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Mídia Ninja, juventude e as formas mestiças de comunicação A Mídia Ninja, como dissemos anteriormente, ganhou relevância durante

as manifestações de junho de 2013 e continua em funcionamento até hoje. Desde aquele primeiro momento, passou a ser vista como uma ferramenta política e midiática importante em outra forma de cobertura de manifestações e eventos de reivindicação. Os três vídeos analisados aqui comprovam essa articulação, ao mostrar a perspectiva de um manifestante que estava sendo preso, apoiando a desmilitarização das polícias e denunciando condições precárias de trabalho de empregados temporários de uma empresa de limpeza urbana.7

Para fazer essa inserção política e midiática, esse produto recorre, na maio- ria de suas transmissões,8 a uma forma de filmagem codificada pelo gênero televisi-

vo em coberturas continuadas – o plano-sequência9 – além de se aproximar de uma

forma de narração em que o mediador recorre à primeira pessoa e à aproximação com o que está sendo narrado, relacionando-se a uma tendência do telejornalismo brasileiro.10 Todos os vídeos aqui analisados possuem essa característica.11 Os modos

de fazer e ver da TV e da internet são interligados, exemplificando o que

6 Foram analisados um vídeo da cobertura da manifestação do dia 18 de junho de 2013, em São Paulo. Dis- ponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qCHEISpCyiM>. Acesso em: 21 ago. 2015. Outro da cobertura de um debate sobre a desmilitarização da Polícia Militar, do dia 19 de agosto de 2014. Disponível em: <https://ninja.oximity.com/article/DEBATE-A-amea%C3%A7a-%C3%A0-ordem-soci-1>. Acesso em: 21 ago. 2015. E, mais um, do dia 25 de março de 2015, em que a Mídia Ninja denuncia as condições de trabalho e preparação de garis temporários da Comlurb, empresa de limpeza urbana do Rio de Janeiro. Dis- ponível em: <https://ninja.oximity.com/article/M%C3%ADdia-NINJA-denuncia-ilegalidades-2>. Acesso em: 21 ago. 2015. Todos os vídeos foram selecionados atendendo a critérios de relevância e repercussão dos temas e coberturas.

7 Ainda que essa pauta específica pudesse ser encontrada em outro meio de comunicação.

8 Dos três vídeos aqui analisados, apenas em um deles, o do dia 19 de agosto de 2014, esse recurso de filmagem não foi utilizado. Ainda que não tenhamos analisado pormenorizadamente outros vídeos, essa forma de filmar é uma constante na produção da Mídia Ninja.

9 O plano-sequência, entretanto, é uma forma de filmagem inaugurada na linguagem cinematográfica em que o filmador acompanha o acontecimento filmado, movimentando a câmera.

10 Vilas Bôas (2015), em uma análise do A liga, da TV Bandeirantes, afirma que repórteres desse programa legitimam as notícias, enfatizando suas vivências. O mesmo pode ser visto, de forma mais evidente, em outros programas como Profissão repórter, da TV Globo, e O infiltrado, do canal fechado History Channel.

11 A exceção voltou a ser o vídeo do dia 19 de agosto de 2014, em que a aproximação se dá pelo debate que é coberto – o da desmilitarização da Polícia Militar – evidenciando um endosso da Mídia Ninja a esse tema, já que todos os palestrantes que participaram eram favoráveis à desmilitarização.

Martín-Barbero (2009) chama de formas mestiças12 de comunicação. Abaixo um

exemplo, ocorrido após a destruição de um mobiliário urbano promocional da Coca-Cola para a Copa das Confederações, ocorrida na manifestação em São Paulo, no dia 18 de junho de 2013:

Figura 1: Manifestante agredido por PM

Fonte: Retirado do YouTube dia 21 ago. 2015.

Repórter: E a polícia tira todo mundo. No momento, uma agressão. Apenas uma pessoa, cinco policiais tentando imobilizá-lo. Um ato de covardia. (Pessoas gritam “solta”). Manifestante é levado enforcado pelos policiais. A Polícia Militar imobilizando com cassetete na garganta. [...] Pedem pra soltar o manifestante que, curiosamente, é negro. Gás de pimenta nas pessoas que chegam ao largo. [...] (Policial fala com o repórter algo inau- dível). Tô na rua, tô na rua, irmão. Sou imprensa. Tô só registrando a atividade de vocês aqui. [...] A polícia mostra como é que ela lida com as manifestações de rua.

Policial: Negativo. Agrediu o policial e está preso.

Repórter: “Agrediu o policial e está preso”, é o que o outro militar aqui fala. Eu não vi nenhum tipo de agressão. Ele agora tá aqui contido com mais de 10 policiais em seu entorno.

12 “Ou seja, estamos ante uma interação que desestabiliza os discursos próprios de cada meio. Então estamos ante formas mestiças que começam a ser produzidas, formas incoerentes porque rompem a norma atuando transversalmente em todos os meios”. (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 154, grifo nosso)

Podemos ver que o repórter, ao fazer a narrativa, expõe seu ponto de vista, classifica o que está vendo como covardia, ressalta o fato do manifestante que foi preso ser negro, usa a primeira pessoa, adota um tom coloquial, desmente a infor- mação dada por um policial e afirma o seu lugar de imprensa. Dessa forma, convo- ca a autoridade que o campo jornalístico tem e que o autoriza a seguir os policiais durante a repressão aos manifestantes. Ao fazer isso, ele articula essa autoridade jornalística à que ele constrói discursivamente por se colocar ao lado dos manifes- tantes, tendo acompanhado a manifestação e rejeitado o que é dito pelo policial. Ou seja, os corpos dos repórteres se tornam dispositivos políticos e midiáticos dos manifestantes e das manifestações, ainda que eles não sejam enquadrados em tela.

Aproximamo-nos aqui das proposições de Martín-Barbero em torno de um novo mapa noturno, a fim de dar conta das mutações culturais que, segundo ele, configuram o nosso momento contemporâneo. Nesse mapa, Martín-Barbero (2009) afirma que tecnicidade, uma das mediações citada por ele no seu mapa das mediações,13 se aproxima de identidade. Com isso, ele quer marcar que as relações

que construímos com os meios de comunicação permitem que adotemos novas identidades. Ele cita o exemplo de jovens que fazem perfis na internet, adotando novos gêneros sexuais. Ao convocarmos essa relação, o que afirmamos, a partir das análises, é que a Mídia Ninja recorre a certas especificidades identitárias de jovens – uma juventude circunscrita a certa perspectiva de esquerda, que dialoga com essa cultura peer-to-peer – e que está disposta a utilizar e consumir esse produto.

A relação apontada acima também se dá pelo fato dos repórteres também serem jovens, como a maioria das pessoas que estavam nas ruas naquele ano, fortalecendo a compreensão sobre a autoridade vir de uma aproximação identi- tária. É através também disso que a Mídia Ninja será referendada, a ponto de ter suas imagens utilizadas por telejornais como o Jornal Nacional e o Jornal da Globo. Importante nessa relação dos repórteres desse produto audiovisual e a juventude é o fato das Jornadas de Junho de 2013 terem sido iniciadas após o Movimento Passe Livre (MPL) se manifestar contra o ajuste da tarifa em São Paulo. O MPL é formado, em sua maioria, por jovens insatisfeitos com o transporte público do Brasil. Eles também defendem a tarifa zero no transporte e o reconhecimento de que este deveria ser um direito do cidadão. Ou seja, uma das motivações para 13 Com a mediação da tecnicidade, Martín-Barbero ressalta a capacidade de inovação dos formatos que as empresas de comunicação têm, ao convocarem novas percepções e discursividades. “Porque a tecnicidade é menos assunto de aparatos do que de operadores perceptivos e destrezas discursivas”. (MARTÍN-BAR- BERO, 2008, p. 18) Refere-se aos modos de ver e de fazer que podem ser modificados. Mais sobre o mapa das mediações, ver Martín-Barbero (2008).

aqueles protestos foi a insatisfação com a vida cotidiana das pessoas nas cidades e o reforço do número de manifestantes virá após a violenta repressão policial em São Paulo, que passa a ser mostrada na TV e nos vídeos da internet.

A Mídia Ninja só é possível porque se articula com o contexto citado acima. Destacamos que as transmissões ao vivo, realizadas por indivíduos, só podem ser feitas porque existem mudanças econômicas e tecnológicas do país, com ampliação da oferta e da qualidade das redes de internet e pela melhora das câmeras de celular, ainda que as imagens produzidas estejam aquém daquelas vistas majoritariamente na televisão.14 Entretanto, nada que invalide o uso delas

pelos telejornais. Ademais, esses programas também utilizam imagens com qua- lidade técnica inferior: flagras de acontecimentos na rua enviadas por telespecta- dores, reportagens com câmeras escondidas, utilização de câmeras de segurança, constituindo o que Gutmann (2014) vai classificar de poética do registro amador.15

Prosseguindo nessa interpretação, é importante falar sobre a cultura peer-to-

-peer citado na abertura deste capítulo. A Mídia Ninja se insere nessa lógica de que

não há um produtor específico e um consumidor estabilizado. Os polos se alternam, se comunicam e dispensam “a presença dos velhos intermediários”, como afirma o texto do perfil desse produto no Oximity. Com um aplicativo – o TwitCasting – uma câmera e uma rede de internet móvel – 3G – qualquer pessoa poderia transmitir. Importante destacar que esse também é um discurso político adotado pela Mídia Ninja; ela estabelece um espaço de disputa com os chamados meios de comunica- ção tradicionais – os “velhos intermediários” – ressaltando o seu lugar, de quebra de polos; e de possibilidade dos jovens – narradores e consumidores – a terem como um dispositivo comunicacional e político. Ainda que, para isso, articulem essas es- pecificidades a códigos da linguagem televisiva, como a poética do registro amador. Observamos também que há uma recorrente utilização do discurso institu- cional, apesar da Mídia Ninja não se caracterizar enquanto empresa. Isso é utilizado na disputa discursiva feita pela rede colaborativa, através dos seus repórteres, com as coberturas que estavam sendo realizadas pela imprensa tradicional, dizendo que fazem uma “cobertura independente”, se colocando ao lado dos manifestantes, afirmando que são formados por pessoas responsáveis por transmissões e 14 O vídeo do dia 25 de março de 2015 indica uma transformação na forma de edição do Mídia Ninja. Além

do uso de imagens de melhor qualidade em comparação àquelas que o tornaram conhecidos, há também o uso de trilha sonora, narração em off e legendas.

15 Sobre a poética do registro amador: “A busca pela fidedignidade da reprodução da imagem e do áudio de algo que se poderia chamar de ‘real’ cede lugar aos efeitos de permanente vigilância e revelação provocados pelos dispositivos amadores de captura de imagem e som identificados pela baixa qualidade técnica dos seus registros”. (GUTMANN, 2014, p. 193)

“relatos pessoais”, destacando que fazem uma comunicação “por dentro”, sendo, consequentemente, também parte daquele momento político. Se, com o advento e fortalecimento dos meios de comunicação de massa, acompanhamos transformações na forma de performar de agentes políticos, podemos dizer que produtos como a Mídia Ninja apontam para mudanças nessa performance, rela- cionada a um novo momento político no Brasil.16 Momento este caracterizado por

uma difusão de pautas e ações e questionamentos do que vem sendo configurada como forma tradicional de fazer política, com críticas aos partidos, à democracia, aos serviços públicos prestados.

Essa ideia de comunicação por dentro vai voltar a aparecer no vídeo do dia 25 de março de 2015, quando a Mídia Ninja faz a sua primeira narrativa resultante de uma denúncia – além das denúncias de agressões feitas durante as manifestações de 2013. Nesse vídeo, um repórter do coletivo se infiltra no processo seletivo de garis temporários pela Comlurb, empresa de limpeza urbana da cidade do Rio de Janeiro:

Figura 2: Vídeo com denúncias de agressões feitas durante as manifestações de 2013

Fonte: retirado do YouTube no dia 21 ago. 2015.

Repórter no off: A Mídia Ninja foi documentar esse processo e traz agora

imagens de dentro do esquema montado.

No trecho acima, a Mídia Ninja recorre novamente ao espaço institucio- nal – tanto pelo que é dito quanto pela imagem do repórter mexendo no celular, 16 Observamos que esse novo momento político, com pautas políticas difusas, aparece em outros países, mas esses outros fenômenos não são objeto desta análise, ainda que achemos que eles indicam, respeitadas dife- renças contextuais e culturais, uma mudança mais ampla no momento contemporâneo.

o equipamento de trabalho de um “repórter ninja” – marcando que foi ela que foi documentar o processo, a fim de trazer imagens de “dentro” do “esquema” – a denúncia era que os garis temporários não recebiam o preparo necessário de segurança para trabalhar nas ruas. Nesse vídeo, vemos a Mídia Ninja recorrendo a outro recurso técnico utilizado constantemente pelos telejornais – o uso de ima- gens gravadas com câmera escondida –, reforçando o teor de denúncia daquilo que estava sendo reportado, com o seu repórter se inscrevendo no processo seletivo, articulando, mais uma vez, as especificidades da internet, citadas anteriormente, à linguagem televisiva. Articulando em seus corpos especificidades tecnológicas, culturais e políticas.

Dois mapas para analisar política, comunicação,

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