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Marchas: atividades combinatórias, identidades coletivas

Mais do que mera afirmação de existência, nem propriamente uma sub- versão de sentidos, o que se dá a ver a no Brasil a partir dos nos anos 2000 é uma expressividade juvenil que denomino convergente, através da qual efetivamente se refazem e reforçam vínculos. As audiovisualidades gregárias e ambivalentes produ- zidas no contexto marcheiro são expressões de si e convites a atividades combinató-

rias, como se a imagem de cada jovem fosse, na linha que conecta ciberespaço, rua e quarto, uma base imaginária sobre a qual outros jovens podem, não só se espelhar, mas muito concretamente se construir. Relembremos Guattari (1993), para quem a produção maquínica de subjetividade deve ser julgada a depender de como se der sua articulação com os agenciamentos coletivos de enunciação, implicando em um novo paradigma estético. Ele é “processual”, “trabalha os paradigmas científicos e éticos e é por eles trabalhado”. Além disso, “tem implicações ético-políticas porque quem fala em criação, fala em responsabilidade da instância criadora em relação à coisa criada”. (GUATTARI, 1993, p. 136)

Uma cidadania exercida desde esta cena talvez deva estar implicada na construção de regimes de significação capazes de gerar e gerir políticas cidadãs de sensibilidade e de visibilidade. Nesses termos, a experiência das marchas confirma que politicidades não emergem exclusivamente da cena política clássica, reque- rendo, justamente, um olhar que se desloca para o cotidiano e, inextricavelmente, para a análise e reapropriação feita dos sistemas interpretativos demarcados por símbolos, valores e fragmentos de sentido oriundos de práticas e hábitos de consu- mo midiático, tanto material quanto simbólico. Em seus estudos sobre “consumo

de mídia e identidades juvenis”, a brasileira Veneza Ronsini (2007, p. 56-57) chega a uma interessante formulação:

O alargamento ou encolhimento da experiência simbólica – inspi- rada no imaginário da mídia – dos sujeitos que consomem e produ- zem os estilos juvenis depende da mediação [...] [das] redes locais de sociabilidade.

O interesse pela cultura globalizada não significa somente a subordi- nação à cultura da mídia que os leva a consumir produtos, programas e a reproduzir o repertório da música internacional, mas pode indicar o anseio pro novos padrões de vida, isto é, novas possibilidades ma- teriais e simbólicas, diante da inconformidade dos jovens quanto às características de funcionamento das relações no entorno social.

Afinando-me a esse recorte, entendo que as marchas são ações estratégicas a partir das quais setores juvenis constroem a visibilidade de suas causas e valores, consolidando uma agenda própria, que enfrenta a pauta midiática de base massiva, negociando não apenas conteúdos, mas formas e modos de dizer e tratar temas de relevância. Assim, não é estranha a esse tipo de ativismo a mobilização de canais próprios de divulgação e mobilização que atravessam a cena urbana e massiva pela via das redes sociais. O mapa de visibilidade destes e destas jovens efetiva-se pela presença constante no Facebook e no YouTube, tendo significado igualmente uma vasta geração de vídeos ao vivo, produzidos de próprio punho, muitas vezes com a utilização de celulares.5

Uma verdadeira rede alternativa de produção e consumo estético-cultu- ral vem ganhando força, associada nesse caso a segmentos culturais-comporta- mentais específicos, de movimentos políticos consolidados a movimentações mais fragmentadas ou demarcadas temporalmente. Essas cenas político-comunicacio- nais juvenis reafirmam a plurivocalidade como perspectiva gregária e evocam a complexidade como perspectiva de interpretação. Transitando por mundos possíveis e por comunidades de partilha do sensível, em involuntária inspiração no proposto por Jacques Rancière e Ernesto Laclau, o ativismo marcheiro, em tempos de cólera e paz teletransmitidos e reverberados, constrói, em presença co- municada, seus princípios identitários coletivos, estruturando vínculos políticos, sensíveis e colaborativos.

5 A discussão sobre o significado da utilização de mídias móveis merece uma argumentação a parte, que será contemplada no relatório final desta investigação.

Nessa direção, a ação política juvenil, retomando a ideia de Sarlo (1997), torna-se partícipe de uma estética da vida cotidiana, sendo elemento decisivo na construção de uma cena cultural marcada pela sinestesia entre aspectos sensíveis, políticos e corporais. Adotar este conceito, o de cenas juvenis, significa ainda per- ceber como alguns cenários comunicacionais articulados e “povoados” por jovens constituem paradigmas relevantes, alimentando e reiterando – a contrapelo – ima- ginários sociais hegemônicos, mas inúmeras outras vezes, produzindo e colocando em circulação representações e narrativas claramente contra-hegemônicas, desban- cando estereotipias ou reconfigurando estigmatizações correntes.

Investigando as políticas da visibilidade e as lutas pela representação capita- neadas por setores juvenis chilenos, Aguilera (2008, p. 342, grifo nosso) sugere que:

A informação e a comunicação se transformam em um novo lugar de conflito constituinte de ações coletivas, ao passar por estes ditos pro- cessos/espaços as possibilidades de disputar e mudar os códigos de leitura do social assim como insumos fundamentais para a construção de projetos políticos coletivos [...]. [Em um] contexto de alta densida- de informacional emergem as vinculações com as novas tecnologias, com buscar informação e difundir-la através da Internet, as páginas de contra-informação assim como a possibilidade de entender que a própria prática comunicacional se transforme em um novo modo de grupalidade.

Talvez, nesse caso, o esforço seja, exatamente, vislumbrando as possibili- dades da rede, fazer dela instrumento e não um objeto em si. Escapando a apelos tautológicos, redes serão, de fato, sociais se efetivamente nos permitirem o salto pós-individualista. Pela via do entretenimento, do debate político, do compartilha- mento de sons, ideias e imagens, não importa. Na tão alentada cultura da conver- gência, convergir e atuar em torno de um projeto comum (que não o próprio “deus tecnológico”) é um grande desafio.

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