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“Politicidade”: perspectivas de aplicação do conceito

[...] o ‘bom menino’ é sempre a tentação do professor: aquele aluno que faz tudo que o professor quer, do jeito que o professor quer. No fundo, fantoche. [...] Hoje, impera o instrucionismo em nosso meio, um atentado diário à politicidade: não se forma gente capaz de his- tória própria, mas lacaios de um sistema perverso e que precisa de imbecilizados para se manter. (DEMO, 2002, 165)

Quando, no ano de 2009, apresentei no 8º Congresso Lusocom o paper “Políticas de visibilidade, juventude e culturas do consumo: um caso (de imagem) nacional”, a recepção ao trabalho foi, no mínimo, curiosa. De um lado, colegas exaltados me interpelavam nos corredores para dizer que, se fossem seguir à risca a abordagem proposta em minha apresentação, “tudo seria política ou político” e isto, para aduaneiros da institucionalidade, soava como uma blasfêmia irreverente e irresponsável. Outros, ao contrário, apressavam-se a me cumprimentar, de modo proporcionalmente efusivo. Para estes, meu enunciado correspondia ao que eles entendiam ser o mais profundo (e possível) exercício político em tempos de crise das instituições. O caminho escolhido era simples: na junção entre três chaves de leitura (urbanidades; visualidades; politicidades), propusera-me a analisar recentes episódios de visibilização juvenil brasileiros, que compartilhavam de relevância qualitativa e estavam articulados a exercícios de construção de si – individuais e coletivos – com caráter narrativo, midiatizado, estético e contestador.

O conceito central que ordenara meu argumento é o de “politicidade”, for- mulação preciosa que me fora apresentada por colegas colombianos, mexicanos e italianos, todos muito experientes tanto no estudo da política quanto das juven- tudes, e a natureza desta última área de pesquisa talvez tenha sido a grande razão de o terem adotado. Anos depois, descobriria que um dos primeiros a ter utilizado

o mesmo conceito fora um ilustre conterrâneo, ninguém menos que Paulo Freire. O conceito de politicidade em Paulo Freire é pensado a partir da articulação entre conhecimento e emancipação, ou seja, relaciona-se a processos de consciência so- cial de sujeitos implicados na construção de autonomia e na criação de alternativas próprias de ser e estar no mundo.

Recentemente, ao preparar este capítulo, retornei a um livro de Pedro Demo (2002) no qual o autor analisa longamente esta proposta de Freire, e ali po- demos constatar que ter cunhado essa noção – politicidade – rendera ao educador e ao filósofo alguns desgostos. Como eu mesma percebera no incômodo de meus colegas, mencionado no início desta escrita, pesara sobre a noção de Freire a sus- peita de alguns de seus pares de que ela suscitaria um perigoso relativismo. Além disso, o próprio autor desconfiara da adoção prática que dela vinha sendo feita. Segundo observa Demo (2002, p. 151-152), desagradava a Freire o temor de que alguns de seus “discípulos” estivessem mais preocupados em “fazer política” do que em cuidar de sua própria formação e do aprendizado de seus alunos. Também estava determinado a esclarecer o fato de que falar em politicidade – exercício de consciência crítica, de autonomia reflexiva e de mergulho no cotidiano político, social, cultural, habilidade humana de “saber pensar” e intervir criticamente – não significava o barateamento do regime democrático, mas antes, implicava em um profundo combate de sua burocratização.

A ideia de politicidade, com todos os riscos que uma noção flexível coloca, tem se mostrado o conceito mais afinado, talvez justamente por seu caráter plástico, ao próprio modo através do qual marcheiros e ativistas narram a si próprios, tanto quando abordados por instrumentos mais convencionais de pesquisa (entrevistas, questionários, histórias de vida), quanto na cartografia de bordas fluídas, mas de qualidades plenamente objetiváveis, que identificamos na memória audiovisual que produzem sobre si e suas atuações.1 Assim, não encontro melhor definição a

me servir de radar de observação de movimentos juvenis da atualidade, alguns com braços intergeracionais e interclasses claros, que mesclam ação política, lin- guagens estéticas e uma forte base tecnológica e comunicacional.

A politicidade abrange ainda outra ordem de implicação que nos é espe- cialmente cara a nós, pesquisadoras e pesquisadores da comunicação. Na direção apontada, entre outros, por Cerbino (2005), ela é um “quê-fazer” que provém da vida cotidiana, das práticas estratégicas de vinculação e participação. Nessa direção, 1 O resultado destas cartografias narrativas, estruturadas a partir de entrevistas, pesquisa de campo e análise

mobiliza sujeitos sociais ativos, tendo o corpo como “elemento mediador e lugar de enunciação de uma nova politicidade, de um modo de ocupar e dar sentido ao espaço público e de construir uma cidadania cultural mais além da de direito”. (CERBINO, 2005, p. 118, tradução nossa)

Perea (1998), analisando a relação de jovens colombianos com a política tradicional, propõe que, juntamente ao descrédito em relação às institucionalida- des, nota-se o aparecimento de novas formas de se construir identidades coletivas, vinculadas ao plano das expressividades. (PEREA, 1998, p. 129-150, tradução nos- sa) Talvez, nesse caso, se possa operar um primeiro discernimento, nomeando ou, antes, localizando nessas construções identitárias uma categoria de atuação juvenil que se poderia associar a uma “expressividade política”.

Regressando às proposições de Cerbino, o caráter comunicacional destas que, em sentido complementar, denominaremos “politicidades expressivas”, fica- ria mais evidente:

Nos usos dos estilos e das modas, em grande medida veiculadas pelas indústrias culturais, se observa a colocação em cena de processos de constituição de um complexo conjunto de significações e represen- tações simbólicas, de tal forma que é possível afirmar que alguns grupos juvenis souberam criar sabiamente um “jogo de aparências”. (CERBINO, 2005, p. 118, tradução nossa)

Estevão (2009), leitor de Paulo Freire, utiliza o termo de modo ampliado, como “cosmopoliticidade”. Para o autor, este teria por vantagem:

valorizar múltiplas cidadanias e [...] desocultar a fragilidade do

ser humano, com ênfase particular não apenas na crueldade humana, mas também na solidariedade com os outros e na oposição activa a todas as formas de injustiça.

Este tipo de cosmopolitismo [...] aponta para uma desnacionalização da democracia e da cidadania, no sentido de as tornar mais abertas aos desafios da globalização, refundando-as num conjunto de valores supra-nacionais.

Do lado da sociedade, esta forma de cosmopolitismo assume a pos- sibilidade de se construir uma sociedade civil global, coerente com a ideia de que a consciência global se expande, como é visível, por exemplo: na criação de um novo sentido de pertença e sensibilida- de cuja expressão são os movimentos sociais transnacionais [...]. Este cosmopolitismo democrático tem por detrás a ideia de que a pertença a um Estado ou comunidade não condiciona o compromisso com ou- tras associações e outras lealdades a outros ideais que ultrapassam o

Estado-nação. Como afirmam Held & McGrew: a globalização dos pro- cessos culturais e das comunicações podem estimular novas imagens de comunidade, novas avenidas de participação política e novos discursos de identidade. A globali- zação está contribuindo para criar novos padrões de comunicação e de informação e uma densa rede de relações que vinculam os grupos e as culturas políticas entre si, transformando a dinâmica das relações políticas por cima, por baixo e ao lado do Estado. (ESTEVÃO, 2009, p. 109, grifo nosso)

Contemplando tais ressalvas, retomo neste artigo a mesma proposta que vem me permitindo auscultar os sinais produzidos por jovens ativistas brasileiros na última década, com ênfase para as manifestações que, tendo emergido durante e ao redor dos Fóruns Sociais Mundiais, desde 2001, seguiram se desdobrando em iniciativas ainda mais descentralizadas, horizontais e plurais, como aquelas capi- taneadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), em sua origem, pelas Marchas (da Liberdade, da Maconha, das Vadias, dentre as que mais se destacaram no Brasil), e pelos “ocupas”, do qual Occupy Wall Street, em 2011, seria epicentro e epifêno- meno (HARVEY et al., 2012) e que, na cidade de São Paulo, resultaria no Acampa Sampa, posteriormente Ocupa Sampa, como esclarece Oliveira (2014).

Partindo desse macrocenário sociocultural, estabelecemos como problema específico de pesquisa mapear e interpretar recorrências formais e temáticas prove- nientes da memória audiovisual gerada pelas marchas juvenis brasileiras. A coleta desse material considera sua presença na cena urbana e midiática, incluindo dados advindos de observações regulares de seu acontecimento em redes sociais como o Facebook e nas ruas da capital paulistana. Em função dos limites e dos objetivos deste artigo, irei aqui me restringir à apresentação dos nortes conceituais que fun- damentam a investigação, contemplando os principais resultados analíticos a que chegamos, e reservarei para outros momentos a partilha mais detalhada de dados atinentes às pesquisas documental e etnográfica. Ainda que minha observação em- pírica seja composta pelo acompanhamento de mobilizações sediadas na cidade de São Paulo, é notório que várias delas já se dão na fronteira de territórios, e isto efetivamente porque o espaço público que ocupam é tanto a cidade quanto as au- topistas digitais.

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