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A se tomar por referência o texto polissêmico construído a partir de diferen- tes marchas juvenis, os principais núcleos de significação estruturam-se desde uma agenda tripartite: politicidade/corporalidade/tecnicidades e materialidades comu- nicativas. Uma concepção ampla de liberdade articula-se a essa agenda, incluindo de modo incisivo a liberdade em relação aos usos dos próprios corpos, a liberdade de circulação pelas cidades, a liberdade de produção e disseminação dos próprios

conteúdos e formas comunicativas. Escapando ao grande appeal narcíseo-maquíni- co, a produção das narrativas sobre si, sobre o coletivo e sobre o outro que mobiliza número significativo de marcheiros brasileiros e os vincula a outros transnacionais é da ordem do projeto. Ou seja, em tais expressividades juvenis, jovens em particular ou segmentos juvenis como um todo se assumem como autores e atores de fala, de suas próprias falas, sobre si e sobre o mundo, problematizando imaginários sociais e representações hegemônicas sobre a juventude midiaticamente disseminadas. Como já pontuara Feixa (1999, p. 41), presencia-se “a irrupção da juventude já não como sujeito passivo mas sim como ator protagonista na cena pública”.

Auscultar as narrativas dos jovens marcheiros corrobora a hipótese de que a comunicação não pode se restringir ao estudo dos meios, nem os meios, hoje, signi- ficam exclusivamente meios massivos. O trânsito entre o urbano e o digital dá-se no seio de cidades que cada vez mais se estruturam em termos de processos comunica- cionais. Imagens e imaginários, estilos e modos de vida se espelham e se espalham através de veículos, formas e conteúdos midiáticos. Há ainda uma simbiose profun- da entre o lugar midiático e os territórios e, nesse caso, não devemos nos limitar às experiências metropolitanas, especialmente em um país em que uma das grandes questões políticas de âmbito internacional – refiro-me ao que se passa no território da Floresta Amazônica brasileira – envolve incontestes processos de invisibilização de tensões e conflitos sociais, ambientais, culturais e políticos.

Vivemos uma era de paradoxos. Ou, para ser mais exata, vivemos a era dos paradoxos. E nossas e nossos jovens constituem uma das mais paradigmáticas ex- pressões desse cenário. A juventude, mito fundador da modernidade, é o lugar por excelência da ruptura, mas o é, igualmente, o ponto desde o qual se pode sonhar e projetar permanências.

Filhos da urgência, esses herdeiros da modernidade vem propondo uma nova gramática de expressão de demandas coletivas, uma nova forma de gerir o espaço público, inclusive o tecnologicamente mediado e, de modo cabal, impuse- ram uma revisão a contrapelo do próprio pilar que sustentara a moderna tradição política brasileira – ordem (para quem?) e progresso (de que tipo e a que custo?) –, esta já anacrônica reinvenção da tríade da modernidade em sua feição desenvolvi- mentista: ordem, beleza, pureza.

Defensores de utopias presentes, práticas e possíveis, os jovens marcheiros de todo o planeta – sim, eles possuem expressão global, embora suas agendas se- jam, muitas vezes, fortemente locais – são iconoclastas contumazes. Juntamente aos temidos manifestantes anômicos e anônimos (os Black Blocks na linha de frente), trazem às ruas da cidade e aos autopistas digitais a aposta de uma guerrilha contra

a representação, aí incluída a representação midiática e a democracia representati- va, em algumas de suas expressões mais radicais.

Não me interessa, com esse argumento, reforçar as já clássicas dicotomiza- ções que, historicamente, em especial desde os anos 1960, vêm construindo as re- presentações e os imaginários sociais sobre “a” juventude. Nossos jovens militantes mais longevos e nossos ativistas a tempo parcial não se encaixam – e isso aterra os veículos da imprensa massiva, em sua fúria categorizante – nos estereótipos corri- queiros dos anjos e dos demônios.

Não são necessariamente vândalos, nem exatamente bons moços, não são propriamente “de esquerda”, tampouco exatamente “de direita”. Alguns deles são fortes, plurais, potentes, mas outros podem se converter em máquinas de guerra to- madas de frenesi combativo, e isto assusta aqueles que se acostumaram a vê-los ultra- passando fronteiras apenas na ritualística das “baladas”. São filhos da democracia, e seus críticos. Contudo, algo há que se reconhecer: esses e essas jovens são sedentos de agregação, de expressão pública e de ação coletiva. E sabem como fazê-la.

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Confronto político e mídia digital:

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