o tom sensível para dizer-se e doar-se. Ambos sou ao som deste polifônico moteto147 em si.

No percurso das palavras entrançadas em laçadas teóricas, aproximei-me da concepção de reefutação elaborada por RICOEUR (1991), que de acordo com LEAL (2002), permite uma aproximação, uma des-distanciação em relação aos fatos vividos e narrados. Tal procedimento de aproximação, identificação, busca romper a barreira do tempo para “restituir o rastro para os leitores da história com fim de levá-los aos acontecimentos passados por uma reconstituição que torna o passado inteligível na medida em que persiste no presente”. (LEAL, 2002, p. 169).

A correspondência entre narratividade e o que realmente aconteceu, apesar da exigência do método, não deixa de ser uma reconstituição que reduplica a realidade do passado, incitando a intencionalidade daquele que está engajado em recontá-la (LEAL, 2002, p.169).

RICOUER (1991), todavia, estabelece a diferença entre o eterno presente, e a capacidade deste reter o passado conhecido, possibilitando uma antecipação do futuro. Nas palavras do autor, citado por LEAL:

O passo que não podemos dar é aquele que iguala ao eterno presente a capacidade que o presente tem de atual tem de reter o passado conhecido e de antecipar o futuro desenhado nas tendências do passado. A própria noção de história é abolida da filosofia, uma vez que o presente, igualado ao efetivo, abole sua diferença em relação ao passado (RICOUER apud LEAL, 2002, p. 171).

O presente de outrora não eternizou-se, mas permanece comigo na memória-ação pedagógica aqui pesquisada e elucidada. O educador-pesquisador

147

Forma de composição da música vocal, conhecida a partir do século XIII (...) o termo é derivado do francês mot, palavra. (ANDRADE, 1989, p.350)

que ressoa em mim e que encontra espaços de ressonância institucional sofre uma espécie de interferência harmônica em série, ao mesmo tempo em que gera, em novas gerações desejosas de conhecer, os sons fundamentais com os quais passado e futuro presenciam-nos.

Coloco-me, pois, como um narrador de mim mesmo e creio que a função deste mergulho quase psico-analítico, está na ressonância que meu percurso formativo, não eternizado, mas “contínuo e continuado”, ainda encontra nas relações de poder entre os que se estabeleceram no campo das artes e aqueles que, como outsiders, pelejam, hoje, em busca de algum conhecimento e reconhecimento que esbarra, sempre, em processos de auto-conhecimento que possibilitem encontros com o que foi, o que é e o que será.

Se há um novo continente a descobrir, é este que emergirá desta partilha do que pensamos, sentimos, das nossas dúvidas, das nossas questões, das nossas incompreensões, dos nossos estados de alma, dos nossos sonhos, em resumo, de tudo o que hoje é considerado perigoso partilhar noutro lugar que não sejam as formas institucionalizadas de partilha dos segredos, ou ainda do que o saber-viver, em voga, considera tabu ou, pelo contrário, de bom tom existir. Embora o pudor esconda muitas vezes o receio de ser agredido ou de se perder uma imagem “lucrativa” de si mesmo, a questão não pode se limitar a saber o que é bom socializar para si e para outrem deste continente interior (JOSSO, 2004, p. 168).

O terreno fecundo para o trabalho artístico no cenário de Fortaleza sofre os fluxos das tentativas lucrativas, nascidas da busca pelo reconhecimento social que faz com que o exercício da profissão artística, especialmente musical, ainda persiga a legitimidade, o lucro simbólico, através da valorização do repertório historicamente tido como “de alta cultura”: o repertório europeu. Paradoxal e oportunamente, as parcas condições econômicas do local fazem com que a “alta cultura” esteja para além do alcance das camadas populares, economicamente menos favorecidas, mas não menos capazes de fruir, usufruir e produzir música.

O desejo e a determinação musical neste campo geram tensões criativas que questionam a propriedade do saber musical e abrem espaço para

manifestações de aprendizes-produtores que aprendem enquanto produzem e, sem intencionalidade inicial, colocam em xeque a propriedade, o lucro, daqueles que detêm e comercializam Bach, Mozart, Chopin e Debussy.

Não existe campo em que o enfrentamento entre as posições e as disposições seja mais constante e mais incerto do que o campo literário e artístico: se é verdade que o espaço das posições oferecidas contribui para determinar as propriedades esperadas, ou mesmo exigidas, dos candidatos eventuais, portanto, as categorias de agentes que elas podem atrair e sobretudo reter, não é menos verdade que a percepção do espaço das posições e das trajetórias possíveis e a apreciação do valor de cada uma delas recebe de seu lugar nesse espaço dependem das disposições dos agentes; por outro lado, pelo fato de que as posições que oferece são pouco institucionalizadas, jamais garantidas juridicamente, logo, muito vulneráveis à contestação simbólica, e não hereditárias – embora existam formas específicas de transmissão –, o campo de produção cultural constitui o terreno por excelência das lutas pela redefinição do “posto” (BOURDIEU, 1996, p. 290).

Minha odisséia formativa está, portanto, circunscrita em um tempo-espaço prenhe de lutas por afirmação, postulações ao posto, disputas pelo local-lugar ao sol, e é também circundada por aquilo que está posto, o establishment: o tempo- espaço da moderna “pós-modernosidade”.

Neste campo, terreno fértil para um processo formativo, houve, há e haverá a afirmação e a negação cíclica de modelos institucionais, formas musicais, métodos e discursos que cantam, encantam e desencantam universos herméticos: academia e arte.

A narrativa, tal como aqui está construída, apresenta três níveis de argumentação que, penso, são claros.

Há uma narrativa da minha própria história que constrói o próprio sujeito da narrativa, através de um trabalho de re-arranjo poético dos eventos vividos e revividos nas cenas explícitas deste canto tesudo. Nele bailam os acontecimentos e as pessoas que os protagonizaram juntamente comigo.

Narrando a mim mesmo desvelo o meu percurso individual de formação, através da reconstituição do passado que narro, mas que também se afirma pelos documentos e depoimentos que amealhei durante a elaboração desta reconstituição.

Finalmente, o percurso individual de formação aqui narrado, no qual me percebo como um outsider quer desvelar que há em Fortaleza possibilidades concretas de formação que legitimam um grande espaço formativo das manifestações que ainda estão à margem da “cultura oficial” e que contrariam e contradizem o status quo. Este é, como veremos ao abrirmos a Caixa de Pandora, o desejo identificado por Descartes Gadelha como “necessidade de escapar”, uma necessidade inerente ao indivíduo genuinamente cearense que se põe criativamente, diante da realidade, produzindo, indo e rindo.