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Ações em movimentos sociais e em ONGs

CAPÍTULO 4 – A EDUCAÇÃO POPULAR E O AGIR CRÍTICO EM NUTRIÇÃO: FUNDAMENTOS E ANTECEDENTES

4.3. Antecedentes do agir crítico em Nutrição

4.3.4. Ações em movimentos sociais e em ONGs

Na década de 1980, surgiu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em cujo processo de construção o debate não era somente sobre a reforma agrária e o direito a terra, mas também sobre o direito a uma alimentação com dignidade, de boa qualidade e a valorização de práticas alternativas de alimentação e nutrição que caminhassem visando a uma alimentação adequada, mesmo em contexto de pobreza e de exclusão, também no rumo da soberania alimentar, na medida em que se estimulavam os pequenos agricultores e os que estavam na perspectiva (ainda embrionária) da agricultura familiar, no sentido de produzirem de forma autônoma e solidária, com soberania alimentar para os indivíduos e suas famílias. Tudo isso de forma que também se respeitassem a cultura e as preferências alimentares e culturais das pessoas.

O MST foi o nascedouro de grandes iniciativas e experiências de tecnologias e produções alimentares muito importantes, do ponto de vista da segurança alimentar e nutricional, da soberania alimentar e da valorização da cultura popular como um instrumento de dignidade e de garantia do direito à alimentação. Isso também vale para o MST até hoje, de forma muito mais avançada, porquanto ele e outros movimentos, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), vêm construindo diversas tecnologias para garantir às pessoas em contexto de exclusão e de pobreza alternativas para o modelo dominante, que lhes garantam uma alimentação com dignidade, qualidade e respeito a sua cultura.

No que tange a práticas sociais marcantes, quando prosseguimos para o final da década de 1980 e o início 1990, outras duas experiências começam a emergir no campo.

Em primeiro lugar, vale ressaltar a Pastoral da Criança e também a Pastoral da Saúde. Fundamentalmente, a Pastoral da Criança teve um papel importante a partir da sua motivação, compromisso e busca por se preocupar com o problema da insegurança alimentar. Começou a envolver vários agentes sociais e populares no desenvolvimento de algumas ações de enfrentamento à insegurança alimentar, dentre elas a ação que ficou mais famosa foram as chamadas “Multimisturas”, que eram complementos alimentares, fornecidos às crianças que tinham carências alimentares e nutricionais e estavam em situação de miséria e pobreza.

Uma crítica que se fazia muito durante esse processo era que as complementações fornecidas não efetivamente resolviam o problema da fome. Elas apenas resolviam pontualmente algumas carências nutricionais muito específicas. Além disso, não eram alimentos e não forneciam a alimentação digna para as pessoas. Havia, ainda, um debate sobre a validade nutricional dessas misturas, do ponto de vista científico, se havia ali micronutrientes ou nutrientes com os quais fosse possível superar o estado de insegurança alimentar em que algumas pessoas se encontravam.

Sobre as contradições que existiam em torno das ações das Pastorais, é fundamental falar que estas constituíram experiências singulares na construção do agir crítico em Nutrição porque geravam uma mobilização comunitária e de pessoas em torno da questão da insegurança alimentar das crianças. Como ressalta Vasconcelos (2006),

a produção local e distribuição de alimentos servindo para criar vínculos mais estreitos de agentes de saúde com famílias carentes, a partir dos quais algumas ações básicas eram implementadas.

A Pastoral tinha um estimulo muito forte para que as mulheres, em sua maioria, exercitassem a sua fé e a sua religião contribuindo com o desenvolvimento da sociedade e o enfrentamento da situação da fome e da miséria. Estimulava para que as pessoas saíssem de suas casas e fossem

bater de porta em porta, sobretudo nas favelas e nas comunidades mais carentes, para verificar a possibilidade de crianças que tivessem em situações sérias de insegurança alimentar, se alimentarem da multimistura e ter um pouco melhorada a sua situação de fome. Assim, por mais que houvesse contradições e polêmicas em torno do verdadeiro valor nutricional daquele serviço, havia uma mobilização popular e comunitária em torno desse problema e havia uma atuação cidadã das pessoas nesse sentido e uma preocupação com os problemas nutricionais da nação.

Assim, não se destacava a experiência apenas pela “multi-mistura”, pois se verificava o peso e estatura das crianças, suas estaturas, como estavam suas curvas de crescimento, se estavam adequadas ou não. Eram feitas reuniões e estudos para que as pessoas de comunidades aprendessem a identificar sinais e sintomas da fome, da desnutrição, e doenças que fossem preocupantes, além de poder aprender e estudar ações de saúde, que efetivamente pudessem ajudar nesse enfrentamento.

Na transição entre os anos 1980 e 1990, a redemocratização na política brasileira, aliada a intensos processos de participação popular na construção das políticas públicas, alavancaram também espaços para o fortalecimento do debate em torno de um agir crítico em Nutrição, proporcionado por um olhar ampliado para as questões relativas à alimentação e nutrição no país. Nesse período, também foram relevantes as iniciativas de Organizações Não Governamentais (ONGs).

Compreendendo que o contexto das ONG’s no Brasil é bastante dinâmico e multifacetado, enfatizaremos aqui, a título de ilustração, uma experiência importante no Estado da Paraíba, a ONG Assessoria de Grupo Especializada Multidisciplinar em Tecnologia e Extensão (AGEMTE).

A AGEMTE existe desde 1992, atuando em vários contextos na perspectiva da cidadania, da promoção social e da extensão. Desde 2008, essa ONG vem se destacando no campo das tecnologias de assistência técnica social e ambiental, dentre as quais se destaca o componente da alimentação e nutrição, no que compete a promover a segurança alimentar através de tecnologias que garantam, especialmente ao pequeno agricultor,

ferramentas para que possa mover o direito à alimentação e uma sustentabilidade do ponto de vista financeiro de renda econômica, a partir do alimento. Essas tecnologias são desenvolvidas com entidades de outros estados, como é o caso do Serviço de Tecnologias Alternativas (SERTA), de Pernambuco, e se destacam com elementos para um agir crítico em Nutrição, porque buscam caminhos e tecnologias produtivas sociais que façam com que a alimentação e a nutrição não sejam tão somente uma necessidade humana e cotidiana (de estar se alimentando), mas também um direito e uma busca, em que as pessoas possam, com as próprias mãos, ferramentas e tecnologias plantar e buscar esse direito. Esse trabalho tem sido feito, principalmente, em contextos de assentamentos de reforma agrária (FALCÃO, ANDRADE, 2003).

Detacamos aqui Emmanuel Fernandes Falcão (professor e assessor de extensão da Universidade Federal da Paraíba, membro da ONG AGEMTE), que é nutricionista e desde o final da década de 1980 passou a desenvolver diversos trabalhos sociais com comunidades no estado da Paraíba, inicialmente no litoral norte do Estado, trabalhando com pescadores, e em seguida com ações em outros municípios, com destaque especial na região do Vale do Mamanguape. Nesse território, Falcão desenvolveu um trabalho de dissertação de mestrado, analisando o trabalho de extensão popular como um processo de construção de caminhos emancipatórios. Como estudante de Nutrição, depois nutricionista e militante social através da AGEMTE, teve um papel de destaque no que tange um agir crítico em Nutrição, tanto na Paraíba como em nível nacional, por dialogar com tecnologias e possibilidades sociais e técnicas que conseguissem fazer com que a nutrição e a alimentação fossem desmistificadas – de algo difícil de alcançar e realizar plenamente com aqueles mais pobres, para algo que pudesse ser realizado com dignidade, sustentabilidade e solideriedade. Essa é uma das marcas desse trabalho (FALCÃO, ANDRADE, 2003).

No trabalho de Falcão, destacou-se evidentemente o diálogo muito forte da perspectiva alimentar nutricional com a Educação Popular. Haja vista que a Educação Popular é uma base importante no método que rege todo o trabalho das ações de Falcão na AGEMTE, através da Metodologia de

Mobilização Coletiva e Individual (Met-MOCI) (FALCÃO, ANDRADE, 2003), que tem diversas frentes de atuação, as quais orientam uma ação técnica, política e cultural na perspectiva da promoção social.

Na mesma ótica sob a qual Falcão trabalhou, merece destaque o SERTA, que vem desenvolvendo tecnologias e formando multiplicadores e agentes sociais importantes, do ponto de vista de desenvolvimento alimentar e nutricional, em vários contextos de assentamento da reforma agrária e rurais no estado de Pernambuco. O SERTA promove cursos e outras ações de formação de jovens na zona rural, para que eles sejam multiplicadores e referências na luta pelo desenvolvimento social e cidadão como inclusão social. A alimentação e a nutrição também estão presentes nesse contexto, pois o SERTA também mergulha na capacitação e na promoção de tecnologias de segurança alimentar e na garantia do direito humano à alimentação. Abdalaziz de Moura, integrante e fundador do SERTA, foi um precursor importante do agir crítico em Nutrição (FALCÃO, PIMENTA, 2011).

Nesse período, uma das experiências mais significativas foi o Movimento Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria e pela Vida, iniciada em 1993, e que alavancou tamanha mobilização nacional que reinseriu a temática da fome na agenda pública nacional. Burlandy (2011) assevera que a Ação se estabeleceu como um movimento suprapartidário, ao convocar indivíduos a se comprometerem pessoalmente com a superação da miséria. Para a autora,

este processo contribuiu para a recuperação do valor do vínculo na esfera cidadã por envolver não apenas redes de apoio entre “próximos”, mas também uma solidariedade entre “estranhos” e para deslocar a questão social da trilha da filantropia para o campo da cidadania (BURLANDY, 2011, p.65).

Esta mobilização em nível nacional conseguiu desdobramentos como a articulação de diversos atores nos estados do país para a Campanha contra a Fome - mais de três mil ao final de 1993, em 21 estados, de acordo com Burlandy (2011). Esse processo envolveu associações de moradores, sindicatos de trabalhadores, setores de igrejas, dentre outros. O foco inicial estava apenas na distribuição de alimentos, roupas e bens, mas

paulatinamente foi sendo expandido o foco de atenção para preocupações como a geração de emprego e renda, a habitação, a formação profissional, o acesso à posse da terra, dentre outras. Tais elementos demonstram o quanto este movimento foi significativo em, aos poucos, colocar na agenda pública que a questão da fome demandava muito mais do que a simples distribuição de alimentos.

Assim, começaram a se destacar vários movimentos sociais e organizações sociais de combate à fome, à desnutrição e à miséria. Esses vários movimentos e instituições, inclusive as ONGs, sobressaíram-se, pois passaram a desenvolver tecnologias de combate à fome e de promoção da alimentação e da nutrição com dignidade, de uma forma integrativa, ampliada, e não assistencialista. Por mais que, em muitos momentos, inclusive na própria campanha do Betinho, houvesse uma vertente assistencialista, à medida que se buscava, concretamente, doar alimentos para acabar com a fome e se discutiam pouco sobre as questões estruturais que estavam ligadas à questão da fome no Brasil, a iniciativa de voltar o olhar para as camadas populares e colocar em foco esse problema, que é uma face da injustiça social no Brasil, já revelava consistentemente a importância fundamental do problema da fome e o seu enfrentamento por toda a sociedade.

No final de 1994, foi criado o Fórum Nacional da Ação da Cidadania, um espaço autônomo e plural, que se organizava em formato de rede, descentralizada, com múltiplos nodos de referência.

4.3.5. Abordagens críticas sobre o problema da fome e da