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Thiago Soares

Introdução

A cantora Lady Gaga nunca esteve na ilha de Cuba. Em contrapartida, fãs cubanos ostentam a imagem da estrela, sobretudo em camisas – evidenciando uma clara tomada de posição diante de uma história revolucionária do país e de acirramento com a cultura norte-americana. Ser fã de Lady Gaga em Cuba significa aderir à cultura anglófila, de alguma forma, negar o clichê do “cubano revolucionário”, mas assumir um posicionamento frente a questões de gênero: através da corporificação da cantora pop, fãs se colocam contra políticas de Estado que cerceiam direitos, sobretudo, a travestis e transexuais. Lady Gaga é, portanto, o vetor de um viver político que ressignifica o cotidiano e aponta rotas de fuga e colisão de parte da juventude cubana.

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Amanhece no Malecón, a mureta de pedra que cerca a parte litorânea de Havana, capital de Cuba. Encostada numa espécie de destacado que serve de mesa para garrafas de rum e refrigerante Tropicola (a versão cubana da Coca- Cola), Marty, olhos mareados de tomar cuba libre (parece clichê – e é), me conta sobre como seria ver um show de Lady Gaga, ali mesmo, em Havana. Imagine a Plaza de La Revolución, no imenso descampado, cimento no chão, em frente ao Memorial José Martí – imaginou? O palco ficaria de frente para a imagem de Che Guevara, aquela que tem o “Hasta la victoria, siempre”. O castelo da Lady Gaga, da turnê Born this way (ela fala inglês com sotaque castelhano), imenso, ao fundo. O apagar das luzes. Show gratuito, à noite, porque, segundo ela, cubanos não teriam como pagar a “fortuna” que seria um espetáculo de Lady Gaga. Mas o show teria que vir completo: cenário, figurinos, maquiagem, a moto em que Lady Gaga monta, até o cavalo da performance da canção Governament hooker, a cantora montada nele, um luxo.

Tem uma cena em que Lady Gaga canta Born this way saindo de uma espécie de vagina cenográfica, um parto ao vivo, você viu isso, Marty? “Me encanta esta par-

te”, mãos no coração, tremulância encenada. Vi no YouTube todo o show, me diz.

Detalhe: acesso à internet, em Cuba, é cerceado pelo governo,1 apenas 3,4% dos lares

cubanos possuíam acesso à rede em 2013 e a tarifa paga por uma hora de internet em pontos da estatal de telecomunicações cubana Etecsa era o equivalente a US$ 2 – num país em que a média salarial é de US$ 20, uma hora de internet equivale a 10% do salário de um profissional cubano. Como Marty acessa o YouTube?, me pergunto. A resposta vem num certo tom de segredo: um amigo tem um “super” roteador, ela me conta, importado dos Estados Unidos, que capta a internet Wi-Fi (sem fio) de um hotel de luxo próximo à casa dele. Ali, esse tal amigo baixa programas de TV coreanos (os doramas, ou dramas coreanos, famosíssimos na ilha), filmes americanos (também cerceados pelas políticas de exibição do governo cubano), álbuns de artistas internacionais (o álbum Born this way, de Lady Gaga, que Marty ouve em casa é de um CD baixado por esse amigo), videoclipes e, claro, novelas brasileiras (que antecipam o que vai acontecer nas tramas em exibição no canal de TV Cubavisión, por exemplo). Marty não tem DVD em casa (apenas reprodutor de CD) e por isso assistiu ao show

Born this way, de Lady Gaga, on-line, no YouTube.

Outro gole de cuba libre.

E o roteador, como chega importado dos Estados Unidos? Na mala de al- gum cubano residente em Miami que vem rever a família,2 Marty me diz. E pode?

Poder não pode, mas dá-se um jeito. Tem-se um amigo na Aduana, dá-se um “agra- do” (algum dinheiro), faz-se “vista grossa”. Em Cuba, o desejo de sair da ilha por tempo determinado ou definitivo é uma demanda reprimida desde a década de 1960. Pouco mais de meio século de política restritiva para viajar ou migrar separou 1 “Em Cuba o acesso à internet é muito limitado e as conexões privadas estão estritamente reguladas pelo Estado. Apenas 3,4% dos lares tinham acesso à rede mundial de computadores em 2013, uma das coberturas mais baixas do mundo, segundo a União Internacional de Telecomunicações (UIT)”, de acordo com repor- tagem do portal G1 reproduzindo a agência de notícias France Presse. Disponível em: <http://g1.globo. com/tecnologia/noticia/2015/06/cuba-abrira-35-zonas-wifi-e-reduzira-tarifa-de-acesso-a-internet.html>. Acesso em: 27 jun. 2015.

2 A impossibilidade para alguns cubanos saírem do país, como artistas, intelectuais, jornalistas, militantes, cidadãos comuns, foi durante décadas causa de sofrimentos e lutas políticas no país. A falta de liberdade de expressão esteve entre os principais motivos do desejo de migrar. Médicos e esportistas, consideradas categorias estratégicas para o país, foram também proibidos de viajar até mesmo para aprender com ou- tros profissionais. Cuba tem elevados índices sociais de educação e saúde e viveu, por um bom tempo, o fenômeno chamado “roubo de cérebros”, que consistia na oferta feita pelo governo dos Estados Unidos, que concedia aos cubanos o direito de migrarem para trabalhar sem necessidade de visto. Principalmente por essa política, os EUA se tornaram o lugar escolhido pelos cubanos para emigrar. Essa política surgiu no contexto da Guerra Fria, quando os americanos viam em Cuba uma ameaça socialista na América Latina. Pela proximidade, Miami, na Flórida, acaba sendo uma espécie de centro agregador de cubanos nos EUA.

os cubanos da possibilidade de ir a qualquer outro lugar do mundo. Em tempos de globalização, enquanto países buscam estabelecer novas regras para atrair ou para limitar imigrantes, Cuba tenta estender os limites ao direito de ir e vir de sua popula- ção desde 2013 quando, em 14 de janeiro daquele ano, a nova política de migração entrou em vigor. Ainda assim, é improvável que um cubano, recebendo um salário de US$ 20, consiga comprar uma passagem aérea, pagar taxas e emigrar. Ou sim- plesmente viajar. Os moradores da ilha vivem o que o escritor Pedro Juan Gutiérrez, em sua Trilogia suja de Havana, chama de uma “síndrome de espera”: por alguém que chegue, por alguém que saia, por alguma nova medida estatal. Uma utopia?

Prometemos ser o último gole de cuba libre.

Marty é travesti e espera que “um dia” consiga ver o show de Lady Gaga na ilha. Parece uma utopia. Um devir. Tento fugir do clichê que é aquela travesti diante de mim, o sol nascendo, as ondas batendo no Malecón, os primeiros carros modelo Ford 1956 circulando ao longe, emocionada, à espera de Lady Gaga. “Se Lady Gaga soubesse o enorme número de fãs que ela tem aqui em Cuba, acho que ela viria... Mas não sei se o governo autorizaria um show dela”, diz Marty. Eu a conheci numa boate gay chamada Cabaret Las Vegas, no bairro de Vedado, ali nas proximidades do Malecón. Conversamos, fiquei de dar um perfume para ela, trocamos informações sobre Lady Gaga. Contei que tinha visto a turnê Born this

way, em São Paulo, ao vivo. Ela não sabia que Lady Gaga chama seus fãs de little monsters (“monstrinhos”). Marty tem 26 anos.

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