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As práticas de saúde comunitária, o Movimento Popular de Saúde e o Movimento pela Reforma Sanitária

CAPÍTULO 4 – A EDUCAÇÃO POPULAR E O AGIR CRÍTICO EM NUTRIÇÃO: FUNDAMENTOS E ANTECEDENTES

4.3. Antecedentes do agir crítico em Nutrição

4.3.3. As práticas de saúde comunitária, o Movimento Popular de Saúde e o Movimento pela Reforma Sanitária

A partir dos anos 1970, em paralelo com estas realizações da UFPE e outras instituições de ensino superior, há também um pioneirismo

significativo por parte de diversas experiências de saúde comunitária, as quais constituem precursoras do Movimento Popular de Saúde (MOPS), que tem início nos primeiros anos da década de 1980.

As diversas experiências de saúde comunitária originadas na década de 1970 se estruturam no movimento de resistência à Ditadura Militar e à exploração econômica desse período. Ocorreram através de várias ações que foram se espalhando no país, especialmente experiências comunitárias e locais. Em várias, existiam iniciativas de agentes e sujeitos sociais que lutavam contra a fome e procuravam alternativas e caminhos para poder enfrentar a situação de miséria vivenciada nos aglomerados dos grandes centros urbanos, ou mesmo em determinadas comunidades nos interiores e espaços rurais do país.

Este conjunto de iniciativas era marcado também por redes de solidariedade e apoio social local no âmbito comunitário, bem como mobilização e articulação de ajuda no enfrentamento de carências. Ainda, em algumas lutas por direitos, como o direito à terra, os direitos trabalhistas, dentre outros.

Nessas iniciativas, foram desenvolvidos vários trabalhos, onde se buscava incentivar que as pessoas tivessem condições de adquirir o seu próprio alimento. Isso se dava pela construção de hortas dentro de cada casa, pelas plantações em quintais ou terrenos, até mesmo pela construção de hortas comunitárias. Também se desenvolviam muitas vezes, pelo próprio saber popular, algumas misturas e receitas para complementação alimentar e nutricional. Nesse caso, o saber popular acumulado sobre as plantas era fundamental.

Destes processos, estrutura-se uma aliança entre intelectuais, trabalhadores e técnicos da saúde, lideranças e ativistas populares, que questionam o modelo vigente de atenção à saúde, buscando organizar os serviços de modo alternativo, fazendo avançar a luta pelo direito à saúde. Desse processo, constituem-se as bases para o Movimento pela Reforma Sanitária no Brasil e, de maneira articulada a esse, a estruturação do MOPS, do qual participavam tanto profissionais da saúde (médicos, enfermeiros,

nutricionistas e outros), como também lideranças populares e comunitárias de saúde, parteiras, rezadeiras e outras pessoas da própria população, que dominavam o saber sobre ervas, plantas, fitoterapia, dentre outros. Nesse contexto, foi fundamental também o papel da Igreja e seu apoio às iniciativas locais de educação popular em saúde, seja com recursos financeiros através de convênios com entidades internacionais, seja por “abrigar” militantes sociais perseguidos pelo regime ditatorial, acolhendo suas iniciativas e práticas sociais de resistência e luta política.

A partir destas experiências de saúde comunitária, muitos profissionais se engajaram em ações de atenção à saúde que emergem do meio popular, passando a conviver com os seus movimentos e sua dinâmica interna. O olhar para os serviços de saúde vai se tornando mais crítico, a partir dessa convivência, evidenciam-se lacunas entre os serviços e a população e novos modos de atenção são pensados e experimentados, dialogando-se com a cultura e interesses populares (STOTZ, DAVID, WONG UN, 2005; VASCONCELOS; OLIVEIRA, 2009; BRASIL, 2013).

A partir de muitas práticas comunitárias e reflexões de cunho teórico e acadêmico, foram surgindo as bases do que hoje se constitui Educação Popular em Saúde, isto é, uma conjunção de saberes, vivências e práticas que se opõem à situação de opressão e exclusão social existente, apostando na construção do inédito viável. Esse processo imprime direcionalidade política às práticas de educação popular em saúde para um projeto de sociedade, no qual a saúde se insere como direito de cidadania e dever do Estado (BRASIL, 2013, p.6).

Havia nessas experiências uma preocupação fundamental com a questão nutricional, diante do quadro de desnutrição, pobreza e miséria que muitas pessoas se encontravam nas classes e grupos sociais populares daquela época.

Nesse período, a fome e a desnutrição no Brasil eram fenômenos sociais de intensa repercusão humanitária. Este fenômeno se desenhava não apenas através da condição de não satisfação da necessidade da comida, mas de outras necessidades humanas elementares, como abrigo, vestuário, educação, assistência à saúde, entre várias outras. Este quadro era acompanhado, muitas vezes, da desnutrição, e suas diversas manifestações

em deficiências nutricionais, o que tinha interface também com a presença de doenças, em particular as infecciosas e parasitárias (MONTEIRO, 2003).

Na maioria das comunidades onde esse fenômeno se manifestava, a fome tinha um caráter crônico. Se a fome aguda equivale à urgência de se alimentar, a um grande apetite, a fome crônica, por sua vez, é permanente, e, de acordo com Monteiro (2003), ocorre quando a alimentação diária não propicia ao indivíduo energia suficiente para a manutenção do seu organismo e para o desempenho de suas atividades cotidianas.

No Movimento Popular de Saúde existia uma leitura crítica desse contexto. Essa leitura era acompanhada por iniciativas guiadas não apenas por um saber científico, mas por uma ação multiprofissional e pela valorização dos saberes tradicionais populares sobre como tentar enfrentar a fome ou como, pelo menos, reduzir algumas de suas manifestações e sintomas na saúde das pessoas.

Muitos profissionais de saúde participavam do MOPS e foram pioneiros nesse contexto. Assim, o saber científico também tinha um papel predominante e fundamental na luta pela superação da fome nessa época. Tais profissionais atuavam através de visitas, onde estabeleciam conversas e conheciam melhor a realidade de cada família, além de iniciativas como rádios comunitárias, palestras, rodas de conversas, oficinas, iniciativas de organização política e comunitária, formação de agentes locais de saúde, dentre outros.

Neste sentido, uma das experiências pioneiras se deu na Paraíba, no município de Guarabira, no Centro de Orientação dos Direitos Humanos da Arquidiocese local, onde tanto o professor Eymard Vasconcelos (médico) como a professora Nelsina Dias (nutricionista) desenvolveram várias ações de promoção e cuidado à saúde. Dentre essas ações, destacava-se a preocupação com os problemas nutricionais. Eymard e Nelsina, por exemplo, desenvolviam um programa semanal sobre saúde na Rádio Cultura de Guarabira, destinado aos trabalhadores rurais, onde se discutiam vários temas relacionados à saúde, e essa experiência foi pioneira e um marco

importante para pensarmos um agir crítico em torno da questão alimentar e nutricional (DIAS, 1987; VASCONCELOS, 1987).

Foram fundamentais também nesta luta na Paraíba os trabalhos de lideranças populares e tradicionais, como Dona Palmira Lopes, que é uma das fundadoras do MOPS e nele atua em âmbito estadual nos dias de hoje. Dona Palmira marcava seu trabalho pelo apoio social às famílias que precisavam, com o seu saber sobre as plantas e sobre as ervas. Além disso, pela produção de fitoterápicos e “remédios caseiros”, os quais ela também demonstrava a outros agentes sociais locais sobre como fazer.

Nestas experiências, profissionais de diferentes categorias da saúde iam descobrindo o quanto a alimentação e a nutrição também eram preocupações cotidianas de moradores da comunidade, especialmente as mulheres, visando a qualidade de vida e a superação de seus problemas e sofrimentos. Revelava-se aí que, como destaca Dias (1987) as mulheres, por exemplo, exercitavam em seu dia a dia a função social de nutricionistas, farmacêuticas, médicas, enfermeiras, dentre outros, na medida em que – diante da precariedade dos serviços de saúde nessa época – assumiam a frente do cuidado das pessoas de sua família e da comunidade, tendo como grande base o saber popular através da experiência de vida. Observava-se que, mesmo começando na família, esse protagonismo popular nos cuidados em saúde (inclusive os alimentares e nutricionais) extrapolava para outras instituições como igrejas, escolas, associações de bairro, instituições de saúde, partidos políticos, sindicatos, meios de comunicação de massa, dentre outros.

Dessa forma, no interior destas experiências se tecia, processualmente, um saber-fazer compromissado com o enfrentamento dos problemas alimentares e nutricionais das pessoas da comunidade; o que gerou, efetivamente, sementes importantes para discutirmos um agir crítico em Nutrição. Além disso, configurou possibilidades políticas de se debater conceitos como a Educação Alimentar e Nutricional crítica (iniciada por Flávio Valente na década de 1980) e também Segurança Alimentar, além de se constituírem cada vez mais movimentos sociais de combate à fome e à pobreza, tudo respaldado por experiências e práticas concretas.

Assim como na Paraíba, outras experiências do MOPS ao longo de todo Brasil tiveram um papel fundamental para construção de um agir crítico em Nutrição, sobretudo porque, em primeiro lugar, elas lançaram luz e foco para o problema nutricional alimentar da nação, não varrendo a “sujeira” deste problema para debaixo do tapete. Além disso, em tais experiências, as pessoas buscavam iniciativas, caminhos, alternativas e trabalhos sociais que ajudassem a reverter esse quadro. A necessidade e o compromisso em enfrentar os problemas nutricionais davam vazão à criatividade, ao saber popular e científico, em diálogo e cooperação solidários.

Além de contar com diversos profissionais e agentes sociais, esse agir crítico em Nutrição estava expresso também pela participação de nutricionistas bastante compromissados e engajados.

A luta contra a fome e a desnutrição foi, então, um processo significativamente mobilizador da ação em nível interdisciplinar entre diversos profissionais de saúde, envolvidos nas ações de cuidado e atenção integral à saúde. As questões relativas à alimentação e nutrição não eram apenas pensadas por nutricionistas, mas a partir da integração multiprofissional e social, tendo na interdisciplinaridade e na construção coletiva princípios e valores que foram fundantes.

Nesse período, cabe destacar algumas estratégias governamentais de cunho multiprofissional que começaram a marcar a abertura do então governo da ditadura militar para ações de saúde mais integradas à comunidade. Uma destas estratégias foi o Programa de Interiorização da Saúde e Saneamento (PIASS), criado em 1975, tendo como ponto de partida pioneiro o Nordeste (BRASIL, 2011), onde eram realizadas várias ações de promoção e prevenção à saúde em diversas comunidades, e algumas dessas ações o componente alimentar e nutricional se destacava como uma particular atenção e prevenção à algumas carências nutricionais.

O PIASS talvez tenha sido a primeira grande experiência brasileira de extensão de cobertura na lógica da Atenção Primária à Saúde, com baixo custo e integração interinstitucional (BRASIL, 2011). Articulada com este processo estava uma preocupação evidente com as classes populares e com

o conjunto de problemas nutricionais que boa parte da nação passava naquele momento, particulamente aqueles grupos excluídos do ponto de vista social, que se aglomeravam tanto nas cidades grandes como também no contexto rural. Muitos profissionais que atuavam no PIASS procuraram abordagens críticas e integrais a estes problemas, através das ações de construção do cuidado em saúde e das intervenções coletivas nesse campo.

Nesse mesmo período, outro importante fato está no surgimento da figura do agente comunitário de saúde, o que se dá inicialmente de maneira não-institucionalizada, através do protagonismo de algumas pessoas de comunidades e movimentos sociais populares na articulação de ações de prevenção e promoção da saúde. Em diversas regiões do país, estes atores passaram lentamente a ser integrados ao sistema de saúde, tanto como trabalhadores voluntários, como enquanto “praticantes leigos”, interessados em contribuir com ações sociais para ajudar a população, principalmente as camadas mais pobres, que não contribuíam para a previdência social e que, portanto, não tinham acesso aos serviços públicos de saúde (CHINELLI, LACERDA, VIEIRA, 2011).

Muitos dos primeiros agentes comunitáriso de saúde eram militantes políticos e/ou lideranças locais vinculadas a instituições religiosas que prestavam atendimento na área da saúde, tais como a Pastoral da Criança e as dioceses. Em muitas experiências, inclusive no caso de Pernambuco, a origem desses agentes está relacionada à luta contra a pobreza e à fome, incluindo melhores condições de vida, em um contexto de resistência ao autoritarismo do regime militar que teve em dom Hélder Câmara uma de suas principais lideranças (CHINELLI, LACERDA, VIEIRA, 2011).

É bem verdade que, por mais que apareça dentre as preocupações no campo da saúde comunitário, em muitas experiências neste período a alimentação e a nutrição não constituíam o principal foco. Particularmente, nas iniciativas dos movimentos populares e práticas sociais subversivas, a luta pela justiça social era prioridade. De forma articulada a tal preocupação, percebia-se também a luta pelo direito à saúde como um todo e pela perspectiva da promoção da saúde. É por isso que não há, nessas experiências, iniciativas muito prolongadas e profundas no que tange a se

experimentar e se vivenciar um agir crítico em Nutrição, de uma forma mais elaborada. Por isso, essas experiências não são consideradas referências específicas da educação em alimentação e nutrição, mas sim na luta pela justiça social, pela Reforma Sanitária, pela construção de um Sistema Único de Saúde integral e justo, e por uma ação de saúde que fosse marcada pela promoção, justiça e equidade.

Nessa direção, cabe ressaltar que a Reforma Sanitária brasileira e a luta pela construção do Sistema Único de Saúde constituíram espaços fundamentais para a elaboração e difusão de práticas educativas progressistas no campo da alimentação e da nutrição. A Reforma Sanitária constituiu movimento liderado por vários pesquisadores da área da Medicina Social, além de médicos militantes da rede pública de serviços e outros profissionais de saúde compromissados com o enfrentamento da Ditadura Milutar e com a promoção da saúde comunitária. Teve um de seus marcos significativos na criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Outra conquista nesse movimento a criação da Associação Brasileira de Pós- Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO), que gradativamente configurou interlocutor político de destaque nos debates e embates das políticas de saúde no país. Tanto a ABRASCO, como o CEBES, cumpriram papel importante em promovendo a socialização, divulgação, difusão e intercâmbio de experiências, informações e estudos sobre a saúde coletiva no Brasil naquele período (COHN, 1989).

Nos anos 1980, esse processo confluiu com outros em andamento no campo social, particulartmente com as lutas e reivindicações de movimentos e práticas populares de saúde, além de experiências várias organizadas pela sociedade civil.

Nesse sentido, entende-se que a 8ª Conferência Nacional de Saúde configurou um dos marcos políticos mais importantes, justamente por ser o momento e o espaço onde a foi saúde trazida como questão política para a arena de um amplo debate público. Como ressalta Cohn (1989), para além do evento específico, ela envolveu uma série de debates prévios e de conferências posteriores por temáticas específicas após sua realização, em março de 1986. Representou ela, ainda, a grande arrancada para o embate

público que haveria quando da eleição e instalação da Assembléia Nacional Constituinte, que desaguaria na consolidação do SUS na Constituição de 1988.

Com o lento e gradual fortalecimento destes espaços de debate e aprofundamento em torno da saúde coletiva no Brasil, cresciam também oportunidades de reflexão e amadurecimento acerca da questão alimentar e nutricional, sua interface com a saúde e as abordagens educativas inerentes.