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Champanhe em zona de conflito: redes sociais e controvérsia no Caso Estelita

Carolina Dantas de Figueiredo

Introdução

Desde as chamadas Jornadas de Junho de 2013, tem havido um cresci- mento de visibilidade dos movimentos sociais articulados através da internet. (FIGUEIREDO, 2013) Contudo, a falta de articulação político-social e a efeme- ridade de algumas pautas levam à desqualificação desses movimentos, chamados pejorativamente de ativismo de sofá,1 quando dificulta seu estudo e compreensão

no médio e longo prazo. Sobre o argumento do ativismo de sofá, cabe refutá-lo em função dos efeitos provocados por algumas reivindicações. O uso da hashtag “#ogi- ganteacordou” seguida de manifestações de rua em diversas cidades brasileiras, demonstrou que o emprego do termo “ativismo de sofá” de forma pejorativa não mais se aplica à realidade brasileira. Ainda que os ganhos políticos das Jornadas de Junho sejam relativos,2 seu impacto social foi intenso. As mobilizações anticor-

rupção e pró-impeachment de agosto de 2015, convocadas e organizadas através das redes sociais,3 devem muito às Jornadas de 2013.

Cabe aqui destacar um ponto que pode ser percebido em ambos os mo- vimentos e nas manifestações articuladas via redes sociais de um modo geral: a controvérsia. Nenhum desses movimentos é fundamentado no consenso. Pelo contrário, é a emergência de múltiplas tensões que os fundamenta. Contudo, não foram as Jornadas de Julho de 2013 que inauguraram a articulação social via inter- net, nem muito menos a controvérsia. Tomando-se apenas o Brasil e a rede social

1 A expressão “ativismo de sofá” deriva do inglês slacktivism, algo como “ativismo preguiçoso” em tradução livre. O termo se refere a uma suposta inércia do ativismo digital que aconteceria na web sem, contudo, sair às ruas.

2 Como consequência das manifestações de rua pode-se perceber, além da saída do termo “baderneiros” da pauta da mídia de massas naquele momento, o combate à presença do pastor Marco Feliciano na comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (ele sai apenas em dezembro de 2013) e da retirada da PEC 37, que impedia o Ministério Público de realizar investigações.

3 Um dos principais responsáveis por essas manifestações é a comunidade de Facebook “Revoltados Online” que contava, em setembro de 2015, com mais de 1.018.500 seguidores.

Facebook como referência, pelo menos desde 2012 há esse tipo de articulação.4

Poucas, porém, têm sido tão consistentes quanto o movimento social pernambuca- no Ocupe Estelita (#ocupeestelita), do qual trataremos.

A controvérsia é uma abordagem teórico-metodológica que deriva da teo- ria do ator-rede. (LATOUR, 2006; 2011) Ela permite que as tensões e divergências inerentes a um conteúdo que circula na rede – neste caso mais especificamente na rede social Facebook – sejam identificadas e cartografadas através das mesmas ferramentas que produzem a própria controvérsia. As cartografias têm sido uma abordagem válida para o estudo de questões inerentes à internet. (LATOUR, 2006; 2011; VENTURINI, 2009; 2010) O presente texto, porém, não pretende re- alizar uma cartografia completa, mas apenas tratar de uma controvérsia específica relativa ao Caso Estelita: o consumo do Champanhe Moët & Chandon numa das ocupações festivas do Cais José Estelita.

Chamamos de Caso Estelita (FIGUEIREDO, 2015) o conjunto de aconte- cimentos relacionados ao Movimento Ocupe Estelita, movimento social surgido de uma comunidade do Facebook denominada Direitos Urbanos5 em 2012. A comuni-

dade Direitos Urbanos, que conta com aproximadamente 31.666 membros, promove discussões sobre questões relativas à urbanização, paisagismo, moradia e gentrifica- ção de espaços na Região Metropolitana do Recife. Na descrição da comunidade, diz-se: “Grupo para discutir não só os problemas da cidade do Recife, mas também ideias, propostas, novos rumos. A ideia é reunir pessoas interessadas em um Recife realmente para as pessoas (não só nos slogans), um Recife com vida”.

O tema do Cais José Estelita surge com o anúncio de que uma área de 101,7 mil metros quadrados, adquirida da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) em leilão por um consórcio formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos, seria convertido num empreendimento imobiliário de alto padrão, composto por “12 torres, sendo sete residenciais, duas comerciais, dois flats e um hotel. Tudo com até 40 andares, além de estacionamentos para aproximadamente 5.000 veículos”. (TRUFFI, 2014) O valor do empreendi- mento seria de 800 milhões de reais.

Até aí nenhuma grande novidade, considerando-se o processo de intensa especulação imobiliária que as metrópoles brasileiras sofreram antes da Copa do 4 Considerando-se apenas a rede social Facebook como referência, já em 2012 podemos encontrar uma arti-

culação em torno da causa dos Guarani-Kaiowá, em que muitos usuários da rede adicionaram o nome da população indígena ao seu sobrenome como demonstração de apoio. (FIGUEIREDO, 2014)

5 Página do grupo Direitos Urbanos | Recife no facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/groups/ direitosurbanos/?fref=ts>. Acesso em: 6 out. 2015.

Mundo de 2014. Contudo, o que chamou a atenção foi o fato de que o empreen- dimento, localizado no histórico Bairro de São José, traria impactos significativos à paisagem e ao ambiente locais, além de potencialmente ampliar a discriminação social de bairros de baixa renda próximos, como os Coelhos e o Coque (ambos ZEIS6). Além de suspeitas sobre o leilão7 em si, outras irregularidades pairam so-

bre o projeto: não há Estudo de Impacto de Vizinhança (EVI), como preconiza o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001), e há diversos pareceres negativos emitidos por órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). (FIGUEIREDO, 2015)

A partir da oposição ao projeto Novo Recife – que seria a controvérsia fundante desse caso – surge o Movimento Ocupe Estelita, primeiro a partir da co- munidade Direitos Urbanos e depois de uma comunidade própria, a Movimento #OcupeEstelita8, que possui cerca de 38.619 membros e descreve-se da seguinte

forma: “O Movimento #OcupeEstelita existe para pensarmos no futuro que que- remos para nossa cidade. Não ao Novo Recife, sim ao NOSSO RECIFE”. O nome do movimento é herança do Occupy Wall Street de 2011 e, embora trate de um problema eminentemente local, inscreve-se na experiência de movimentos como o M-15 e Tahrir Square9 em que o desejo por qualidade de vida e melhorias sociais

antagoniza à lógica brutalizante do grande capital, no caso do Estelita representado não só pelo consórcio de construtoras, mas pela Prefeitura do Recife, Governo do Estado de Pernambuco e dos que discordam do movimento.

Em última instância, o que chamamos de Caso Estelita corresponde às arti- culações entre atores, como preconiza a teoria do ator-rede, tanto no ambiente da internet, quanto fora dele, como demonstram as manifestações e ocupações promo- vidas por indivíduos favoráveis ao Ocupe Estelita desde 2012. Cabe ressaltar que 6 Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), conforme a Lei Municipal nº 14.947, de 30 de março de 1987,

(Recife) é uma região assegurada à população de baixa renda conforme demarcado em plano diretor. 7 Embora acusações contra o leilão da área da Rede Ferroviária Federal datem de 2008, época em que foi

realizado, apenas em 30 de setembro de 2015 a Polícia Federal, em investigação que faz parte da operação “Lance Final”, confirmou fraude e desrespeito aos prazos legais previstos na Lei nº 8.666/93 (Polícia Federal, 2015).

8 Página do Movimento Ocupe Estelita no Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/Movimen- toOcupeEstelita?fref=ts>. Acesso em: 6 out. 2015.

9 O M-15 ou 15M foi um movimento realizado em 2011, na Espanha, contra medidas de austeridade políti- co-econômica. Seu marco foi diversas manifestações ocorridas nas principais cidades espanholas em 15 de maio de 2011. Também datado de 2011, o Tahrir Square foi a ocupação da praça Tahrir no Cairo, pedindo a renúncia do presidente Hosni Mubarak. Embora as reivindicações sejam bem diferentes das do Estelita e de outro movimentos brasileiros, a oposição ao sistema e a lógica de ocupação de espaços são um traço em comum que deve ser considerado.

embora a articulação de atores em rede ganhe notoriedade e novos contornos com o digital, a rede não prescinde do digital para existir. Ainda que Venturini (2011) indique que a cartografia deva ser utilizada quando a controvérsia pertencer ao campo técnico-científico, tendo existência digital, a prática mostra que a extensão das redes transborda aquilo que pode ser cartografado no digital e através dele.

As questões relativas ao Estelita são fluidas e não estão restritas nem ao espaço físico do cais, nem à internet. Fazem parte dela processos técnicos, sociais, políticos e mesmo afetivos. Movimentos diversos com a alcunha de “ocupe” ou com o seu caráter têm emergido de 2011 para cá e parecem ainda longe de perder força. Em 2015, apenas no Brasil, houve movimentos reivindicando direitos urba- nos em São Paulo (Movimento Parque Augusta), Rio de Janeiro (Ocupa Golfe), Belo Horizonte (Resiste Isidoro) e Maceió (Abrace a Garça Torta). Temos aí uma rede mais ampla que transcende cada localidade e cada movimento em si em torno de uma oposição à forma como o capitalismo contemporâneo propõe que o espaço urbano seja utilizado.

Por fim, cabe uma explicação: tanto a comunidade Direitos Urbanos quan- to o Movimento #OcupeEstelita servem para articular múltiplas atividades. Em es- tudo anterior (FIGUEIREDO, 2015), as dividimos em atividades de cultura e lazer (de formação e festivas) ocorridas no espaço do Cais José Estelita e acampamento, realizado entre 21 de maio – data em que o consórcio tentou demolir os arma- zéns existentes no local – e 17 de junho de 2014. Durante o acampamento, além da militância permanente, também foram realizadas atividades de cultura e lazer. Contudo, considera-se aqui o período do acampamento como algo mais específico, por ter implicado na ocupação 24h do espaço e tendo culminado com uma brutal expulsão dos acampados e daqueles que se juntaram a eles posteriormente, realiza- da no Batalhão de Choque da Polícia Militar de Pernambuco, curiosamente, num dia em que a mídia tradicional estava mais preocupada com um jogo da seleção brasileira de futebol masculino na Copa do Mundo.

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