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MOVIMENTO SEGUNDO (BATUQUE)

NORDESTINO SIM, NORDESTINADO NÃO!

Como diria Gilberto Gil: “a novidade veio dar à praia” (GIL, 1994). A primeira cena da novidade que aqui estamos a enfocar é uma cena de praia. Em tal cena, Iracema, a emblemática índia de Alencar, é um soprano que ao lado de outras índias, contraltos e meios-sopranos, bem como também sopranos, cantam um texto não narrativo. Nesta cena o grupo de vozes femininas, no qual Iracema tem o status de solista, apenas entoa os nomes indígenas de algumas localidades do Ceará:

Iracema; Cemoaba; Irauçuba; Itatira; Iguatu; Ibicuitinga; Sapiranga; Sucatinga; Massapé; Messejana; Manituba; Ubajara; Ubatuba; Umarituba; Carirús; Cariré, Jericoacoara; Quitaiús; Jaguaribara; Quixeré; Maraponga; Porongaba; Pirambu; Pindorama; Aratanha;

Almofala; Amanaiara; Itarema; Jaguaribe; Jati; Jaguaretama; Pajeú; Pindoretama; Catingueira; Camocim; Mauriti; Mucuripe; Mondubim; Ipueiras; Itapajé; Ipú; Cangati;

Cococi; Caxitoré; Umarí; Uruquê; Uiraporanga; Guanacés; Capuan; Guaramiranga; Crateús; Curupira; Canindé.

Novidade: O texto em si. Não-novidade: a música em lá (menor).

O texto é na cena 1, abertura, “o elemento moderno” que, de algum modo, tenta dar o primeiro passo em busca da identidade da obra: uma ópera nordestina que, antes de nordestina ser, é, acima de tudo cearense, pois tem a pretensão de contar a História do Ceará. É como se as índias cantoras descrevessem, apresentassem o Estado que se formaria e, neste sentido, a cena é quase onírica, pois, afinal, onde já se viu um grupo de índias cantando (e bailando) numa intricada polifonia tonal? Não há, portanto, um sentido de realidade na abertura de Moacir das Sete Mortes, pelo menos não em seu primeiro momento. Tal realidade adentra a cena logo em seguida com a entrada

de um coro masculino: soldados portugueses; mas fiquemos mais um pouco com as índias.

O texto musical do coro feminino é uma espécie de “devaneio tonal contrapontístico em lá menor”. Na verdade é algo que já tem precedentes no repertório musical tradicional europeu. O compositor busca a tonalidade de lá menor e em 8 compassos puramente instrumentais, preparando a entrada das vozes. Tal preparação parece inspirar-se no “Prelúdio de Tristão e Isolda”, prólogo da ópera homônima de Richard Wagner92, prelúdio que é um marco na

história da música do ocidente.

Assim como Wagner, o músico incumbido por Izaíra Silvino Moraes e Paulo Abel do Nascimento, Tarcísio Lima, contratado pela UFC como “Técnico em Harmonia Musical”, para compor Moacir das Sete Mortes, faz um jogo de tensões geradas a partir de dissonâncias e acordes de dominante, evitando por sete compassos, o aparecimento do repouso real: a tônica (acorde de lá menor)93.

Mergulhados na busca de uma tessitura cearense/nordestina para sua obra, Oswald Barroso e Eugênio Leandro, autores do libreto, conferiram ao poema-canto das índias que abre a ópera uma estrutura poético-ibérica que, no nordeste do Brasil, tornou-se tradição: o versejamento dos cantadores. Afirmar que esse texto é moderno é um “paradoxo aparente”, uma vez que sua rígida estrutura de versos e sílabas antecede ao encontro dos portugueses com as índias e índios do Brasil, mas tudo que é moderno é paradoxal em essência por conter, de alguma forma, algo tradicional, pois como diz BERMAN, é preciso

92

Compositor romântico alemão que viveu entre os anos 1813 e 1883.

93 Em conversa telefônica com o autor da música, ocorrida às 10 horas da manhã do dia 6 de setembro de

2005, este acrescentou a informação de que há na partitura a intenção de se criar uma ambigüidade com relação ao ponto de chegada do tenso discurso musical, de maneira que o lá menor, que se afirma no sétimo compasso, poderia ter caminhado para dó menor, que já se faz presente no quarto compasso, mas que não se afirma como sendo o terreno sólido da tônica. Preferimos entender que a tônica, resolvidas todas as ambigüidades, é realmente lá menor.

Apropriar-se das modernidades de ontem pode ser, ao mesmo tempo, uma crítica às modernidades de hoje e um ato de fé nas modernidades – e nos homens e mulheres modernos – de amanhã e do dia depois de amanhã (1986, p. 35).

A questão da identidade nordestina e moderna e, por conseguinte, arcaica puxa a brasa desta discussão para as elucubrações sobre as (im)possibilidades de construção de uma identidade realmente brasileira. Argumentam alguns autores que tal identidade é inviável, dados os antecedentes não brasileiros de todas as manifestações culturais ditas e tidas como genuinamente brasileiras. Menezes (2000), exercendo a “epistemologia da desconfiança” coloca a questão nos seguintes termos:

Quando, em cada período de vigência, um termo começa a tornar-se recorrente e de emprego obrigatório, eu inicio minha operação de desconfiança (...) É assim que, repetida sem menor critério, uma dessas noções que nos vêm incomodando nos últimos anos é certamente esta que se intitula 'identidade cultural' e suas congeneres como 'identidade nacional' (p.02)

Menezes (2000) prossegue sua argumentação procurando as raízes dessas expressões e, apoiando-se em Wittgenstein e em outros autores, afirma: “Identidade é assim atributo daquilo que é idêntico, que vem do latim idem, o mesmo. Esse conceito implica dialeticamente a diferença”.

Santos (2003) nos apresenta uma percepção, conceituação de identidade como se sua Alice retirasse de mágica cartola o coelho:

Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidade em constante processo de transformações, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época em época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso (SANTOS, 2003, p. 135).

Percebemos, assim, que há peculiaridades sociais que forjam a construção de uma identidade ou identificação nordestina e, dentre essas, de acordo com Albuquerque Júnior, destaca-se o ímpeto contra a exclusão.

O nordeste surge como reação às estratégias de nacionalização que o dispositivo das nacionalidades e a formação discursiva-nacional- popular põem em funcionamento; por isso não expressa mais os simples interesses particulares dos indivíduos, das famílias ou dos grupos oligárquicos estaduais. Ele é uma nova região nascida de um novo tipo de regionalismo, embora assentada no discurso da tradição e numa posição nostálgica em relação ao passado. O Nordeste nasce da perda de espaços econômicos e políticos por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2001, p.141).

O ímpeto contra a exclusão econômica que se manifestou no início do século XX, acabou sendo revivido artisticamente no final do mesmo século, quando nas décadas de setenta e oitenta, principalmente após a abertura política, ocorreu a efusão de manifestações artísticas que trouxeram para a “comissão de frente” do “bloco da democracia” o sotaque nordestino e a denúncia da desigualdade e do preconceito.

Tal sotaque já havia surgido, parece-nos, como ato de resistência a um

modus vivendi imposto pelas redes de televisão (via Embratel), nos trabalhos de

grupos como os Tropicalistas, Quinteto Armorial, Novos Baianos, Pessoal do Ceará, Quinteto Violado, dentre outros. Na MPB foi o momento dos Ramalho: Zé e Elba. Momento de Geraldo Azevedo e Alceu Valença, para citarmos apenas os nomes de maior projeção.

Contrapondo-se aos baianos tropicalistas/cosmopolitas e ao “cajuínico- mucurípico” Pessoal do Ceará, os nordestinos que se projetaram na cena nacional nos anos 80 eram agressivos. Não cantavam a poesia telúrica como fez Ednardo: “o farol velho e o novo são os olhos do mar” (EDNARDO, 1973). O tempo exigia afirmação dos “dis” e “tis” apicodentais.

O canto dramático da atriz e cantora Elba Ramalho em sua participação na trilha sonora do filme “Morte e Vida Severina”, de Zelito Viana, realizado em 1976 é emblemática e talvez seja o paradigma timbrístico dessa agreste agressividade- identidade: ação de idêntica identificação.

Esta hipótese de que há um lastro identitário que une os nordestinos é defendida por Oliveira (2004) que relaciona tal elo à musica que se produz na maior parte desta região.

O nordeste que reconhecemos, hoje, é em grande medida, uma invenção musical, ou no mínimo, uma reinvenção ampliada, a partir da base original, do que se chamou Nordeste Oriental. Possivelmente, a maior invenção política do século XX nordestino, contemporânea e co-fundadora do Nordeste, intercruzando-se com a histórica do visionário Celso Furtado, da Sudene. Seus grandes demiurgos são Luiz “Lua” Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas, ancorados numa tradição popular ampla e profunda, como ecoa na “Mulher rendeira” que Vanja Orico popularizou com Os Cangaceiros de Lima Barreto, o cineasta. “Asa Branca” passou a ser a certidão de nascimento desse Nordeste unificado que corresponde, mais nitidamente, aos sertões trabalhados por Euclides da Cunha e mais amplamente ao conjunto de estados que vai do Ceará à Bahia (OLIVEIRA, 2004, p.128).

O espaço artístico dos momentos posteriores à abertura política a e consequente redemocratização do país, comportava o “descomportamento descontente” de Antônio Conselheiro que se fazia mote para muitas canções. E, ainda perscrutando o forjar de uma identidade cultural nordestina, mesmo que transitória, mas consolidada em uma manifestação estética específica de um tempo-espaço (a ópera nordestina), é preciso, ainda com Oliveira (2004), cogitar que

A influência da música de Gonzaga/Teixeira/Dantas extrapolou os limites do sertão, quase que em cumprimento da profecia do Beato Conselheiro, pois o sertão iria virar mar, e o mar viraria sertão; é transparente em Geraldo Vandré, notável e assumida nos tropicalistas, em Caetano, Gil e Capinam, reconhecível em Edu Lobo (...) O canto da terra é central: louvada , quando chove, desgraçada, mas não amaldiçoada quando da seca (OLIVEIRA, 2004, p.129- 130).

Por solicitação de Izaíra Silvino Moraes, Patativa do Assaré escreveu

Nordestino Sim! Nordestinado Não! Um longo poema/denúncia que a maestrina

usou com maestria, na íntegra, para o espetáculo do Coral da UFC: Nordestinos

Somos, montado em 1984 e que foi apresentado durante alguns anos até,

aproximadamente 1987.

Nascendo em 1985, a ópera que seria protagonizada por Paulo Abel do Nascimento, nascia, portanto, com o caráter de resistência e luta pela sobrevivência material e simbólica de um momento no qual tornou-se permitido permitir.

Permissivo e permitido em pernoites de tertúlias, “rega-bofes” e “rala- buchos”, o povo do Nordeste, do sertão à praia nos parece uno, único e unívoco em sua música. Este povo com seus xotes, toadas, xaxados, maracatus, cocos e baiões de dois por quatro aponta e aporta no porto que aqui entendemos como sendo o desvelamento de um nordestino fado identitário: um inventário luminoso ou um alumiário inventado.