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O PESSOAL DE DENTRO

Alguns dos participantes do grupo da ópera eram detentores de vozes muito interessantes com potencial para se desenvolverem, esses foram recebendo algumas incumbências como solistas com o desenrolar do trabalho. Além dos ensaios do coro os solistas tinham que trabalhar com os ensaiadores além de comparecer a aulas individuais de canto. O trabalho do ensaiador era ler a partitura com o solista, pois, muitos desses, apesar do bom material vocal, ainda não haviam aprendido a ler música.

A horda dos “iletrados musicais” que montavam uma ópera a tornava, mais uma vez, moderna (pós-tradicional, como já nos apontou GIDDENS, 2002) e, nesse sentido, o termo se recheava da carga negativa, imputada por aqueles que se deixaram herdar pela herança dita erudita: a desdita, musicalmente letrada, esclarecida e iluminada.

Os operários profanos, dionisíacos, afinavam-se a com o que diz BERMAN:

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo – ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos (1986, p. 15).

A ala da tradição, os herdados, comportava-se como se conhecesse apenas a última parte da citação acima: temia a destruição de seu sólido terreno pavimentado com as pedras frouxas de um saber doméstico: musica de prendas do lar. Esta constatação, que não é imparcial se considerarmos nosso envolvimento na trama, é, todavia, importante uma vez que

O interesse particular, entretanto, não restringe a amplitude do tema, pois focalizar as experiências de homens e mulheres, ainda que de

ângulos particularizados, significa um espraiar de olhares sobre paisagens a perder de vista (DIAS, 1998, p. 237).

Em minha singularidade, particularidade e perplexidade fui exercendo como partícipe e artífice da horda dos deserdados da ópera nordestina a profanação das vielas musicais de Fortaleza. Tropeçávamos nas pedras frouxas que, vez ou outra, num ato de resistência àquelas e àqueles que nos queriam exorcizar, usávamos como “rebolos”99: artilharia e munição defensiva.

Nasceu, nessas trincheiras rasas ou mesmo no campo aberto, o ato de parodiar, caricaturar. A caricatura da caricatura – a música de origem européia sempre foi caricatural no Ceará – era a lúdica estratégia que, quando tudo parecia ruir, alimentava-nos. “Tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo” (BERMAN, 1986, p.17).

A prática da paródia como ato de definição de uma posição antagônica ao projeto cultural governamental é patente no caso da montagem de Dom Joachin – caricatura da montagem cearense da ópera Dom Giovanni (Mozart), com a qual o Governo do Estado tentou restabelecer a ordem (a moral e os bons costumes) no campo da expressão musical, nos primeiros anos da década de 90, mais precisamente em 1992.100

A paródia foi encenada por alunos do Curso de Arte Dramática da UFC, contando com a colaboração de cantores do Coral Zoada. Essa gang havia se posicionado contra o papel humilhante que lhe fora destinado na montagem governamental dirigida por Bia Lessa. Nela, o elenco local (aqueles que se submeteram) teve que pintar os cabelos numa tonalidade de ruivo, acaju, o que lhes conferia o signo da caricatura étnica.

99

Segundo Aurélio Buarque de Holanda, Rebolo é pedaço de tijolo ou de telha usado como projetil.

A proposta da diretora vinda do sul do país foi encarada como coisa séria: pós-moderna. Da platéia do teatro e do telão que se colocou na praça José de Alencar para que o povão visse a ópera, a encenação era algo que escapava a compreensão do público e dos transeuntes.

Na ala discordante, os parodiadores, o “pós-moderno” tornou-se uma piada e o que se fez foi radicalizar a piada – se é para rir, então vamos rir do “ridículo estético” deles e do non sense político-cultural do governo.

Em 1986 a UFC contratara a cantora Júlia Alice Smith, que já estava desde muitos anos nos Estados Unidos da América. Júlia Smith veio ao Brasil para colaborar com a formação dos cantores juntamente com Paulo Abel, que trabalhava no Ceará sempre que seus compromissos na Europa permitiam uma vinda a Fortaleza.

Integrando o grupo da ópera, estava também a pianista Nara Vasconcelos. Competia à Nara, além da tarefa de ensaiadora, a execução do acompanhamento pianístico que Tarcísio Lima escrevia para a primeira versão da partitura da ópera101. Nara Vasconcelos acompanhou ao piano a encenação

da cena 4 ocorrida no Centro de Convenções de Fortaleza por ocasião de um congresso nacional de psiquiatria. Matos (2003) relata:

Por ocasião do Congresso Nacional da Associação Brasileira de Psiquiatria realizado em fortaleza em 1987, Maria Helena Pinheiro, médica psiquiatra e soprano que interpretava Bárbara de Alencar, convenceu a comissão organizadora do evento a apresentar a cena 4 da ópera Moacir das Sete Mortes ou a Vida Desinfeliz de um Cabra da Peste, na abertura do evento. Paulo Abel veio para essa apresentação ocorrida no Centro de Convenções e a regeu (...) o acompanhamento era apenas pianístico, competentemente realizado por Nara Vasconcelos (...) Essa apresentação da cena 4, sob a regência de Paulo Abel, contou também com a direção do ator e diretor teatral Paulo César de Alencar (Matos, 2003, p.69).

A apresentação ocorrida no Centro de Convenções de Fortaleza, referida na citação anterior, foi o marco, o ponto culminante da navegação do “navegar é

preciso”. Jovens que nunca haviam pisado num palco para encenar uma ópera meteram os pés pelas mãos num “contorcionismo histórico”, “dando nó em pingo d’água” e fazendo viver Bárbara de Alencar e seus filhos para um grupo de “curandeiros mentais” vindos de todos os pontos do país.

Um “incidente” acabou tornando-se emblemático: Após a apresentação da Cena 4, seguiu-se o Maracatu de abertura da cena 5. Para fazer a transição entre uma cena e outra, criou-se uma atmosfera de senzala com escravos bailando ao som de atabaques. Descartes Gadelha, percussionista e iniciado no Candomblé, por razões que ele mesmo diz ignorar, decidiu conferir o máximo de autenticidade sonora à cena e, assim, executou com toda concentração o “alujá de xangô”102.

Por efeito da cena e do som uma das senhoras da platéia entrou em transe: o santo lhe pegou e Descartes teve que ir em seu socorro logo após a apresentação. Isso sim, me parece, é algo que se coloca para além do conceito de moderno ou pós-moderno. Nem platéia de fora conseguiu ficar de fora diante da autêntica força.

Na modernidade, pós, ultra, hipertrofiada, tudo é dentro, todos são de dentro e o domínio sobre a matéria se desmancha no ectoplasma. O pretenso domínio da matéria – o primado do cálculo – a “selvagem” música africana é capaz de questionar. O Selvagem é pós-moderno, pós-colonial, pós-racionalista.

Faz tempo que chamei a atenção para a “correspondência” natural e social que “quebra” o cerco do próprio corpo e faz, assim, aceder a um corpo coletivo, participar de uma espaço mais amplo (...) Numerosos são os exemplos nesse sentido. Todas as aglomerações esportivas, musicais, religiosas para as quais chamei a atenção, acentuam a “fusão”, até mesmo a confusão social. Verdadeiros caldos de cultura, é em suas efervescências que precisamos buscar as especificidades da socialidade moderna (MAFFESOLI, 2003, p. 164).

102

A dança preferida de Xangô se faz ao som do alujá, um ritmo quente, rápido, que expressa força e realeza recordando, através do dobrar vigoroso do Rum, os trovões dos quais Xangô é o senhor. (Cf. AMARAL; SILVA, 2005)

O pós-moderno, em nosso entendimento, recola e redimensiona a dicotomia entre novo e velho e a supera. Percebemos que o ponto fulcral nesse cenário transmutante, a cidade de Fortaleza, não é o tipo de conhecimento que se tem, mas sim o seus usos, desusos e abusos.

A retenção, o represamento, a sonegação sonolenta é contraposta. Nesta pós moderna idade se instaura o tempo do sonoro sangramento dos açudes musicais. As barreiras parecem ruir e o som se faz ensurdecedor no transbordante rio formativo que lava e leva suas marginais à pororoca do conhecer.