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Formas contemporâneas de engajamento juvenil que se constituem em zonas de cruzamento (trafegando entre o consumo de materialidades e de visuali- dades, entre a cultura massiva e a midiática, entre a urbanidade e a virtualidade),

as mobilizações juvenis denominadas “marchas” caracterizam-se como ações (e políticas) comunicacionais e mobilizam práticas de consumo (midiático, cultural, tecnológico) de fronteira. Algumas delas possuem dimensão local (como a Marcha dos Bons Drink, tributo à transexual Luisa Marilac), outras, nacional (como a Marcha da Liberdade e a Marcha do Skate), e há as que possuem caráter mundial (como a Marcha da Maconha e a Marcha das Vadias). Tal objeto permite uma varredura analítica das conformações políticas complexas e paradoxais inseridas em uma cultura do consumo eminentemente comunicacional e em um capitalis- mo estetizado e discursivo, no qual as imagens e a visibilidade corporal ganham centralidade, constituindo campo nuclear de assujeitamentos, mas também de ne- gociação constante de imaginários sociais, de políticas de subjetividade e de pro- cessos (políticos) de subjetivação.

O uso do corpo como mídia e da cultura midiática como instrumento po- lítico são nucleares à compreensão dessas ações que atravessam limites territoriais, unindo o suicídio por imolação de Mohammed Bouazizi, na Tunísia, em 2010, protestando contra a recorrente apreensão das frutas que vendia, às coreografias dos secundaristas chilenos, em 2011, que protestavam em massa por reforma e qualidade educacional dançando ao som de Thriller, sucesso do astro pop Michael Jackson. Para tomar o exemplo dos “ocupas” iniciados em meados de 2010, obser- va-se que, de fato,

[h]ouve uma sincronia cosmopolita febril e viral de uma sequência de rebeliões quase espontâneas [...] [com] uma mesma forma de ação: ocupações de praças, uso de redes de comunicação alternativas e ar- ticulações políticas que recusavam o espaço institucional tradicional. (CARNEIRO, 2012, p. 8)

Esses movimentos partilham, e este é um aspecto crucial, de uma denúncia ao caráter arbitrário inerente à institucionalização da política, e muito possivelmen- te esteja aqui se unindo uma vocação iconoclasta a traços anarquistas. Ante a crise das instituições, recentes ações de engajamento ativista tanto nos alertam para a necessidade de repensar o institucional quanto evocam, em suas utopias presentes, a urgência de torná-lo novamente pensável. No caso brasileiro, com especial visibi- lidade em algumas das manifestações de 2013, sobre as quais por razões de escopo analítico não irei agora me deter, a crítica à representação política como um todo e à representatividade de atores e partidos, em específico, convive com o enfrenta- mento, compartilhado com ativistas anteriores, da mídia hegemônica de massa e de seus principais arautos.

Isso significa dizer que a ênfase iconoclasta que vemos ser articulada, de modo sinérgico, por diferentes ativismos contemporâneos, inclui uma dinâmica pendular. Nela convivem a crítica ferrenha à representação política e à representação comuni- cacional da mídia massiva e, ao mesmo tempo, a agência da representação, como ins- tância política de visibilidade, que é ferramenta de luta. Desenvolvendo essa ordem de

argumento, Araluce (2011), em uma análise tocante das iniciativas de enfrentamento aos feminicídios brutais e sistemáticos ocorridos desde 1995 em Ciudad Juarez, no México, ali identifica a conformação de instâncias e redes do que a autora denomina um ativismo social transnacional. Em sua interpretação, há relevância ímpar, em si- tuações de inseguridade e fragilidade do Estado, local e nacional, de se constituírem redes transnacionais de defesa, com atores políticos com competência de atuação em tais fóruns de visibilidade. Ou seja, em situações de invisibilidade forçada, o enfren- tamento político e o ativismo forçosamente ocupam e se ocupam de equipamentos de representação e, também nesse caso, é evidente a relevância do universo digital.

Mas vejamos: problematizo essas ações e narrativas políticas não apenas como estratégias comunicacionais e identitárias em si, mas questiono os impactos e contextos de seu aparecimento e recepção. Afinal, percebo-as como paradigmáticas da visibilização de sujeitos sociais que elaboram uma crítica ao capitalismo, ao con- sumismo e às grandes corporações e, concomitantemente, segundo minha hipótese, desenvolvem táticas ativas de inserção crítica em algumas destas dinâmicas, como no caso da cultura midiática e das redes digitais.

As marchas juvenis, que desde 2011 são objeto de minha investigação,2

sinalizam, nesta primeira década dos anos 2000, para a emergência desse modo de ativismo que ataca crenças estabelecidas, instituições e tradições políticas e cuja dimensão anticanônica contempla um fazer político estético e cotidiano, sensível a fluxos globais e marcado por contingências locais. Deixam claro que uma nova agenda de preocupações mobilizava jovens – protagonistas de ações que podem confluir em protestos intergeracionais – em toda a América Latina, mas também nos Estados Unidos, na Europa e nos países árabes.

Munidos de seus próprios corpos e de sua competência em mobilizar fer- ramentas performativas, tecnicidades e a presença em espaços digitais e na cena urbana, estas juventudes enunciam um modo de agir que joga com a mobilidade – o marchar – e com a permanência – o ocupar –, plano este que agora compõe 2 Como parte do projeto de pesquisa “Você marcha para quê? Sentidos do ativismo juvenil nas culturas co-

municacional e do consumo” (Bolsa Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/2013-2015).

nosso novo interesse de investigação:3 os sentidos estéticos e políticos de se ocupar

a cidade, ocupar o próprio corpo, ocupar e habitar os locais públicos e midiáticos, ocupar para enfrentar a imobilidade e a invisibilidade forçadas, ocupar para tomar posse do que é “seu”, ocupar para questionar o imperativo consumista do “pos- suir”, ocupar para construir o que Michel Serres identifica como o último rincão humanista, o campo do “todos”. Ocupar para dar visibilidade a causas, projetos, comportamentos. Ocupar para ressignificar encarceramentos simbólicos, para for- çar as grades da linguagem, para tomar para si o narrar a si mesmo em um mais além do espelho de narciso. Ocupar como luta por representação – política, estéti- ca, midiática. Ocupar como guerrilha narrativa.

Possibilidades semelhantes foram percebidas por García (2013) quando, ao analisar a revolução egípcia iniciada em 2011, identifica inscrições juvenis e grafites de rua que revelam a capacidade de adaptar “uma gramática global a semânticas locais” (GARCÍA, 2011, p. 165), bem como se inserem em uma movida mais am- pla, uma “contracultura do rechaço” na qual se mesclam “atuações musicais, obras teatrais e até casamentos”, mostrando como “protestos festivos se converteram em uma mostra do que os egípcios haviam construído durante décadas apesar da repressão governamental”. (GARCÍA, 2011, p. 166)

Corpos jovens ocuparam Wall Street em Nova Iorque, insubordinando o canônico berço das instituições financeiras estadunidenses e transnacionais, recu- sando os desdobramentos da nova ordem de um capital globalizado, excludente e rigidamente hierárquico. Sobre o Occupy Wall Street, Zizek (2012) argumentava que “não devemos ficar aterrorizados pela eterna questão: ‘Mas o que eles que- rem?’”. Ao contrário, essa indagação patriarcal deve ser eliminada do horizonte.

No sentido psicanalítico, os protestos são efetivamente um ato histérico, provocando o mestre, minando sua autoridade, e a questão “O que você quer?” procura exatamente impedir a resposta verdadeira. Seu ponto é: “Fale nos meus termos ou se cale!”. (ZIZEK, 2012, p. 23)

Corpos intergeracionais ocupam desde meados de 2015 um prédio deterio- rado na Praça da Luz, região central da cidade de São Paulo, próximo à famigera- da “Cracolândia”, como parte de um projeto de justiça social assentado na posse e na exibição pública de todas as mais variadas sexualidades. As recusas aqui dizem respeito às ingerências do capital no bastião das subjetividades e, indiretamente, ao impor uma nova geografia e um novo uso àquele espaço urbano, provocam as fúrias da especulação imobiliária e das políticas e libidos higienistas. Parafraseando 3 Como parte do novo projeto de pesquisa submetido ao CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa/2016-2018).

Zizek, “não falamos nos seus termos e não vamos nos calar” parece ser uma irre- verente palavra de ordem a ecoar do Projeto SSEX BBOX (“sexualidade fora da caixa”) cujas atividades haviam se iniciado em 2011, com a produção de uma série de webdocumentários.

Autonomia, autoria e competência enunciativa são constitutivas desse lugar político de bordas dilatadas e fronteiras expandidas, que emerge do cotidiano e a ele retorna. Para usar expressão recorrente em inúmeras das narrativas autobiográ- ficas que vimos coletando ao longo de décadas de estudos com jovens urbanos, ex- periências dessa natureza funcionam como efetivo “empoderamento” dos sujeitos implicados em tais acontecimentos e vivências. Pontuamos, contudo, a necessária problematização da gênese mesma de tal expressão, posto que, obviamente, existem nela traços inequívocos do discurso do empreendedorismo e da lógica da autoges- tão do sucesso, em sua vertente neoindividualista e neoliberal.

Marchas: negociando com a cultura massiva e produzindo

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